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    O dia seguinte amanheceu com uma luz pálida, filtrando-se por frestas de madeira desgastada. O cheiro de terra úmida e mofo impregnava o ar, misturando-se ao fraco odor de ervas medicinais queimadas em um pequeno braseiro no canto da cabana. O chão era de madeira apodrecida, rangendo sob o menor movimento. Tudo naquele lugar transbordava pobreza e abandono.

    Mikado piscou algumas vezes, seus olhos pesados demorando a se acostumar à penumbra. O teto irregular acima de sua cabeça parecia uma miragem distante, um delírio febril. Quando tentou mexer-se, uma dor latejante percorreu seu corpo, lembrando-o brutalmente da exaustão que o consumira.

    — Onde…? — sua voz saiu rouca, fraca, quase um gemido.

    Antes que pudesse completar a frase, sentiu dedos ásperos pressionando seus lábios, impondo silêncio. Uma presença franzina se inclinava sobre ele, e Mikado percebeu os traços envelhecidos de uma mulher, vestida com roupas puídas e sujas de terra. Seus olhos, fundos e cansados, tinham uma calma inquietante.

    — Não se esforce… — sussurrou ela, sua voz arranhada, mas de algum modo reconfortante. — Meu bom homem, quase que você morreu de exaustão…

    Ele sentiu o arrepio daquelas palavras. Foi então que percebeu, ao seu lado, um vulto imóvel. Seu coração disparou ao reconhecer a silhueta do garoto. O mesmo garoto que ele havia clamado à sua morte no dia anterior.

    A visão dele acendeu um estopim dentro do homem. Sua mente, antes enevoada, clareou-se em um instante de terror. O sangue pulsou em seus ouvidos, e um instinto primal tomou conta de seu corpo. Num movimento brusco, se debateu contra os lençóis encardidos que o cobriam.

    — Tsc! — a velha recuou, alarmada.

    O garoto também se sobressaltou, os olhos arregalados de medo. Por um momento, os três ficaram imóveis — a tensão no ar era tão densa quanto a escuridão do aposento.

    O impacto seco da tigela contra sua cabeça ecoou pela cabana de madeira. Sentiu a dor aguda se espalhar pelo crânio, sua visão embaçando por um instante antes que tudo ficasse escuro.

    Quando voltou a si, um suor frio escorria por sua testa, encharcando a gola de suas vestes sujas e desgastadas. Sua respiração estava entrecortada, e seus olhos vagavam pelo pequeno espaço, absorvendo cada detalhe com um misto de confusão e alerta.

    E lá estava ela.

    A mulher idosa o observava, segurando a tigela de barro com um olhar inquisidor, como se já esperasse que ele perdesse o controle novamente.

    — Você não vai gritar de novo? — perguntou, erguendo levemente a tigela, pronta para usá-la uma segunda vez se necessário.

    — Não…

    Apertando as têmporas ainda latejantes.

    — Certo… então pode me dizer por que está assim?

    Ele hesitou. Seu peito subia e descia pesadamente. Sentia um nó na garganta, uma âncora invisível puxando-o para o fundo de sua própria miséria. Mas, no fim, apenas desviou o olhar e murmurou:

    — Não…

    A velha soltou um longo suspiro, seu rosto cansado se suavizando um pouco.

    — Certo… eu não sei o que lhe aconteceu, mas tenho uma ideia. Pelas roupas… você é um nobre, não é? Então, foi vítima dos homens de preto?

    Ele piscou algumas vezes, tentando processar suas palavras.

    — Homens… de preto?

    — Sim, aqueles que carregam crucifixos no pescoço. Não os viu?

    O ambiente ao seu redor começava a ganhar contornos mais nítidos. O barraco era feito de barro, suas paredes irregulares cobertas por manchas de fuligem e umidade. Os talheres e mesas eram de madeira velha, desgastados pelo tempo. A única janela era uma abertura tosca, sem vidraça, e a porta não passava de um pano sujo pendurado. O cheiro de terra e mofo impregnava o ar.

    Seus olhos vagaram até o garotinho, que permanecia descalço, sentado no chão de terra batida. O silêncio do menino o incomodava, como se sua presença fosse um lembrete constante de algo que preferia esquecer.

    — Vi… sim…

    A velha assentiu, como se isso apenas confirmasse suas suspeitas.

    — Está na vila Hoshigake. Há mais ou menos três horas da capital de Yokohama…

    Yokohama. A palavra soou distante em sua mente. Por que diabos estava tão longe? E, mais importante… por que ainda estava vivo?

    Ele deveria tirar a própria vida.

    Por mais covarde que fosse…

    Ele teria que abandonar a si. E só assim, seria abandonado por Elum.

    O peso dessa decisão esmagava seus pensamentos, mas qualquer outra opção parecia igualmente insuportável. Talvez, se perdesse sua identidade por completo, se tornasse apenas um nome esquecido no vento, Elum também o esqueceria.

    — Você disse Hoshigake?

    A voz saiu arrastada, como se falar exigisse mais esforço do que deveria.

    — Sim — A mulher olhou para fora, para o horizonte acinzentado, mas não havia reflexo de vida em seus olhos. Apenas um vazio resignado. — Por quê?

    Ele hesitou antes de responder.

    — Por que é tão pobre? Se fica a poucas horas de Yokohama?

    Sentou-se pesadamente, como se esperasse que o ato de se acomodar no chão o livrasse do turbilhão em sua mente. Talvez, se focasse em uma questão trivial, pudesse adiar a decisão que o perseguia.

    — Como assim?

    — Por que esta vila é assim? Como pode estar tão esquecida?

    Ela o observou com um misto de curiosidade e cansaço.

    — Não sei, senhor… É assim desde que nasci. Desde que meus pais nasceram… e os pais deles antes deles.

    Aquilo o perturbou. Sua mente girava, procurando sentido em algo que parecia impossível.

    — Como? Como o Imperador e seus subordinados deixaram isso acontecer?

    — Imperador? — Riu, mas não havia alegria na risada, apenas uma sombra de sarcasmo. — Fala daquele santo homem sentado ao trono? Ele não liga para a poeira que pisa. O que é fome e frio para quem vive deitado sobre ouro?

    — Ehr…

    As palavras lhe travaram na garganta. Não conseguia responder. Ela estava certa.

    — E por que continua? Você e essa criança? Se o mundo é uma merda… não é melhor desistir?

    A velha o encarou com olhos afiados. Não de raiva, mas de uma firmeza que não esperava.

    — Que tipo de pessoa eu seria? Ignorando o bom da vida? E deixando de acreditar em um futuro para meu neto?

    Havia algo na maneira como disse aquilo que o fez estremecer. Um calafrio percorreu sua espinha.

    — Desistir… meu bom senhor… é a morte. E a morte é o fim. É quando vamos sem poder nos perguntar: “E se?”

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