Índice de Capítulo

    Vagando entre as ruínas de uma vila esquecida, o ex-imperador de Aija caminhava como um espectro condenado, seus pés calejados afundando na lama fria. A poeira e as cinzas do passado pairavam no ar, impregnando suas vestes esfarrapadas e sua pele pálida.

    Estava a vinte minutos de Yokohama.

    Foi expulso, a pontapés, declarado inimigo do povo, amaldiçoado como um traidor indigno de sequer pisar onde antes era reverenciado. Seu nome, outrora um decreto de ordem e poder, agora não passava de uma blasfêmia.

    Ele se olhou no reflexo sujo de um vidro quebrado. O rosto que viu não era seu. Não mais.

    Tsukihana… Asayume… Reigen?

    Os nomes ecoaram em sua mente como lâminas, cravando-se em sua alma.

    Sua mulher — sua cabeça rolou aos seus pés, os olhos vazios mirando o além.

    Sua filha — queimada viva, sua voz reduzida a gritos e cinzas levadas pelo vento.

    Seu irmão — esmagado por uma força invisível, sua existência apagada em um instante de horror.

    Vítimas da crueldade de Miyazaki.

    Esse era seu castigo: ser odiado por aqueles que antes o exaltavam, testemunhar sua linhagem ser dizimada e definhar até se tornar apenas uma sombra.

    Um vagante.

    Um corpo seco.

    O que restava?

    Nada.

    Nem mesmo um mundo onde pudesse reconstruir sua vida. Mesmo ali, tão longe de tudo, a própria vida já não existia mais.

    Perdeu tudo. Até a própria existência.

    Seria esse o pior destino que um homem poderia sofrer em vida?

    Não. Mas, com certeza, ele havia sofrido o bastante para ser consumido pelo ódio. Um ódio profundo, visceral, sem forma, sem limites.

    Porém, ódio sem força não passa de um suicídio solitário.

    E nenhum olhar testemunharia seu fim. Nenhuma alma sussurraria seu nome em lamento. Simplesmente desapareceria, consumido pelo pior que o mundo tem a oferecer.

    Mas… isso era a verdade?

    Não.

    Nem o sofrimento absoluto, nem a alegria intocável são lentes capazes de revelar o que realmente jaz por trás da existência.

    Nem mesmo Niftar enxergou o mundo verdadeiramente.

    Porque a verdade não se encontra no que é visto, nem no que é sentido. Ela reside na essência.

    E a essência está além das ideias, além dos conceitos primários que moldam o entendimento humano.

    A morte é apenas a concepção final de uma experiência.

    E além dela, restam apenas os fragmentos póstumos de sentimentos extraídos no último suspiro. A alma? É apenas um reflexo. E a ideia, a primazia de uma percepção fugaz.

    O que seria, então, seu destino?

    Era a mais humana das condenações.

    A perda absoluta.

    Não de riquezas.

    Não de poder.

    Mas daquilo que jamais poderia recuperar: a existência material de tudo o que um dia chamou de seu.

    Algumas horas após desmaiar, ele despertou com um solavanco. O frio da chuva castigava sua pele encharcada, e a lama endurecida formava uma máscara grotesca sobre seu rosto. O gosto de terra e sangue invadiu sua boca, tornando a respiração um fardo pesado. Seus membros tremiam, não apenas pelo frio, mas pelo peso invisível que os prendia ao solo.

    O trovão rasgou o céu, iluminando o cenário de devastação ao redor. Cinzas flutuavam no vento úmido, dançando como espectros de um passado irreversível.

    Ele ergueu os olhos e, entre a névoa e o cheiro acre de queimado, viu uma silhueta: um garotinho.

    O pequeno estava descalço, os pés afundando na lama suja de cinzas e sangue. Vestia apenas uma bermuda rasgada; a pele marcada pela fuligem e pelo medo. Seus olhos, arregalados, eram um reflexo puro de horror.

    Uma vítima.

    Uma vítima dele. Dos monstros que ele mesmo fortalecera, dos homens que guiara à ruína.

    E foi então que o homem se ergueu, como se forjasse coragem do desespero. Abriu os braços, inflou o peito numa afronta final ao destino.

    — Mate-me!

