Capítulo 275 - Pai e filho
O clima entre os dois era sufocante, como o choque de duas auras opostas, irreconciliáveis. De um lado, o homem, consumido pela mais pura essência de sua humanidade. Em seu peito, a raiva ardia como uma fogueira alimentada pelo passado. Em suas mãos, o medo pulsava, tenso, apertando os dedos com força contra a madeira da cadeira, como se precisasse de algo sólido para não desmoronar.
Do outro lado, um ressuscitado. Sua presença era branda, quase etérea, mas o ódio que emanava dele era um rio profundo, calmo na superfície, turbulento em suas correntes. E, mesmo assim, algo em sua aura ainda lamentava. Ele chorava, não em lágrimas, mas em silêncio, em gritos engolidos pelo tempo.
Assim que cruzou a porta, viu. Reviveu.
Aquele lugar, o salão principal, carregava o peso de tudo o que um dia foi bom e de tudo o que, inevitavelmente, se tornou ruína. Cada sombra projetada pelas velas trêmulas parecia encenar os horrores do passado, lembranças que ecoavam nas paredes.
— Você ainda fala como se tivesse algum tipo de razão…
A voz rompeu o silêncio como uma lâmina. E se sentou, deslizando um copo de vidro pela mesa até onde estavam. Seus olhos, imperturbáveis, fincavam-se no outro como um predador que finalmente vê sua presa indefesa, sentindo o gosto antecipado do momento que tanto almejava.
— Na minha casa… tenho toda…
As palavras vieram firmes, carregadas de um peso que se misturava ao ar da sala. Seus dedos roçaram a borda da garrafa ao se inclinar para servir o vinho, mas, no mesmo movimento, seus olhos fugiram por um instante para o machado que repousava ali, ao alcance da mão. Ele o encarou com uma ansiedade mal disfarçada, e um sorriso amargo se desenhou em seus lábios ao encher o copo.
— Sua casa… Jon e Yohan estão lá atrás? Ou você está sozinho?
A pergunta pairou no ar, carregada de uma tensão e expectativa.
— Sozinho… Aqueles dois imprestáveis são o presente que sua mãe me deu. Dois imbecis… — A voz dele veio impregnada de desprezo, cuspida como uma maldição. Sempre foi assim. Sempre a culpa recaía sobre os ombros dela. Nada havia mudado. — Por quê?
— Presente… — a palavra ficou suspensa nos lábios do ressuscitado, como se pesasse mais do que deveria.
— Me responde, vai!
— Presente? — suspirou, passando a língua pelos lábios antes de continuar. — Só estava divagando sobre o quão irônico é. Então, tudo é culpa dela? Nada disso é sua culpa?
Sem esperar resposta, levou o copo aos lábios e bebeu tudo de uma vez. Nunca foi beber, mas agora… precisava. O álcool queimava na garganta, mas não tanto quanto a vontade de fazer o que queria.
— Não seria? Me deu filhos incapazes de serem homens, dois baderneiros, e um… imprestável. Sua sorte foi o milagre que te ocorreu, nem a mim agradeceu por isso… — As palavras saíram envenenadas, mas por trás da dureza, havia algo mais. Um resquício de amargura, e ressentimento.
Ele realmente se sentia… desvalorizado?
— Te agradecer… por me matar?
O silêncio então se instalou, denso como o ar antes de uma tempestade.
— Grr… — Rosnou, a mandíbula tensionada, enquanto enchia sua própria taça. O líquido vermelho refletiu a luz tremulante das velas. — E por que não? Mesmo agora, está aqui, tomando uma comigo… sente ódio, não é? Raiva? No final, somos iguais…
O outro permaneceu imóvel, estudando-o, antes de murmurar, a voz quase inaudível:
— Somos…
Aquilo foi uma surpresa. A ideia o corroía por dentro. Se conformava com a possibilidade de ser igual ao monstro que atormentava seus sonhos ou apenas dizia aquilo para atingi-lo, para enfiar o medo sob sua pele?
— E por isso sou pior que você!
A taça escorregou de sua mão e bateu contra a mesa, girando antes de cair. O som do vidro se estilhaçando preencheu o ambiente como um prenúncio do que viria a seguir.
