Capítulo 209 - Só um Homem Tranquilo
A noite envolve a cidade em um véu de tranquilidade e mistério enquanto Elizabeth abre a porta de casa. Seus pés doem após mais um longo dia de trabalho, e o eco de seus sapatos de salto ressoa no piso até que ela se livra deles com um suspiro de alívio.
Na sala, Gabriel está largado no sofá, assistindo The Endless, sua série favorita. A luz azulada da TV reflete em sua face, mas o que domina sua expressão não é cansaço, e sim um brilho lá, no fundo, há tanto tempo adormecido.
— Então, chegou primeiro hoje? — provoca ela, com um sorriso no rosto, enquanto pendura o casaco na entrada.
Ele, pego de surpresa com sua chegada, vira-se com um movimento hesitante. Na mão direita, segura uma fatia de pizza vegetariana, e na esquerda, um copo de suco de uva. Um sorriso sem graça surge em seu rosto.
— Ah… Ehr… — desviou o olhar por um instante, os dedos roçando distraidamente a nuca enquanto buscava as palavras certas. Sua postura estava relaxada, mas algo em seu tom sugeria um leve desconforto. — Eu… nem fui trabalhar hoje…
Em resposta, ela ergueu uma sobrancelha, os olhos estreitando-se em um misto de surpresa e curiosidade.
— Férias não programadas, é isso? — Sua voz carregava um tom irônico, mas sem a intenção de ferir.
Já o exorcista deu de ombros e soltou um suspiro que parecia pesar mais do que o ambiente ao redor. Ele se levantou do sofá com um movimento preguiçoso, os pés descalços contra o chão frio, enquanto ajeitava a barra da camisa casual que parecia ter sido vestida sem pressa.
“Será?”
Pensa, a pergunta que faz desde que acordou está nascendo.
— Algo assim… — Ele hesitou, os olhos buscando algo indefinido no horizonte da sala. — Achei que precisava… de uma pausa, sabe? Não é sempre que me dou esse luxo. Desculpa por não avisar. Foi… uma decisão meio impulsiva.
Ela inclinou a cabeça levemente, estudando-o como se tentasse decifrar o peso não dito em suas palavras. Um sorriso sutil curvou seus lábios, e ela se aproximou com passos deliberadamente lentos, quase como se o momento pedisse uma coreografia cuidadosa.
— Desculpa? — repetiu, sua voz agora mais baixa, quase um sussurro.
“Que posso…”
Sem esperar por mais explicações, ela o envolveu em um abraço firme, seus braços ao redor de sua cintura. A rigidez inicial dele desmanchou-se com o toque, e ele cedeu, permitindo-se encontrar abrigo naquele gesto tão simples quanto necessário.
Quando seus lábios se tocaram, foi mais do que um beijo: era um elo silencioso, um pacto entre duas almas cansadas que encontravam consolo uma na outra. O mundo ao redor parecia desaparecer, deixando apenas a intimidade daquele momento, em que a respiração de ambos se fundia em um ritmo único e reconfortante.
E o encara com um brilho provocador nos olhos quando ambos se afastam um pouco.
— Da próxima vez que decidir “curtir”, pode, por favor, convidar a mulher da sua vida?
“Posso ser feliz?”
Enfim, termina.
E arqueia uma sobrancelha, rindo da declaração ousada.
— Da minha vida, é?
— Sim, da sua vida… — Ela coloca as mãos nos ombros dele, inclinando-se. — A sua dona!
Gargalha, puxando-a pela cintura e a beijando novamente. Mas ela, sempre imprevisível, o empurra no sofá e se joga por cima dele com a mesma energia jovial que tinham há anos atrás.
Como dizem, o casamento não esfria, apenas se aquece mais e mais…
— Que tal passarmos a madrugada inteira vendo nossa série favorita? — sugere, seus olhos brilhando de entusiasmo.
Ele balança a cabeça, rindo da intensidade dela. Ela é o vulcão que faltava em sua vida, e agora, ele se lembra do porquê de ser ela e não outra garota.
— Você está louca? — Suspira profundamente, rendendo-se à alegria da esposa. — Como se eu fosse dizer não. Esse convite já tem meu “sim” em qualquer dia ou realidade!
— Bom menino — Ela se levanta, notando a pizza quase devorada na mesa de centro. — Mas já que está sendo um marido tão comportado… rola uma cerveja?