    Sua voz era um eco quebrado, um vestígio do que um dia comandara exércitos e inspirara multidões. Um dia, palavras suas ergueram impérios, forjaram heróis, concederam poder. Agora? Agora eram apenas súplicas covardes, uma fuga disfarçada de penitência.

    — MATE-ME!

    A tempestade rugia, mas não abafava a súplica. O garotinho recuou, os olhos transbordando lágrimas que se misturavam à chuva. O homem o viu fugir, e naquele instante a última chama dentro dele se apagou. Como um castelo de cartas desmoronando sob o peso da própria culpa, ele caiu de joelhos, afundando na lama.

    — Por favor… mate-me… alguém… mate-me…

    Mas por que ele mesmo não o fazia?

    O suicídio era um pecado, diziam. Mas sua fé? Sua fé já havia se dissipado como fumaça de um campo em chamas.

    Ele perdeu tudo.

    E onde estava Elum?

    O deus que não livrara os homens de sua culpa, que os deixara perecer na consequência de suas próprias escolhas?

    No mesmo lugar de sempre.

    No mesmo trono, observando, enquanto aqueles que pecaram só lembravam de seu nome quando estavam à beira do abismo.

    Parece injusto para o tolo, mas o tolo se sente injustiçado até mesmo pela grama que não cresce em seu quintal. Ele amaldiçoa o vento por soprar em direções que não favorecem seu caminho, lamenta-se pela luz que nasce tarde demais e pela que some cedo demais. Humanos, demônios…

    Nenhuma casta, nenhum título, nenhum destino escrito poderia escapar dessa maldição. Um sobretudo, poder, influência? Nada disso livrava alguém da essência do sofrimento e da miséria.

    E, triunfante, Bezeel se erguia do manto escuro de sua própria sombra. Como um titã solitário, emergia do abismo sem um único traço de humanidade ou piedade. O único ser que não se importava com nada disso. Azar? Sorte? Conceitos irrelevantes. Ele não desejava nada e, ao mesmo tempo, desejava tudo.

    Seu desejo era um paradoxo, que corroía a própria noção de existência.

    Pense. Sua mente é fragmentada em milhões de anseios de si. Cada pedaço é um eco de sua fome insaciável, de suas vontades contraditórias. Mas não há um ponto de equilíbrio, não há razão, apenas a insanidade que cresce como raízes retorcidas, apenas a destruição que se torna inevitável. Um universo de pensamentos, todos gritando ao mesmo tempo, exigindo, consumindo, ruindo.

    Já haviam se passado centenas de anos. O tempo não era uma bênção ou uma maldição para ele — era apenas um rio seco, estagnado, irrelevante. Seus irmãos, os demônios? Extintos. Não por acidente, mas por sua própria vontade. O caos não tolera concorrência. Alum? Reduzido a um pulsar frio dentro de seu coração, uma lembrança que não se apagava, mas também não respirava. E os exorcistas? Nenhum jamais alcançou o brilho de existir sob sua sombra.

    Ele deixou um rastro de destruição. Mas chamar de “rastro” era um insulto — o que Bezeel fez foi rescrever as leis do próprio conceito de aniquilação. Planos inteiros desmoronaram sob seu olhar indiferente. “Deuses” caíram. O que é a eternidade diante de algo que se alimenta do próprio infinito?

    Agora, diante das portas do paraíso, ele permanecia imóvel, envolto em trevas, encarando a barreira final entre o que foi e o que poderia ter sido. Mas não havia luz ali, não para ele. Apenas um véu de escuridão tão denso que subvertia o conceito de poder. O que é a salvação quando já não resta ninguém para ser salvo?

    — Já caíram tantos… Por que não se rende, seu tolo?

    — Me render? A ti?

    Quem falava era aquele que governava os céus sob o comando de sua senhora — Gael, líder das Dez Virtudes, o anjo mais poderoso. Seu olhar atravessava eras, sua presença era um monumento à ordem e ao equilíbrio, mas agora… agora estava sozinho.

    — A Ordem te abandonou… Abandonou aos guardiões… Este mundo é só reflexo de outro… Não há por que lutar! — disse Bezeel, envolto em trevas que pareciam se alimentar do tecido da existência, ergueu o olhar. O canto de seus lábios curvou-se em um sorriso quase desdenhoso, um reflexo de sua certeza inabalável.

