Índice de Capítulo

    — Tempo…

    O murmúrio de Luciel ecoa como um lamento perdido enquanto ele se mantém de costas para Alum, encarando a vastidão distorcida do horizonte. À sua frente, o mundo oscila entre vida e morte, uma dança inconstante que rege o efêmero. Ali, no limiar do imaterial, tudo encontra seu fim — um espaço distante, incompreensível para qualquer mente ainda presa à carne.

    — O que tem ele? — indaga Alum, sua voz carregada de uma serenidade que contrasta com a inquietação dele.

    — É que… — Luciel pausa, o olhar descendo até as próprias mãos. Tão frágeis, tão incapazes de segurar o mundo inteiro em suas palmas. — Quanto mais avanço, mais deixo marcas, mas menos tempo sinto que me resta!

    O senhor de toda escuridão permanece imóvel, como se ponderasse a confissão. Após um momento, responde com a precisão de quem observa além do tangível:

    — Pensamentos, ações… tudo tem um prazo de validade. Claro, se acrescentarmos determinação a essa equação, mas para aqueles que não a possuem… talvez, eles sejam eternos.

    O demônio estreita os olhos, como se mastigasse as palavras antes de devolvê-las.

    — O tempo só passa para quem o deseja? É isso que quer dizer?

    Alum ergue-se lentamente. Sob ele, a serpente que o sustenta desfaz-se em pó, suas escamas pútridas e ossadas, tornando-se parte daquele deserto inexplicável. Ele permanece ali, imponente, como se fosse um pilar entre mundos.

    — O tempo só é percebido por quem precisa dele. Mas, com a sabedoria que transcende a carne, me pergunto: seria o tempo uma imposição da ordem? Ou estaria ele acima de qualquer ordem?

    O anjo abissal fica em silêncio por um instante, seus olhos fitando novamente a imensidão do horizonte. Quando responde, sua voz carrega hesitação:

    — Deve ser…

    Ele interrompe-se, fechando os lábios como se recusasse a dar voz à ideia. Alum percebe a hesitação e intervém, com um sorriso desdenhoso:

    — Orgulho. Não dirás? Não és o orgulho dos homens? Sempre tão certos de suas verdades.

    O demônio franze o cenho.

    — Ah…

    — Então, diga-me a verdade que eu, com toda minha sabedoria, não consigo enxergar!

    Ele se vira lentamente, encarando seu senhor. Suas asas, antes altivas, se retraem em um gesto de contenção e reverência, mas sua expressão permanece desafiadora.

    — Se devo responder, digo que o tempo é a lei da ordem que nós mesmos libertaremos. E a extinguiremos deste mundo!

    Seu senhor inclina a cabeça, seus cabelos caindo sobre o rosto em um gesto quase desleixado. Um sorriso ladeia seus lábios.

    — Presunçoso — diz, sua voz carregada de ironia. — Se há verdade em tuas palavras, mesmo que seja apenas um achismo, direi que um ser abaixo de mim conseguiu me surpreender. Oh, será isso algo além dos conceitos que Elum estabeleceu para este mundo? Ele me reduziu a uma sombra de si. Mas eu… eu não cometo o mesmo erro!

    A entidade ergue o rosto, seus olhos ardendo com um brilho de fúria.

    — Afinal, és o meu senhor, não ele! — declara com firmeza. — E eu… serei o senhor dos demais, sem jamais esquecer o que sou.

    Alum arqueia uma sobrancelha, sua voz se tornando uma lâmina cortante, como a que empunha em suas mãos:

    — E o que és, Luciel?

    A raiva explode no olhar do rei, uma chama que ilumina a escuridão ao redor.

    — Sou a sombra do meu senhor… de você! Não… — ele hesita, mas apenas por um instante, antes de sua voz rugir como trovão: — A tal sombra humana!

    — Exatamente. Tu és maior e melhor! — A voz de Alum ressoa como um trovão abafado, preenchendo o espaço com um peso impossível de ignorar. Ao tocar o ombro da entidade que o serve, ele demonstra não apenas autoridade, mas também uma conexão que transcende a servidão.

    Um tremor percorre o corpo de Luciel, como se cada fibra sua reconhecesse a vastidão do poder diante de si. Naquele instante, o ex-guardião não é apenas uma figura imponente; ele é a personificação de uma força que atravessa as paredes dimensionais. Sua essência irradia uma presença capaz de preencher e consumir tanto o cosmos material quanto o imaterial.

    É como se ele fosse a própria tessitura que une o espaço-tempo.

    — Falta tão pouco… mas ainda há uma eternidade para cortar com a lâmina da ansiedade. — Sua voz é um misto de paciência e convicção inabalável, como alguém que sabe que o infinito é um conceito que só teme a si.

