Capítulo 204 - Um Babaca? Sim! Mas... com suas próprias preocupações
Gabriel estaciona o carro e desliga o motor com um suspiro, os olhos fixos em Masaru, que está parado na calçada com uma expressão relaxada e amigável. O ar da noite carrega um silêncio inquietante, quebrado apenas pelo som do motor esfriando.
O barulho seco da porta do carro ao se fechar soa como um convite implícito. Ele caminha lentamente até o rapaz, sentindo o peso das situações passadas em seus ombros.
— Então você pegou a bússola… — comenta Masaru, quebrando o silêncio com um tom casual que contrasta com a tensão no ar.
Ele veio apenas por causa disso?
— É… — responde, cruzando os braços enquanto o encara de lado. — Por quê? Precisava dela? — Seus olhos percorrem os arredores por um instante, ciente de que estacionar ali por muito tempo pode lhe render uma multa, mas ele decide ignorar.
Algo na presença dele sempre o fazia priorizar o momento. Talvez fosse o tempo que não se viam, que não conversavam…
— Sim, na verdade… Kryntt… — Dá um passo à frente, o sorriso se ampliando. — Não te vejo desde… bom, desde que tudo aconteceu. Qual foi, vovô? Está chateado?
O celeste suspira profundamente, percebendo a provocação.
— Entendi… ele também está afogado na vingança. Esses jovens… — comenta, mais para si. E quando Masaru se aproxima, repete o gesto que usara com Arthur: coloca uma mão firme no ombro do rapaz, tentando transmitir alguma centelha de orientação. — Mas… Não, sabe, eu entendo. Por mais que eu não concorde com o que fez… Eles iriam ser mortos pelos carrascos da Ordem de qualquer forma. E, bem, eles tinham seus crimes. Não é como se você tivesse matado inocentes!
— Ótimo. — Responde, com um tom que beira o sarcasmo.
Ele aperta os lábios, decidido a ir além.
— Mas eu repúdio sua irresponsabilidade, meu amigo. Sei que você não se importa, que não quer ser um herói… mas há uma forma melhor de lidar com tudo isso! — firma a voz, lutando para manter a compostura. Aquelas palavras estão presas em sua garganta há tempo demais. — Você entende?
— Não…
O jovem revira os olhos, visivelmente incomodado.
— Masaru, falo sério. Estou tentando te dizer que os outros não precisam ser penalizados pelos males de nossos inimigos…
— Ehr… certo… da próxima vez, eu evito matar o Zé da obra… ou o fulano da pipoquinha… tá bom assim?
Ele não segura uma risada curta, apesar de não ver graça na desgraça alheia.
— Tô falando sério! — Tentando recuperar o tom severo. Mas a leveza dele sempre o desarma. — Pirralho…
— Também, pô! — rebate, desviando o olhar. — Sabe… eu não queria matar inocentes. Esse mundo é tão frágil… e, com o poder que tenho, crio um caos que nem sei se consigo controlar. Às vezes fico pensando… será que isso não é uma maldição?
Todos os exorcistas acabam se confrontando com essa questão inevitável. Lidam com o caos todos os dias, dançam à beira do abismo. Seria essa a porta para os pesares? Definitiva, inexorável… sem possibilidade de retorno?
— Você realmente vê isso como uma maldição? — A pergunta vem com um tom suave, quase casual, mas com um peso implícito que exige sinceridade.
Masaru hesita. Seus olhos vagueiam por um momento, buscando uma resposta que talvez já conheça. Por fim, ele balança a cabeça lentamente.
— Não… vejo como uma bênção! — Sua voz carrega um misto de convicção e resignação. — E os efeitos das minhas ações? Apenas consequências.
Ele suspira profundamente, passando os dedos pelos cabelos em um gesto quase inconsciente, mas revelador. Naquele momento, a máscara de despreocupação parece trincar.
— AFF… que grande egoísta sou, não é? — Ele ri, mas o riso tem uma nota amarga, quase autoindulgente.
— Essa sua sinceridade, Masaru… — diz após uma pausa, avaliando cada palavra como se testasse a profundidade delas. — É única. Deve ser… libertador, ser imparável, não acha?
Ele inclina a cabeça, pensativo, um raro lampejo de vulnerabilidade atravessando sua expressão.
— Talvez seja… — começa, a voz mais baixa. — Mas, para ser honesto, ser invencível pode ser exaustivamente tedioso! — Seus olhos se encontram, carregando uma franqueza surpreendente, quase desconfortável. — Às vezes, me pergunto se, colocando-me de propósito em desvantagem, isso reacenderia meu amor por… bem, por lutar.
Gabriel pisca, incrédulo, como se precisasse de um momento para processar aquelas palavras.
— Essa é a sua preocupação? — Ele inclina-se para frente, o tom carregado de incredulidade e um leve toque de humor ácido. — Por Elum, você é mesmo… único, Masaru. Uma verdadeira peça.
Então, ambos riem, uma risada curta e inesperada que dissipa a tensão por um instante.
— Então, cabeça de ovo… — Volta com o tom característico, carregado de sarcasmo, como se precisássemos se esconder atrás de sua irreverência. — Já que está nesse clima, que tal uma bebida?
O homem arqueia uma sobrancelha, como se ponderasse. Mas aquele dia… aquele dia tem sido um dos mais pesados em muito tempo.
— Melhor deixar para outro dia. — Ele sorri, mas o cansaço transparece em cada palavra. — Ainda tenho coisas que carrego, e acho que, por hoje, basta!
Masaru apenas dá de ombros, como se aquilo não fosse novidade.
— Saiu perdendo! — A risada ecoa com a habitual zombaria, carregada de uma leve ironia, a marca registrada do mais novo celeste.
Gabriel não se dá ao trabalho de reagir. Em vez disso, dê-lhe as costas, subindo os degraus desgastados da pequena escadaria que leva à porta de sua casa.
— Nos vemos… amanhã? — A voz soa hesitante, como se o interlocutor busque uma confirmação ou talvez um sinal de que aquelas interações diárias não são tão insignificantes quanto aparentam.
— Quando quiser, vovó! — Ele responde com o mesmo tom provocativo de antes, mesclado a um sorriso que talvez esconde algo mais profundo. Seus olhos, no entanto, estão fixos no céu, onde a escuridão começa a ceder espaço a um pálido indício de Aurora. — Hoje mesmo…
Há um breve silêncio, preenchido apenas pelo murmúrio distante do vento e pelo som abafado dos passos que se afastam.
— Boa madrugada… — A despedida vem baixa, carregada do entendimento mútuo.
Seja como for, o rapaz não responde.
Gabriel, então, continua subindo, a silhueta se fundindo na escuridão à medida que desaparece atrás da porta, deixando para trás o eco de palavras que parecem mais significativas do que qualquer um deles ousaria admitir.
Eles precisam desse reencontro e dessas palavras, e enfim, está.
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