    Não precisou olhar ao redor para saber o peso de sua destruição. O chão celestial estava coberto de corpos alados — companheiros de Gael, as Dez Virtudes, agora apenas fragmentos do que um dia foram. Um massacre tão absoluto que não havia eco de suas almas, apenas o silêncio eterno.

    E o todo-poderoso era o último.

    — Nunca.

    O anjo respirou fundo, fechando os olhos por um instante. Tamanha era a tolice de seu inimigo…

    Ele, no entanto, não se importava com conceitos como arrogância ou prudência. Ele apenas ergueu uma mão. Uma única mão. E nesse gesto, criou a maior das desgraças.

    A escuridão tomou forma. Mas não era apenas um mero domínio sobre sombras — não, havia ultrapassado os limites do que era conhecido. Manipulando trevas em sua forma mais pura, ele corrompeu espaço, tempo e existência, transmutando-as em algo além de qualquer outro demônio jamais havia concebido.

    A escuridão plena.

    Ela se manifestou como uma esfera que reluzia o oposto da luz. Um vazio que devorava tudo.

    O céu, antes dourado e glorioso, sumiu. As nuvens de brilho etéreo se desfizeram como cinzas levadas pelo vento. A cidade suspensa, sustentada pelo pilar de luz que irradiava sobre o mundo físico e astral, foi engolida em uma fração de segundo.

    Gael recuou. Mas era tarde demais.

    A força da escuridão avançou, dissolvendo tudo em seu caminho.

    E do demônio, até a armadura — símbolo de seu poder — desintegrou-se diante da energia implacável. Seu braço quase foi tomado também.

    Então olhou para o vazio que criara. Nada restava. Nem trono, nem céu, nem santuário. Apenas ele e o anjo.

    — Eu avisei… — murmurou, sua voz um eco na escuridão infinita.

    Mas o anjo não se calou. Não se ajoelhou.

    — E eu não ouvi!

    Seu brado ressoou através do nada. Seu corpo, agora nu, esbelto e esculpido como uma obra-prima da criação, brilhava em meio à escuridão. Suas seis asas, outrora alvo de glória, agora tomavam para si o que restava da luz. Antes que tudo se desfizesse, absorveu a essência do que um dia fora sagrado.

    E então, ele se tornou.

    Lucis, o portador de sua divindade.

    Enquanto, diante dele, envolto na sombra que engolira a própria realidade, o demônio permanecia como o portador do inimigo, Alum.

    E ali, entre o que restava do infinito e do nada, suas vozes se entrelaçaram uma última vez:

    — Será… nosso embate final. Minha luz contra a sua escuridão!

    — Luz e escuridão? Tudo se foi…

    — Tudo? — A outra voz cortou como uma lâmina, carregada da ironia do mais sábio dos seres em eras. — Quão ignorante é dizer isso? O que é “tudo”?

    Um brilho dourado começou a envolver seu corpo, como se a realidade o estivesse moldando em algo mais. Sua armadura se forjou no ar, ornada com símbolos antigos, gravados em uma língua que só os esquecidos poderiam ler. O metal divino pulsava com uma energia primordial, e cada peça encaixava-se como se obedecesse a um propósito maior, algo que ele mesmo ainda não compreendia por completo.

    — É tudo o que varreu para a zona fantasma? Não… vai além do simples fato de não existir… Escute, demônio… Alum, seja lá o que for… a essência das coisas permanece mesmo quando a alma se esvai… mesmo quando o corpo também!

    O brilho da armadura intensificou-se, refletindo-se nas gotas que caíam silenciosas de seus olhos. Uma lágrima solitária deslizou por sua face, traçando um caminho ardente em sua pele. Saudade. Um peso insuportável em seu peito. Mas sabia: se vencesse, se resistisse ao destino que lhe fora imposto, poderia restaurar tudo. Poderia trazer de volta o que foi arrancado.

    O fogo queimava dentro de seu coração. Não apenas pelo desejo de vencer, mas pela pergunta que nunca o abandonara.

    Quem era ele?

    O que queria de verdade?

    Afinal, desde o momento em que pisou naquele mundo, só buscou sua ruína. Mas e se, no fim, sua destruição não fosse sua verdadeira ambição?

    Descobriria ali…

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