Capítulo 279 - E se?
O dia seguinte amanheceu com uma luz pálida, filtrando-se por frestas de madeira desgastada. O cheiro de terra úmida e mofo impregnava o ar, misturando-se ao fraco odor de ervas medicinais queimadas em um pequeno braseiro no canto da cabana. O chão era de madeira apodrecida, rangendo sob o menor movimento. Tudo naquele lugar transbordava pobreza e abandono.
Mikado piscou algumas vezes, seus olhos pesados demorando a se acostumar à penumbra. O teto irregular acima de sua cabeça parecia uma miragem distante, um delírio febril. Quando tentou mexer-se, uma dor latejante percorreu seu corpo, lembrando-o brutalmente da exaustão que o consumira.
— Onde…? — sua voz saiu rouca, fraca, quase um gemido.
Antes que pudesse completar a frase, sentiu dedos ásperos pressionando seus lábios, impondo silêncio. Uma presença franzina se inclinava sobre ele, e Mikado percebeu os traços envelhecidos de uma mulher, vestida com roupas puídas e sujas de terra. Seus olhos, fundos e cansados, tinham uma calma inquietante.
— Não se esforce… — sussurrou ela, sua voz arranhada, mas de algum modo reconfortante. — Meu bom homem, quase que você morreu de exaustão…
Ele sentiu o arrepio daquelas palavras. Foi então que percebeu, ao seu lado, um vulto imóvel. Seu coração disparou ao reconhecer a silhueta do garoto. O mesmo garoto que ele havia clamado à sua morte no dia anterior.
A visão dele acendeu um estopim dentro do homem. Sua mente, antes enevoada, clareou-se em um instante de terror. O sangue pulsou em seus ouvidos, e um instinto primal tomou conta de seu corpo. Num movimento brusco, se debateu contra os lençóis encardidos que o cobriam.
— Tsc! — a velha recuou, alarmada.
O garoto também se sobressaltou, os olhos arregalados de medo. Por um momento, os três ficaram imóveis — a tensão no ar era tão densa quanto a escuridão do aposento.
O impacto seco da tigela contra sua cabeça ecoou pela cabana de madeira. Sentiu a dor aguda se espalhar pelo crânio, sua visão embaçando por um instante antes que tudo ficasse escuro.
Quando voltou a si, um suor frio escorria por sua testa, encharcando a gola de suas vestes sujas e desgastadas. Sua respiração estava entrecortada, e seus olhos vagavam pelo pequeno espaço, absorvendo cada detalhe com um misto de confusão e alerta.
E lá estava ela.
A mulher idosa o observava, segurando a tigela de barro com um olhar inquisidor, como se já esperasse que ele perdesse o controle novamente.
— Você não vai gritar de novo? — perguntou, erguendo levemente a tigela, pronta para usá-la uma segunda vez se necessário.
— Não…
Apertando as têmporas ainda latejantes.
— Certo… então pode me dizer por que está assim?
Ele hesitou. Seu peito subia e descia pesadamente. Sentia um nó na garganta, uma âncora invisível puxando-o para o fundo de sua própria miséria. Mas, no fim, apenas desviou o olhar e murmurou:
— Não…
A velha soltou um longo suspiro, seu rosto cansado se suavizando um pouco.
— Certo… eu não sei o que lhe aconteceu, mas tenho uma ideia. Pelas roupas… você é um nobre, não é? Então, foi vítima dos homens de preto?
Ele piscou algumas vezes, tentando processar suas palavras.
— Homens… de preto?
— Sim, aqueles que carregam crucifixos no pescoço. Não os viu?
O ambiente ao seu redor começava a ganhar contornos mais nítidos. O barraco era feito de barro, suas paredes irregulares cobertas por manchas de fuligem e umidade. Os talheres e mesas eram de madeira velha, desgastados pelo tempo. A única janela era uma abertura tosca, sem vidraça, e a porta não passava de um pano sujo pendurado. O cheiro de terra e mofo impregnava o ar.
Seus olhos vagaram até o garotinho, que permanecia descalço, sentado no chão de terra batida. O silêncio do menino o incomodava, como se sua presença fosse um lembrete constante de algo que preferia esquecer.
— Vi… sim…
A velha assentiu, como se isso apenas confirmasse suas suspeitas.
— Está na vila Hoshigake. Há mais ou menos três horas da capital de Yokohama…
Yokohama. A palavra soou distante em sua mente. Por que diabos estava tão longe? E, mais importante… por que ainda estava vivo?
Ele deveria tirar a própria vida.
Por mais covarde que fosse…
Ele teria que abandonar a si. E só assim, seria abandonado por Elum.
O peso dessa decisão esmagava seus pensamentos, mas qualquer outra opção parecia igualmente insuportável. Talvez, se perdesse sua identidade por completo, se tornasse apenas um nome esquecido no vento, Elum também o esqueceria.
— Você disse Hoshigake?
A voz saiu arrastada, como se falar exigisse mais esforço do que deveria.
— Sim — A mulher olhou para fora, para o horizonte acinzentado, mas não havia reflexo de vida em seus olhos. Apenas um vazio resignado. — Por quê?
Ele hesitou antes de responder.
— Por que é tão pobre? Se fica a poucas horas de Yokohama?
Sentou-se pesadamente, como se esperasse que o ato de se acomodar no chão o livrasse do turbilhão em sua mente. Talvez, se focasse em uma questão trivial, pudesse adiar a decisão que o perseguia.
— Como assim?
— Por que esta vila é assim? Como pode estar tão esquecida?
Ela o observou com um misto de curiosidade e cansaço.
— Não sei, senhor… É assim desde que nasci. Desde que meus pais nasceram… e os pais deles antes deles.
Aquilo o perturbou. Sua mente girava, procurando sentido em algo que parecia impossível.
— Como? Como o Imperador e seus subordinados deixaram isso acontecer?
— Imperador? — Riu, mas não havia alegria na risada, apenas uma sombra de sarcasmo. — Fala daquele santo homem sentado ao trono? Ele não liga para a poeira que pisa. O que é fome e frio para quem vive deitado sobre ouro?
— Ehr…
As palavras lhe travaram na garganta. Não conseguia responder. Ela estava certa.
— E por que continua? Você e essa criança? Se o mundo é uma merda… não é melhor desistir?
A velha o encarou com olhos afiados. Não de raiva, mas de uma firmeza que não esperava.
— Que tipo de pessoa eu seria? Ignorando o bom da vida? E deixando de acreditar em um futuro para meu neto?
Havia algo na maneira como disse aquilo que o fez estremecer. Um calafrio percorreu sua espinha.
— Desistir… meu bom senhor… é a morte. E a morte é o fim. É quando vamos sem poder nos perguntar: “E se?”
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