Capítulo 205 - Luz não Acaricia o Corpo mas, a Alma!
Manhã do dia 41… um dia antes da maior tragédia da humanidade moderna.
É um dia marcado nos relógios de guerra e pelos ecos de um futuro sombrio, onde os gatilhos são apertados e as balas atravessam os corpos, rompendo os últimos vestígios de inocência.
O caos, como uma doença virulenta, se espalha sem piedade e, entre os sons distantes de destruição, uma verdade amarga se instala: o homem não pode mais ignorar sua própria decadência.
E na casa do diabo, Jahiel acorda. Seu olhar está fixo no céu, um vasto manto azul da aurora como uma pintura eterna, dia ou noite, ela encara a mesma paisagem.
Suas mãos, calejadas pelas sombras que chama de lar, deslizam pelo ar, tocando-a, por mais que seja uma miragem. Uma coisa tão fugaz, tão distante, que ela toca apenas com a ponta dos dedos, como se, ao fazer isso, pudesse aprisionar a beleza que não se permite em sua própria alma.
— A luz… — A voz que interrompe o silêncio é áspera e carregada de desdém. Rasen, com seus olhos preguiçosos e seu semblante desinteressado, a encara, ainda bocejando. — Deve ser uma merda não poder senti-la na pele, não é? — Sua voz é uma lâmina cortante, carregada de ironia.
E ela? Vira o rosto, seus olhos escurecendo, determinada a responder com desprezo.
— O que você sabe? — Ela o fita com um olhar frio, o da assassina que é. — Você é mais demônio que eu. A sensação da luz tocar sua pele não passa de uma ilusão!
Ele ri, um riso debochado que se estende como o som de uma corda esticada, prestes a arrebentar.
— Como assim? — zomba, inclinando levemente a cabeça. — Você é um macaco? Vai dizer que eu não senti a verdadeira luz?
— Não! — A voz dela soa firme, como um estalo no ar. E as palavras o atingem diretamente, como se ele fosse forçado a encarar a verdade cruamente. — A luz verdadeira não toca a pele, mas a alma. Ela não está acessível aos homens, como pensam. E nós? Nós demônios a tememos, porque sabemos o que ela significa! Isso é tudo!
O ex-messias a observa com uma expressão vaga, confusa e irritada ao mesmo tempo.
— E por que almeja isso? Sua cara, suas atitudes, não são de alguém que a teme!
— Quando Luciel ascender aos céus… — diz ela com uma convicção aterradora, a voz suave, mas carregada de uma certeza impossível de negar. — Ele vai romper o ciclo. A luz não vai mais pertencer aos homens, mas a vocês! Serão os parasitas, os párias. E nem a própria luz que os trouxe à vida será acessível a vocês!
O sorriso em seu rosto é amargo, mas também satisfeito, como se estivesse assistindo a uma peça que, finalmente, alcança seu clímax.
Rasen fica em silêncio por um momento, antes de desdenhar.
— Que deprimente… Então, ele quer tomar nosso lugar?
Jahiel cerra os punhos, e uma onda de ódio emana de seu corpo, como se pudesse partir tudo ao redor. Antes que o confronto se intensifique, uma nova voz se intromete. Passos suaves, porém firmes, aproximam-se lentamente.
— Claro que sim! — Liliel, com uma força imperturbável, segura o braço dela, forçando-a a recuar. — Luciel quer mudar o peso da balança porque acredita que é maior! Isso te decepciona?
Jahiel encara a princesa, seus olhos cheios de frieza.
— Ele deve achar a ideia de seu antigo grupo mais justa! — diz, com ironia, cruzando os braços e observando a interação com uma leve insatisfação. — Afinal, ele era o personagem principal da peça…
— Ehr? Eu? — Ele dá de ombros, seu tom carregado de uma sinceridade brutal. — Tô pouco me fodendo para isso! Só quero destruir essa merda de mundo, na mesma intensidade com que ele fodeu a minha vida! Isso me torna errado? Não sei, e não quero saber! Se isso me fizer poder foder com todos, caralho, estou dentro!
A revelação paira como uma lâmina afiada, cortando o véu de qualquer remorso. Ele não se importa mais com nada, nem com a luz, nem com a escuridão.
Está apenas disposto a fazer com que o mundo pague pelo que fez com ele.
A entidade Liliel observa com um olhar sombrio enquanto Jahiel encara a aurora mais uma vez. Não é a luz que ela vê, mas uma miragem, uma ilusão temporal aprisionada no espaço e no tempo, como se fosse algo intocável.
Algo que, no fim das contas, talvez nunca pertença a ninguém, mesmo que seu retrato esteja eternamente preso ali.
— Justo… — murmura a princesa demônio, com um toque de nostalgia e compreensão que faz o sangue gelar. — Você me lembra alguém… Juro… Bezeel. Meu tio. Depois que sua mente se tornou a casa de um louco, ele sucumbiu e tentou destruir tudo! — Ao falar, a rua parece congelar por um segundo, e todos os demônios presentes naquela dimensão sentem um arrepio coletivo.
O destruidor de mundos, o ladrão de essências, é o maior dos temores, uma lenda que só se conta em sussurros.
O clima então se torna pesado até demais, e a entidade, Jahiel, que observa tudo da periferia da conversa, decide se retirar.
— Vocês são chatos… — murmura, já se afastando.
Seu tom entediado corta o entusiasmo dos dois.
Com um estrondo, o portão ao lado da garagem se fecha, o som ressoando pela rua deserta, como um presságio de algo iminente. A raiva dela parece ganhar forma no ar através de sua força, moldando-se em uma energia espessa, carregada de uma negatividade opressiva que torna a atmosfera ainda mais pesada.
— Ela está se acostumando a trabalhar com um humano…
Uma risada sincera escapa dos lábios do homem, contrastando com a gravidade da situação.
— Ela já te ensinou, pelo menos? Um pouco?
— Ela me mataria se não tivesse chegado… — responde ele de imediato, sem hesitação, um reflexo claro de sua frustração acumulada. Ele balança a cabeça, os olhos acendendo em uma mistura de impaciência e a ansiedade que o consome. — É óbvio que não se acostumou e nunca vai… enfim, não!
Com um movimento impessoal, ele se senta sobre o capô de um carro, cuja pintura verde desbotada parece mais velha que as ruas esburacadas ao redor. O carro parece congelado no tempo, assim como ele próprio, preso em um ciclo sem fim.
— E nem vai! Temos o quê? Um dia? Seria melhor você me passar isso, não acha?
— Eu? — Ela o encara com um olhar desafiador, respondendo sem sequer pensar. — Esquece!
— Então como? — suspira ele profundamente, mas o desinteresse é evidente em sua voz. Como uma criança entediada, ele desvia o olhar para as ruas ao redor. — Posso pedir ajuda aos outros demônios?
— Tentou?
Ele parece nada mais que uma criança mimada, perdida com o próprio poder.
— Não!
— Então está aí sua resposta. Não é difícil! — Ela dá de ombros e, sem mais palavras, começa a caminhar, seus passos firmes e decididos. Antes de ir, lança um último olhar para ele, como se já soubesse exatamente quem ele é. — Você é uma merda… mas é um prodígio. Conseguirá dominar tudo em um dia… só… basta querer! — As palavras soam mais como uma bronca do que uma motivação.
É um aviso disfarçado de desafio.
E esse dia, apesar de aparentar calma à primeira vista, carrega o peso de algo inevitável que, mais tarde, está prestes a desabar.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.