— Ehr… você mesmo acredita nisso? — suspirou, sem pressa, como se já soubesse a resposta. Sua mão deslizou para o machado ao lado, os dedos firmes ao segurá-lo. Começou a cantarolar. A mesma música. Aquela que ecoava pelos corredores frios da casa enquanto ele espancava sua mulher. Uma melodia que nunca deveria ter existido. — Você… pior que eu?
O ressuscitado sorriu de canto, mas não havia humor ali, apenas desprezo.
— Eu não te mataria com oito golpes na cabeça… Nem com um empurrão. Isso é tão… amador. Tão covarde…
As palavras se arrastaram pelo ar, pesadas, feitas para ferir. E feriram. Ele via nos olhos do outro a lembrança involuntária, o exato momento em que tudo aconteceu. Mas aquilo não era apenas provocação. Era a verdade.
O ressuscitado se ergueu, e naquele instante o ambiente mudou. Sua presença transbordou, sufocante, esmagadora. Uma aura que não deveria pertencer a este mundo.
— Você sabe… o que eu faria?
O outro não esperou para descobrir. O golpe veio rápido, bruto. O machado cortou o ar num arco perfeito, mirando seu ombro com força para arrancá-lo dali.
Mas, no instante do impacto, o impossível aconteceu.
O machado se despedaçou em milhões de fragmentos metálicos, se desfazendo como vidro atingido por um martelo. A força do golpe ricocheteou pelo cabo, explodindo na mão de quem o empunhava. Ossos estalaram. Dor cortante subiu pelo braço.
— Caralho…
O homem recuou, cambaleando, a expressão repleta de choque e desespero. Caiu para trás, os olhos arregalados, como se finalmente entendesse com o que estava lidando.
— Como se sente? Imponente como uma criança?
A voz soou como um trovão abafado, carregada de desprezo.
Antes que pudesse reagir, o golpe veio. A mesa entre eles estilhaçou-se em míseros fragmentos, reduzida a nada. A força da pancada era absurda, quase como se a matéria fosse anulada por pura vontade.
— Você é…
Tentou terminar a frase, mas não teve tempo.
Em um único movimento brutal, sua perna foi partida ao meio. O osso dilacerou-se sob a pressão esmagadora do pé que o empurrou contra o chão. Carne e tendões se romperam. Sangue jorrou em ondas quentes e viscosas, manchando o chão e suas roupas.
O grito veio num berro desesperado, um som agudo de pura agonia.
— Maldição… seu filho da puta!
Ele gemia, urrava, tremia, mas nada daquilo impediu o inevitável.
— Não grita…
O sussurro foi uma promessa vazia de piedade.
Com a mesma calma de quem conduz um ritual, deslizou os dedos sobre um pote de vidro e aço, repleto de pequenas esferas metálicas. Escolheu uma. Pesou-a na palma da mão por um instante, como se saboreasse o que estava prestes a fazer.
E então, as chamas irromperam.
Fogo denso, quente como nunca, lambeu a esfera, aquecendo-a até um brilho avermelhado ameaçar sua superfície.
— Abaixo de 1300° o aço não derrete, sabia?
A voz dele era fria, meticulosa. Um maestro sem plateia, conduzindo sua última sinfonia.
O azar do outro foi a veracidade daquela afirmação.
Sem hesitar, empurrou a esfera incandescente contra a boca do moribundo. A queimadura foi imediata, o cheiro de carne carbonizada impregnando o ar. Ele até tentou cuspir, mas a dor roubou qualquer reação consciente. Engoliu a esfera num reflexo instintivo.
E então, o inferno se instalou internamente.
As entranhas queimaram. A garganta derreteu. Os olhos ficaram vermelhos, injetados, escorrendo lágrimas de sangue. Quando tentou gritar, tudo o que conseguiu foi um jorro de sangue fervente, tingindo o chão num vermelho grotesco.
— O que disse?
Os espasmos aumentaram. Ele urinou sangue. Defecou sem controle. O corpo já não obedecia mais.
— O que você disse, porra?
Não houve resposta.
Então, veio o último ato.
A cabeça foi esmagada contra a estante da adega. O crânio cedeu como farelos sob a força do impacto. Garrafas caíram, se estilhaçaram no chão, tingindo os cacos de vidro com a mistura pútrida de vinho e sangue.
O silêncio tomou conta do ambiente.
O espetáculo havia acabado.
Mas seu coração não se acalmou. O sangue derramado, os gritos silenciados, o cheiro de carne queimada—nada disso trouxe paz.
Precisava… de mais.
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