    Por um instante, Luciel vacila. Seus pensamentos são rápidos, mas densos, como se cada ideia fosse um planeta orbitando o centro gravitacional de sua consciência. Ele ousa imaginar: mesmo diante daquela plenitude quase inconcebível, qual é a verdadeira totalidade do poder do Criador? Como algo ou alguém pode confrontar a ordem que está acima da tríade da existência?

    As perguntas o assombram como sombras de um inimigo invisível.

    — Exatamente… — murmura, a voz falhando por um instante. Seus olhos se erguem, ainda relutantes, mas inflamados por um desejo inconfessável. — Seremos aqueles capazes de reivindicar as castas que nos foram impostas!

    Alum, que agora já não parece apenas um líder, mas algo além da compreensão, sorri com desdém.

    — Peixes que se cansaram do aquário… — começa, o tom quase divertido, porém tingido por ironia. — … e agora querem se tornar reis no oceano dos homens!

    O senhor de toda e qualquer escuridão, inclina-se, aproximando seus lábios do ouvido dele. Sua voz é um sussurro, mas carrega o peso de milênios.

    — Ah… mas eis a verdade: o destino não é algo que se aguarda, mas algo que se toma. Agora vá. O destino precisa de ti. E lembra-te… só haverá completude quando te livrares das correntes!

    Sua mão faz um gesto vago, como se dissipasse o que resta das dúvidas do servo.

    — Você não precisa de nada além de si. Os outros? São degraus, não muletas. Cada passo, cada sacrifício, cada traição, tudo serve a um propósito maior. Use-os. E quando o momento chegar, lembre-se: apenas quem caminha sozinho alcança o verdadeiro horizonte.

    Com um voo em direção ao nunca-fim, o rei atravessa o espaço imensurável, rasgando a vastidão do cosmo com uma precisão que faz o tempo parecer insignificante. Sua jornada é uma sequência de transições entre realidades, como um bailarino cósmico flutuando entre dimensões. Em meros instantes, como uma lâmina que corta a carne do impossível, ele rompe o véu e emerge na imensidão do deserto negro.

    A paisagem que o recebe é de uma beleza aterradora.

    O horizonte é uma infinidade de areias negras. Cada grão, maior que a ilha flutuante de Crea, reduz-se à insignificância diante daquela vastidão.

    Ele pousa com a solenidade de um deus descendo à terra, seus pés firmando-se. Seus olhos, frios e inabaláveis, erguem-se para contemplar o palácio que o aguarda.

    No topo da construção, um dragão dourado esculpido vigia eternamente, suas escamas refletindo uma luz dourada que não parece pertencer àquele lugar. Árvores mortas, grotescas em sua deformidade, cercam a estrutura como sentinelas silenciosas, suas ramificações ressequidas erguidas como dedos acusadores apontando para o céu. O verdadeiro destaque, no entanto, é o lago que envolve o palácio — uma extensão fervilhante de sangue vivo, cujas bolhas explodem em sons abafados, exalando um odor doce e pútrido ao mesmo tempo.

    É um cenário que desafia a razão, onde o grotesco e o sublime se fundem em perfeita harmonia. Dali, uma ponte surge, emergindo magicamente das profundezas rubras, cada passo que ele dá revelando um caminho sólido enquanto o líquido escarlate recua diante de sua presença.

    A Casa do Orgulho.

    Como é construída? Não com pedra ou madeira, mas com as ações dos homens. Seu alicerce é feito do orgulho dos miseráveis, dos políticos corruptos, dos ricos gananciosos e até dos pobres que vendem suas almas por poder. Cada crime cometido em nome do ego, cada traição que serve ao desejo de superioridade, cada vida tomada ou arruinada pela sede de autoafirmação: tudo isso é o cimento que sustenta aquela monstruosidade.

    Ali, todos encontram um destino cruel. Suas almas, condenadas, são devoradas pelo Anjo dos Maus, o próprio pecado. O cheiro dos perfumes caros dos que ali pereceram ainda impregna o ar, escapando das bolhas escarlates que estouram sob seus pés.

    Dessa maldição, que há muito assombra a humanidade, nasce o inimigo jurado dos homens. Forjado nas chamas do orgulho e sustentado pela soberba daqueles que ousam se proclamar imortais, intocáveis e inabaláveis, ergue-se ali a morada de Luciel — o Senhor dos reis.

    Ele, que confere coroas aos reis absolutos de Crea, o mesmo que, por ironia, é reverenciado como santo.

    Pois Elum não coroa ninguém. Sob sua luz, não há espaço para tiranos ou hierarquias. Entre seus filhos, não existem reis, apenas iguais.

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