Capítulo 203 - Futuro? Está Logo Adiante!
A noite respira seus últimos suspiros, e o céu começa a se tingir com o tímido prelúdio da aurora. O ar, denso e inquieto, carrega um peso, como se a madrugada testemunhasse um momento de ruptura, um limiar entre o ontem e o que virá.
E Gabriel estaciona o carro sob a ponte mais antiga da capital, uma estrutura que desafia o tempo, mas também se curva a ele. Os arcos de pedra, marcados por musgo e rachaduras, guardam ecos de histórias já esquecidas, um monumento à impermanência.
Ele desce do veículo, o olhar fixo no pequeno objeto que carrega. É uma bússola de prata, corroída pela ferrugem, seus ornamentos delicados parcialmente apagados pelo desgaste de incontáveis anos.
Ao avançar, encontra Arthur. O jovem exorcista está parado, envolto por um silêncio opressivo. Seus ombros curvados denunciam o fardo que carrega, enquanto seus olhos — fundos, opacos, sem brilho — se perdem na vastidão do céu noturno.
Ele não busca estrelas, mas respostas, ou talvez consolo, em uma escuridão que parece sussurrar segredos que só ele pode ouvir.
Gabriel se detém por um instante, observando a cena com uma mistura de compaixão e propósito. O peso do momento é inegável, mas há algo mais no ar: uma promessa de que o ciclo da dor e da dúvida não se estenderá para sempre.
— Eu não deveria, mas está feito! — A voz dele corta o silêncio com a precisão de uma lâmina. Não há hesitação em suas palavras, apenas a firmeza de quem já viu o pior da humanidade e ainda assim se mantém de pé. Seus olhos, de um castanho profundo e cansado, fitam o rapaz com uma intensidade quase desconfortável, atravessando as camadas de dor que tenta esconder. Ele estende a bússola com ambas as mãos, como se entregasse algo muito mais pesado do que um simples artefato. — Vingança… por mais lógica que pareça, nunca é uma estrada reta. Ela te devora pelo caminho. Você está pronto para isso, Arthur?
Já o garoto, hesita. Seus dedos tremem ao tocar a superfície fria da bússola, como se ela pudesse queimar sua pele. Ele não responde de imediato. O silêncio pesa, mas sua expressão o trai. Há algo quebrado em seu olhar, uma verdade amarga que não consegue esconder.
— Não sou forte o suficiente para lidar com isso, mestre Gabriel… — Sua voz é baixa, um sussurro que carrega o peso de um grito sufocado. Ele não ergue os olhos, como se a vergonha de suas palavras fosse insuportável. — Depois que ela se foi… tudo perdeu o sentido. Perdi a razão. Você entende?
O celeste mantém-se em silêncio por um instante, sua postura rígida traindo a batalha interna que travava. Ele observa o rapaz, tão jovem, tão consumido pela perda, e enxerga nele um reflexo de dores antigas, de escolhas que ele mesmo já enfrentou.
— Entendo — ele finalmente responde, sua voz quase um murmúrio, carregada de uma melancolia que apenas os que já perderam sabem carregar. Com um movimento deliberado, solta a bússola. Ela escorrega suavemente de sua mão para a dele. — Mas entender não é suficiente. Você precisa decidir se quer sobreviver a isso… ou se vai permitir que isso o consuma!
Arthur fecha os dedos ao redor do objeto.
Sente algo além do metal frio: um calor pulsando, quase vivo, como se a bússola carregasse em si todas as memórias, esperanças e promessas de um futuro que ele não consegue enxergar. Seus olhos voltam a encontrar os de Gabriel, e, pela primeira vez em muito tempo, há algo mais ali: um vislumbre de determinação, ainda frágil, mas real.
— E agora? — pergunta, sua voz mais firme, embora ainda carregada de dúvida. — O que faço com isso?
Gabriel cruza os braços, seu semblante endurecendo.
— A bússola é mais que um instrumento, Arthur. É uma chave, uma troca com o mal. Ela te direciona às coisas que deseja, e as direciona até você… mas o preço é a alma daquele que a utiliza — diz, sua voz grave, injetando razão à escolha final do exorcista. — No seu caso, entretanto, és exorcista. As coisas podem funcionar de forma diferente. Nossa alma pertence ao Criador, jaz com Ele, aguardando o juízo final. Entende?
