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    Aceitar, ouvir, entender e discernir podem ser tarefas desafiadoras para quem enfrenta a complexidade do luto, especialmente quando sentimentos como dor, ódio e solidão se entrelaçam. Afinal, qual é a melhor forma de lidar com o luto?

    Nem ele sabia, nem seu “salvador”… Mas como conseguiria entrar em sua cabeça dois dias após… quando, enfim, os dois pudessem construir uma ponte? Sua perda ainda ardia em seu peito; afinal, apenas dois dias… mas já conseguia distinguir o que falavam e o que não falavam.

    E lá estava, sentado em um banco de madeira, no último lugar intacto de Nova Tóquio: o bar do próprio demônio. Em sua mão, água, e à sua frente, uma porção de peixe frito pronta para ser devorada. A atmosfera era estranha, carregada de um peso que parecia se misturar ao cheiro amadeirado do balcão gasto e ao brilho fraco das lâmpadas penduradas no teto.

    A madeira escura das paredes absorvia essa atmosfera, tornando o ambiente ainda mais soturno, quase sufocante. “—Então você tinha um bar aqui… que… esquisito…” — murmurou, desviando o olhar para as prateleiras repletas de garrafas antigas, algumas cobertas por uma fina camada de poeira.

    Era um fato novo para ele, algo que não esperava. Um bar, no meio daquilo tudo? O demônio, sentado do outro lado do balcão, sorriu levemente — ou assim pareceu; era estranho ver uma caveira tentando sorrir — com um ar cansado, ajeitando o copo de vidro entre os dedos esqueléticos. “—Ainda tenho… Mas… é de fato esquisito!” — Sua voz era arrastada. Ele fez uma pausa, observando a superfície do líquido âmbar dentro do copo antes de continuar: — “Mas isso, no final, é só mais uma das provas que eu mencionei. O que é um demônio sem sua natureza? Apenas um humano. Sem aquele instinto voraz que busca destruição e corrupção… é só uma vida comum, livre. Mas essa possibilidade é ínfima, quase inexistente diante do todo.” Não respondeu de imediato; apenas cruzou os braços, mantendo a expressão fechada. O ser suspirou, apoiando os cotovelos no balcão, os olhos brilhando em meio à penumbra da expectativa. “—Eu mesmo sou vítima de uma anomalia. Mas o que são anomalias senão caminhos do destino inacessíveis a 99,9% das pessoas? E… seres?” Isso fez o garoto franzir a testa. “—É impossível, resumindo!” — disse, desviando o olhar. — “Mas ainda não entendo por que isso nos faz aliados. Você explicou o que é, tá, mas… não me tira da cabeça que, por mais racional que pareça, você ainda é um demônio. Não deveria odiar os humanos?” A risada dele foi baixa, quase imperceptível, mas carregava um certo cansaço. Não queria entender onde o ciclo de ódio natural se quebrava… seu eu, que focava mais em seu peito que nas curiosidades de sua mente.

    Mas tentava, martelava, para sair de sua agonia; queria ficar só… “—Nos faz aliados porque eu pude entender o problema da equação!” — Ele girou levemente o copo em sua mão, observando o reflexo da luz sobre o líquido. — “Os demônios não são naturais da criação.”

    Eles são uma doença que surgiu junto com a escolha. Foram tantos ciclos dessa guerra que, no final, a solução que me veio foi tão simples…

    Ergueu os olhos para o jovem; sua expressão era firme, porém serena.

    — O ciclo precisa terminar. Uma nova era onde só os homens caminham, onde possam decidir por si o futuro. Você entende?

    Isso lhe causou um arrepio que percorreu sua espinha. Havia algo na forma como ele dizia aquilo que o deixava inquieto.

    — Você quer… que o mundo tenha uma nova chance? — Sua voz soou hesitante. — Mas… isso é muito altruísmo, quase irracional, não?

    O ser inclinou a cabeça para o lado, como se refletisse sobre a palavra.

    — É… Mas tentar enxergar a subjetividade desse embate só vai derramar mais e mais sangue. Por isso, quero que a balança pese mais para os homens do que para os demônios!

    O jovem apertou os punhos.

    — E o que espera de mim?

    O demônio sorriu novamente de canto e, com um movimento lento, ajeitou-se no banco.

    — Espero que seja mais um pilar para os homens, um que não trilhe por seus egoísmos, que valha sua segunda vida! — Seu olhar cravou-se no dele, denso como a noite. — Vou te ajudar em seu aprimoramento espiritual, mas antes… preciso saber. Você quer isso?

    A pergunta foi como um disparo no ar, como um peso, e ele sentiu seu coração martelar contra o peito.

    — Eh…

    — Se não quiser, não há problema. — Sua voz foi mais suave dessa vez. — Você perdeu sua mãe, mas pode querer seguir outro caminho. O que me diz?

    Ele respirou fundo. A perda ainda era recente, um buraco no peito que insistia em doer a cada pensamento.

    — Para falar a verdade, nem eu sei. — Seus olhos brilharam por um instante. Foi uma mera fração contra minutos vazios, rapidamente reprimida. — Perder minha mãe… ainda não parece uma verdade absoluta. Não sei o que quero fazer… Só… me dê um dia para pensar, está bem?

    O outro assentiu lentamente, um pequeno suspiro escapando de seus lábios.

    — Se quer um dia, terá. — Então, inclinou-se ligeiramente para frente. — Mas… ao menos vai comer e me dizer seu nome?

    Isso o fez hesitar, mordendo o lábio.

    — Eh… me chamo Megumi.

    Mas não era por seu nome, e sim por seu sobrenome.

    — Megumi?

    Assentiu, desviando o olhar.

    — Watanabe.

    Entendeu na hora. Era o segundo filho de um dos três clãs centenários de Aija. E percebia seu azar: era o que não foi escolhido.

    — Bem, Megumi Watanabe, ou seja lá quem seja… vamos ver para onde o destino nos leva!

    — Vamos…

    Sua atenção voltou-se para o prato. Era hora de jantar. A sensação era ambígua: comer a comida feita por um demônio parecia algo não natural; afinal, quem comeria a comida feita pelo diabo?

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