— Sem álcool, lembra? — responde firme, mas com um sorriso tranquilo.
Elizabeth revira os olhos, pegando a caixinha de suco que ele largou. Ela suga o canudo com tanto entusiasmo que o faz murchar, provocando um som engraçado que arranca risadas dos dois.
— Você comprou mais disso, não comprou? — pergunta, fingindo seriedade.
— Um fardo inteiro. Está bom?
— Não. Mas servirá… Senhor Certinho.
Ela se levanta de repente, ajeitando os cabelos. Mas ele não consegue evitar observá-la com admiração, capturando aquele momento simples que parece conter o mundo inteiro.
— Vou tomar um banho rápido, já volto.
— Certo! — Ele pausa a série assim que ela sai e, com a sala mergulhada em um silêncio acolhedor, olha para suas próprias mãos.
Um sorriso pequeno, quase imperceptível, se forma em seus lábios. Há algo na presença dela que dissipa as sombras que costumavam assombrá-lo.
Gabriel sabe que ainda tem uma montanha de angústias e sofrimentos para escalar, mas, naquele instante, com a esposa ao seu lado, sente que a felicidade não é um destino inalcançável.
É uma jornada que finalmente começa a trilhar. A página da sua vida está virando e, pela primeira vez, ele acredita que será para algo melhor…
Pessoas, lugares, circunstâncias… Tudo é passageiro. Mas o estado de espírito? Esse é definido por você.
Ao contrário dele, a busca pela clareza da mente parecia um objetivo distante para Gallael, que, ao lado de Liliel, observava os céus. Eles estavam ali, em silêncio, aguardando a passagem do dia com uma calma inquietante. O crepúsculo se aproximava, mas algo no ar os fazia sentir que esse momento seria decisivo, embora não soubessem como ou por quê.
— Então, você está realmente certo disso? — ousou perguntar Liliel, sua voz suavemente tensa, refletindo uma preocupação não verbalizada. — Notei algo em você… Sua voz, seus olhos, perderam um pouco da força. Mas, em troca, ganharam um brilho!
Gallael se endireitou lentamente, seus ombros caindo como se o peso do mundo estivesse sobre eles. Ele arqueou as costas, os músculos tencionando por um momento, e com um suspiro profundo, ficou de cócoras. De lá, teve a visão panorâmica da via principal que cortava toda Nova Tóquio. O movimento frenético da cidade parecia tão distante, quase como um eco abafado de uma realidade que não os tocava mais.
— Esperança… As margens do caos… dizem os homens! — A ironia dançava nas palavras dele, como se estivesse se provocando com elas. Ele olhou para o horizonte, sentindo-se pequeno diante da imensidão. — Somos tão pequenos… E eles… tão irônico o destino, não?
— Esperança… — repetiu a princesa, quase como um sussurro, seus olhos vazios de tudo, menos de um questionamento imenso. Ela sabia que, àquele ponto, sua visão já não era mais aquela de antes, não era mais a do cão de Luciel.
Algo dentro dele mudou, e agora o que restava era uma busca sombria por algo que nem entendia completamente — julga ela.
Ela se aproximou dele, mas sua postura era firme, decidida.
— Acha que devemos ter fé? — sua voz tinha uma dureza agora, como se tivesse se resignado à responsabilidade da decisão.
E ele a olhou, seu olhar profundo, distante, como se carregasse séculos de experiência em um único momento. Não respondeu de imediato. Quando falou, a frieza de suas palavras parecia cortar o ar.
— Devemos… — a palavra parecia um eco de uma certeza que não possuía mais fundo. Não mais.
De repente, como se o próprio céu estivesse respondendo à tensão do momento, Nox caiu. Em seu lugar, a luz que pertence à Aurora se acendeu, mas antes que qualquer um pudesse reagir, as nuvens cobriram rapidamente o espaço, tornando o dia mais escuro do que qualquer noite anterior.
O peso da escuridão estava ali. A noite mais longa estava diante deles. E com ela, as peças estavam mais uma vez movidas.
Agora, nada mais parecia certo.
— Veremos… — disse, seus punhos cerrados, uma intensidade feroz tomando conta dela. O futuro estava em jogo. O caos se aproximava, como uma onda imensurável prestes a engolir tudo.
E ali, no vácuo de suas palavras… Tudo converge para o caos!
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