Capítulo 269 – O cão e o lobo
A grandiosa megacidade de Yokohama, outrora a imponente capital do império, agora ardia sob um céu escarlate. A fumaça erguia-se, misturando-se ao crepúsculo, como se a própria cidade estivesse expelindo sua alma carbonizada. O tilintar do metal retorcido, os gritos sufocados e o som seco dos edifícios desmoronando eram a nova sinfonia da metrópole.
A ordem havia atacado – talvez fosse mais correto dizer que havia instaurado o caos. O solo sagrado, onde gerações de líderes marcharam com orgulho, agora era um cemitério profanado.
No epicentro da carnificina, Miyazaki permanecia, os olhos brilhando em meio ao delírio. O ar ao seu redor vibrava, distorcendo a realidade como uma miragem. Suas vestes, outrora imaculadas, estavam salpicadas de vermelho, tingidas pelo êxtase da aniquilação. Entrelaçou os dedos, como se conduzisse uma orquestra invisível, e, com um sussurro, desatou seu feitiço.
Foi uma execução divina e profana.
Corpos dos soldados imperiais eram dilacerados como papel, seus ossos estalavam, suas entranhas se espalhavam pelo concreto rachado. Braços e pernas, desmembrados, lançavam-se ao ar como marionetes de carne. O sangue jorrava em arco, tingindo as ruínas com um vermelho, enquanto o próprio solo parecia beber a essência dos mortos.
As balas disparadas contra o assassino e seus servos jamais encontraram seu alvo. Desviavam-se no último instante, como se temessem tocar algo além da compreensão humana. Ele era mais do que um exorcista—era uma calamidade encarnada.
E os soldados do império, outrora símbolos da ordem e da disciplina, agora não passavam de retalhos humanos espalhados pela avenida. Seus uniformes militares, que antes carregavam o orgulho e a história de uma nação, estavam rasgados, reduzidos a meros trapos encharcados de vermelho.
E no meio de tudo isso, ele sorria.
Pois, naquele dia, Yokohama testemunhava não somente a ruína de um império, mas o nascimento de algo muito pior.
Os gritos civis rasgavam o ar como lâminas, uma cacofonia de desespero que se misturava ao crepitar das chamas e ao cheiro ferroso da morte. As ruas, outrora repletas de vida, agora eram um campo de horrores, onde a razão se dissolvia no instinto mais primitivo de sobrevivência.
Ao lado do exorcista, alguns hesitaram. Não eram assassinos natos—não ainda. Suas mãos tremiam, seus olhos refletiam a dúvida, o horror de cruzar uma linha sem volta. O que haviam se tornado? Estavam ali para derrubar tiranos, mas agora contemplavam corpos despedaçados de inocentes.
Outros, porém, abraçaram a selvageria como se sempre tivesse estado dentro deles, aguardando uma desculpa para ser libertada.
A fome de poder e vingança corroía suas almas, transformando-os em bestas sem amarras. Riam e urravam, avançando sem piedade. Uma mulher grávida, ajoelhada, implorava por sua vida, as mãos sobre o ventre como se pudessem proteger seu filho do inevitável. Mas para aqueles que agora se viam como os novos donos do mundo, não passava de um obstáculo, uma mancha que deveria ser apagada.
Foi como um tiro do exorcista.
Ele puxou o oxigênio à sua volta, comprimindo-o em uma linha quase invisível entre sua mão e o alvo. Então, com um estalo quase imperceptível, a faísca surgiu — pequena, vibrante, mas faminta.
O sangue quente salpicou o chão, e o silêncio de sua morte foi substituído pelo choro de um recém-nascido, que não durou mais que alguns segundos.
— Socorro… por favor… me ajude…
A voz de outro, dessa vez ferido, se arrastava pelo caos.
— Morra! — veio a resposta, seca, definitiva.
A justiça havia se tornado uma desculpa para o massacre. Homens que antes erguiam bandeiras contra a tirania agora afundavam na mesma lama de crueldade que juraram erradicar. O ódio os consumia e, no final, tornavam-se piores do que os ditadores que tanto desprezavam.
O ciclo de sangue e vingança nunca terminaria. Era uma roda cruel, girando e esmagando tudo sob seu peso.
E assim, Yokohama, que já se despedaçava sob a doença escura, desabou por completo. Não restava império. Não restava ordem. Somente cinzas, cadáveres e um silêncio que, um dia, seria substituído por novos gritos de dor.
O cheiro de sangue impregnava o ar, denso como neblina. O palácio, outrora um monumento de glória imperial, agora era apenas um mausoléu encharcado de vermelho. Mais de quinhentos mil soldados mortos, uma ferida aberta que se estendia de Nova Tóquio até ali. Os civis? Dez, talvez vinte vezes esse número. Vítimas do conflito, da doença, da fome.
E agora, no coração da tragédia, os malditos assassinos se depararam com ele.
O Cão do Império.
Kagetsu no Akihiro observava o cenário com olhos em lamento, impassíveis. A frente dele, os exorcistas de manto negro, alinhados como sombras vivas, esperavam silenciosos.
E diante, o único, ensanguentado, exausto, mas de pé e orgulhoso disso.
Miyazaki.
— Então, vai sozinho… contra vinte e dois homens? — Deu um passo à frente, medindo o jovem com desdém. Para ele, não passava de um desafortunado perdido na própria fúria.
— Mesmo que fossem mil! — respondeu o garoto, sem hesitação.
O salão ecoou com risadas secas, desprovidas de piedade. Nenhum deles sabia o que era compaixão. Nenhum deles se importava.
— Ora, ora… se não é um herói! — Zombou, aproximando-se até poder sentir a respiração do garoto. Sua mão deslizou pelos cabelos negros dele, puxando-os com uma provocação.
O jovem se esquivou, os olhos ardendo em ira.
— Seu filho da puta… — sua voz tremia, mas não de medo. — Como pode? Como consegue rir após matar tanta gente?!
O silêncio pairou. Os olhos do exorcista brilharam com tédio.
— Pessoas? Ah… — desdenhou, empurrando o garoto contra a parede com uma força absurda. — São só animais… frágeis… como gravetos…
— Seu verme! — O punho do jovem voou em resposta.
Mas ele nunca atingiu o alvo.
O soco que recebeu no estômago veio primeiro. Seco, brutal. O impacto foi tão esmagador que seus ossos cederam no mesmo instante. O ar fugiu de seus pulmões e ele engasgou, cuspindo sangue. O mundo girou e seu corpo fraquejou.
— Verme? — sussurrou, puxando-o pelo cabelo para encará-lo novamente. — Se for deselegante mais uma vez… bem, você morre!
Mas nada adiantava. A adrenalina queimava. A raiva rugia. Seu punho se ergueu, a injustiça fervilhando em seu peito.
— DESGRAÇADO!
E então, tudo parou.
Sua visão se fragmentou em segundos. Uma dor cortante, uma sensação de leveza repentina.
O corpo caiu de joelhos antes de desabar por completo. A cabeça rolou até parar a poucos metros, os olhos ainda arregalados, mas já sem vida. O sangue quente se espalhou pelo chão de mármore, tingindo os pés dele com um carmesim vibrante.
E ele?
Sorriu.
Um sorriso largo, de prazer.
E diante dele, os exorcistas hesitaram. Até mesmo os mais cruéis sentiram o peso do instante, como se a sala houvesse se tornado um lugar onde até os demônios temiam pisar.
E então veio a pergunta que ninguém ousava dizer em voz alta, mas que ecoava na mente de todos.
Era o próprio diabo em carne e osso?
Ou pior…
Seria o diabo a criatura mais humana que já existiu?
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