Capítulo 294 - Vida de casado
Alguns minutos após a derrota, o silêncio reinava como uma névoa pesada sobre os corpos caídos. Gabriel, ofegante e cambaleante, arrastou o corpo desacordado de Magnus e o deixou ao lado de Yoruichi, como se sua última força tivesse sido gasta naquele gesto.
O esforço cobrou seu preço ao cavaleiro negro — seus joelhos fraquejaram mesmo após a cura, e, incapaz de se manter em pé, desabou no chão. Os olhos semicerrados pela exaustão, o corpo à beira do desmaio. Assim alcançou aquele estado.
O grandalhão engoliu em seco ao ver o estado do amigo — os olhos arregalados, o sangue latejando nas têmporas.
— O que você… — começou, num tom quase acusatório.
— Não fui eu… foi… ele…
O celeste ergueu uma das mãos, a voz rouca.
Enfiou-as nos bolsos do casaco rasgado, tentando manter a postura — embora sua respiração estivesse descompassada.
— Ele foi até os limites… colapsou os circuitos mentais, perdeu a sensibilidade… as capacidades cognitivas ficaram… bem, comprometidas — coçou o lábio, com um ar levemente constrangido. — Ehr… acho que o fluxo também foi pro saco. Mas… vive! — e por fim deu de ombros, desviando o olhar.
Sua mulher o encarava à distância, de braços cruzados e expressão carregada. Havia algo entre o desapontamento e o alívio naquelas sobrancelhas franzidas.
— Que que foi, hein? — murmurou, tentando aliviar o clima. — Tá querendo me deixar viúva?
Mas o costume lhe espetava a comodidade. Ser casado era isso — uma rotina que, por vezes, roçava a loucura. Era ter alguém que lhe tirava a paciência nos momentos mais inoportunos, que insistia em perguntas quando ele só queria silêncio, que deixava a toalha molhada em cima da cama como se fosse um manifesto. Ainda assim, havia algo reconfortante nessa inquietação constante. Era ali, nas pequenas fricções, que ele percebia estar vivo, sendo visto, sendo lembrado.
— Desculpa?
Ela deu dois passos para trás, o olhar ainda cravado nele, como se pesasse cada palavra.
— O que você estava pensando? Quase se matou… e quase matou o garoto também. Foi por orgulho? Pela adrenalina? Sentiu-se… agitado pela batalha?
O celeste abaixou os olhos, como uma criança repreendida.
— Não… eu… — mordeu os lábios, a culpa vazando pelas frestas da voz. — Só queria dar uma luta de respeito pro garoto. Digo… “garoto” parece até que somos velhos, mas temos a mesma idade, né?
— O senhor já é careca. Eles não! — Lançou, seca, arrancando uma expressão confusa — e, logo depois, um sorriso involuntário — do adversário ainda de joelhos.
Ele virou-se para o homem ferido, que estava carregado de tensão, mas agora com um toque de ironia:
— Que foi?
— Então… vocês não queriam nos matar…
— Não — respondeu a felina, balançando a cabeça com uma frieza calma. — Se quiséssemos, teríamos vencido nos primeiros segundos. Não é arrogância… é realidade. Vocês são bons. Mas há uma diferença. Entenderam agora, não?
O homem assentiu e tentou se erguer, mas cambaleou. Gabriel o conteve com uma mão firme no ombro.
— Ehr…
— Fique aí. — O tom dele agora era firme. — Elizabeth te acertou com o feitiço inato dela. Por dentro, você está feito em cacos de vidro. Sua sorte é essa estrutura física absurda que você tem. — Chamou-a, sem desviar o olhar: — Amor?
Que sequer respondeu.
— Aff… birrenta…
Apenas estendeu a mão com indiferença, e sua aura brilhou como um farol tênue. A luz fluiu de seus dedos até os corpos no chão, regenerando ossos, ligamentos, fluxos interrompidos… como se um sopro de vida estivesse sendo costurado nas fissuras da dor.
— Agora vocês dois estão em dívida.
Observou com calma. Salvando o segundo naquele dia… Internamente, aquilo o agitava, mas havia também o peso das escolhas.
O silêncio pairou por alguns segundos, até que veio a pergunta:
— E o que faremos agora?
— Vão para Nova Tóquio. Sigam em frente. Não há feras por lá… apenas sobreviventes. Ex-companheiros. Eles vão aceitar vocês — ela respondeu, num tom quase maternal, mas firme.
— E nossos crimes?
— Quando a humanidade retornar, vocês serão julgados — ele respondeu com pesar. — Até lá… temos que resolver essa grande merda que se formou. Entende? — fez uma pausa, encarando-os. — Sinceramente… se não fossem nossos antigos companheiros, eu mesmo faria justiça com as próprias mãos.
E abaixou a cabeça, a frustração transbordando.
— Mas essa hipocrisia… não pode continuar. Nem de vocês. Nem nossa. Não somos animais… E só irei quebrar meu juramento de ser alguém pacífico e piedoso com aquele… Serei um monstro, somente com Seiji!
— E com o Miyazaki! — a celeste afirmou, firme. — Aquele lá… não tem salvação!
— Não acha que ele está certo? A humanidade… precisa de um novo líder, uma nova direção… — foi sua súplica.
— Precisa. Mas a que custo? Yokohama era uma boa terra para começar a mudança. Agora arde em sangue, sem sobreviventes. O que fariam se o mundo todo soubesse? Matariam o mundo inteiro?
— Mas… — fraquejou. — Grandes mudanças carecem de sacrifícios…
— De ambos os lados. Não de apenas um. A humanidade sempre muda… de tempos em tempos. Pode não ser hoje. Pode não ser amanhã. Pode nem acontecer em nossa vida. Quem somos nós, afinal… para julgar?
— Meros exorcistas — ela disse, com um tom quase resignado. — Julgamos saber de tudo… mas não sabemos nem por que o Criador não nos deixa interferir. Somos humanos, lembram?
— Criador… ele nem se importa, sabia? Se se importasse, teria punido todos: nós, o imperador, vocês!
— Logo você? — aquilo lhe arrancou um arrepio. — Logo um dos membros da Igreja de Elûm…
— O que tem a ver?
Ódio e frustração escorriam de seus lábios e olhos.
— Não sabe uma única resposta! — e o celeste olhou para o céu. — Elûm não interfere em suas escolhas. O mal que propagou há de reverberar em sua alma, não em sua forma… pois esta, só os homens podem julgar! E o perdão só beneficia aquele que o dá.
Sua insatisfação te levou a esse estado… entende?
— Devo me conformar com injustiças, então?
— O que é injustiça, porra? Matar milhões para salvar milhões? — já não tinha a paciência do careca. — Que merda de justificativa você tá dando? Você errou — e feio. E sua alma vai sofrer por isso!
Seus dentes rangeram ao ouvir aquilo. O corpo inteiro tremia, e a boca soltou um suspiro longo, quase um soluço sufocado.
— MERDA! MERDA!
Era como estar preso em um vazio — sem luz, sem direção.
O celeste o observou em silêncio, olhos pesados de compaixão.
— Deixe…
Ela queria agir. Queria impedi-lo de cair, de desmaiar, de afundar naquele colapso.
— Pobre alma… — comentou, num tom quase apagado. Estava ciente: o destino do outro seria o julgamento pós-vida. E logo ele… que acreditava nas próprias boas ações.
— MALDITO SEJA! MALDITO SEJA!
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