Ouve em silêncio. O peso daquelas palavras cai sobre ele como um balde de água fria, inundando-o com um misto de dúvida e medo.
— Certo… — responde, com a voz baixa, enquanto respira fundo. — Essa minha fraqueza…
— Fraqueza? — interrompe, enquanto seus olhos analisam cada traço da expressão do rapaz. — Não sei dizer se isso é fraqueza ou apenas a sua maneira de sobreviver. Mas vou te dizer uma coisa: é melhor esquecer o mar de sangue do que se afogar nele. E lembre-se, Arthur, a vingança cura raramente o coração.
Ele ergue o olhar, os olhos brilhando com uma mistura de tristeza e confusão.
— Por que… por que me ajudou? — sua voz vacila, e o tom vulnerável é inescapável. — Nós mal nos conhecemos. Esse favor… é mais do que eu esperava…
A figura à sua frente suspira profundamente, a dureza de sua expressão suavizando por um momento. Ele se inclina levemente para frente, mantendo seus olhos nos dele.
— Por que você pediu… — responde, o tom direto, mas carregado de uma inesperada compreensão. — Não pediu por capricho, mas foi honesto, ainda que doloroso. Valorizo isso. Sinceridade, mesmo que ela leve a escolhas questionáveis. E, para ser honesto, prefiro que esse objeto esteja com alguém que, mesmo errando, acredita estar fazendo o certo… do que cair nas mãos de um monstro!
O toque de sua mão no ombro de Arthur é firme, mas não agressivo. Um aperto sutil, como quem oferece não apenas apoio, mas também uma advertência. Arthur sente o peso do gesto, tão significativo quanto as palavras. Ele fecha os olhos por um instante, tentando encontrar forças nas camadas de emoção que o envolvem.
— Só não deixe que isso te consuma ou te leve a machucar aqueles que nada têm a ver com isso. A raiva é um fogo, Arthur. Pode te aquecer ou consumir por completo. Use-a com sabedoria!
As palavras ressoam no silêncio carregado do ambiente, mas o peso nelas não parece suficiente para romper a barreira do luto que o envolve. Ele tenta reagir. Um sorriso se forma em seus lábios, mas não passa de um reflexo forçado, tão autêntico quanto as sombras que dançam ao redor, acolhidas pela escuridão cada vez mais densa.
— Vou usá-la para encontrá-lo… — sua voz é um sussurro, mas repleta de algo que não estava ali antes: um fio de fervor implacável. — Vou acabar com aquele desgraçado. Quando ele emergir das trevas, eu serei a luz que vai extingui-lo!
O homem ao seu lado observa, em silêncio, seus olhos captando a transformação sutil, mas inconfundível. Há algo feroz no olhar dele agora, algo que desperta memórias indesejadas e o faz determinado a mergulhar no abismo. Ele já vira esse mesmo brilho antes, nas garras de um amigo perdido para. Romero… um nome que ecoa como um aviso em sua mente.
Ele solta um suspiro pesado, como se o ar em seus pulmões carregasse o peso de uma decisão equivocada.
— Apenas se lembre, Arthur — diz ele, mas carregado de uma estranha melancolia. — A escuridão sempre observa. E a vingança… — ele faz uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado, como se esperasse que o jovem as absorvesse. — Se não for domada, transforma o caçador no caçado!
Ele dá um último aperto no ombro, uma tentativa final de transmitir alguma âncora de razão antes de se afastar. E após, a silhueta do homem desaparece na penumbra, fundindo-se com as sombras da ponte, deixando Arthur sozinho.
— Obriga… do…
O instante é raro e carregado de peso. Gabriel, antes guiado por princípios sólidos, agora está moldado pelo trauma, capaz de escolhas que nunca teria considerado. O pedido de Sofie o levou, algo que ele jamais revelaria ao rapaz.
Havia uma chance, uma última esperança de salvá-lo. E salvar alguém… era um propósito que seguia à risca…
À frente, o garoto encara o reflexo de sua face em algo que mais parece um espelho do que uma bússola. Quando olhos vermelhos emergem do brilho, ele fecha a mão com pressa, como se pudesse conter o que viu.
— Merda… — sussurra, a voz trêmula.
Medo e ansiedade o cercam. Ele ergue o olhar para os céus, mas não encontra alívio. A escuridão ao seu redor é densa e implacável. Cruzou a linha e, agora, está no território das trevas.
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