Capítulo 295 - Amar
— Desisto! — exclamou Megumi, a voz embargada pela frustração.
Estava diante da pequena pedra, encardida pelo tempo, com os olhos marcados por olheiras e um cansaço que transbordava do corpo para a alma. À sua frente, imóvel e imponente, repousava a entidade demoníaca: seu mestre.
Era mais uma falha. Mais um teste. E ele havia fracassado… de novo.
— Sério isso?
— Ehr… já é a oitava vez… — murmurou, desviando o olhar para o chão seco. — É tão cansativo… acho que sou um completo fracasso!
— Tá dizendo isso depois de me mostrar exatamente o contrário?
— Mas… isso é tão exaustivo… cada parte do meu corpo grita…
A entidade suspirou. Longo. Profundo. Um som que pareceu ecoar através das montanhas atrás deles. Já era manhã; os primeiros raios da aurora pintavam o céu de âmbar e púrpura.
— O que nesse mundo não é exaustivo? — disse com a voz carregada de milênios de sabedoria. — Desde que o homem cometeu o crime de amar mais o pecado do que o próprio Pai, tudo o que é valioso passou a ser conquistado com sangue e suor.
O jovem passou a mão pela testa suada. Seu corpo doía. A alma, mais ainda.
— Por que não… só arruma outro discípulo?
Sentou-se, e só então notou: seus pés estavam cobertos por cicatrizes, as mãos tão calejadas que pareciam de pedra.
— Porque sou só um idiota — confessou com um sorriso torto. — Um idiota movido por vingança. Mas… e daí? Por que me escolheu?
A criatura também se sentou, espelhando seu discípulo. Os olhos brilhavam com um vermelho calmo, quase paterno.
— Porque te observei desde que eras apenas um feto. E te zelei.
— O quê? — se arrepiou.
A revelação o atingiu como uma corrente fria do inverno.
— Sim. Desde o ventre da tua mãe — respondeu, com serenidade. — Essa é a vantagem de ser imune aos adventos do tempo e do espaço. Já caminhei no paraíso, já vi o mundo perfeito. Já estive presente na destruição. E em todas essas linhas, em todas essas realidades… aprendi que precisava zelar por você. Só assim alcançaremos o melhor dos finais.
— Finais?
— Bilhões. Milhares. Não vai fazer sentido agora, eu sei. Mas preciso que siga os passos que lhe der — disse, levantando-se com majestade. — Você será a peça mais importante para selar o Imperador. E depois disso, com a jogada certa… daremos ao mundo um instante de paz. Um futuro que valha a pena trilhar!
Não compreendia. Não de verdade. Metade daquelas palavras parecia símbolo de uma linguagem antiga demais para seu coração cansado. Mas uma coisa sabia: por alguma razão incompreensível, aquele ser de poder inimaginável acreditava nele.
— Sou um louco por achar que você é a pessoa certa — continuou. — Pessoa, sim. Não me importa que seja demônio ou não. Confio em você!
E ergueu o olhar.
— É… e eu sou louco por acreditar que vocês, humanos… você, humano… será aquele que cuidará daquilo que eu amo.
— E o que você ama?
O ser fechou os olhos por um breve instante. E, pela primeira vez, sua voz veio suave. Frágil. Cheia de amor.
— O mundo. Cada canto de Crea. Cada animal. Cada árvore. Cada riso. Cada lágrima. Tudo isso é perfeito. É o presente do Criador a vocês. E dado a vocês… somente vocês podem zelar com direito e carinho por isso.
— Mas…
Hesitou. Havia algo preso na garganta, algo que nem a raiva nem a exaustão conseguiam engolir.
— Erros, pecados… — a voz do demônio se ergueu com uma estranha ternura. — São partes inevitáveis da vida. E cabe a vocês, mortais, superá-los. É difícil, eu sei. É mais fácil julgar, generalizar, queimar tudo… mas é muito mais admirável quem escolhe olhar para cada coração individualmente, sem condenar a todos.
As palavras foram como um bálsamo cortante, queimando e curando ao mesmo tempo.
— Me sinto um lixo — murmurou, desviando o olhar para o horizonte, onde as nuvens cinzentas se acumulavam como promessas de chuva, acabando com aquela bela manhã. — Por pensar que todos são imbecis… egoístas… pequenos. Nunca me senti parte disso. Talvez… talvez eu nunca tenha visto o mundo como você vê. Sou errado?
Houve silêncio por um instante. Aquele tipo de silêncio denso, que antecede uma verdade.
— Não — disse com um peso inesperado na voz. — Eu… eu me vejo em ti.
Ele virou-se, confuso. O ser demoníaco não desviou o olhar. Mesmo com a face de caveira onde antes talvez houvesse um rosto, havia expressão ali. Havia memória.
— Quando ainda era apenas um demônio… muito antes de me tornar esse… lapso de mim mesmo… já me sentia uma estrela solitária no setor em que nasci! — suspirou, e sua risada veio baixa, quase melancólica. — A vida é engraçada, né? Um ciclo que nem mesmo os eternos entendem.
Então fitou o firmamento. As nuvens formavam desenhos. Rostos esquecidos. Mundos que não existiam mais. Tudo o que sua íris escarlate já havia visto.
— E ainda tem tolo que deseja controlar tudo. Elum me livre de saber de tudo! — Foi sincero. — Só quero saber de uma coisa, Megumi…
O jovem olhou nos olhos do ser. Aquele corpo encaveirado, adornado com chifres de bode e cicatrizes de eras. A encarnação do que a maioria chamaria de mal. O rei demônio, aquele que já andara entre trevas e luz.
— Teu coração… — inclinando-se um pouco mais perto — …ele ainda consegue amar?
As palavras penetraram fundo. Sentiu uma fisgada no peito. Como se aquela pergunta não fosse feita só por ele, mas por toda Crea. Por todas as linhas de tempo que aquele ser atravessara. Por todos os seres que esperavam que ele dissesse sim.
— O que você acha?
E ali, entre as ruínas do medo e as brasas da dúvida, se calou. Porque não sabia a resposta. Mas sentia que, talvez naquele momento, era permitido não saber. Porque o amor… talvez começasse assim: com uma pergunta.
— Acho que amar… — disse, enfim, com a voz carregada de uma frágil sinceridade — é o estado mais puro do espírito.
E riu.
— Hah… belo discurso. — meneou a cabeça. — Mas e sobre mim?
— Megumi… não posso dizer. Não sou dono do seu coração.
Virou-se, deixando que o vento agitasse seu terno já esfarrapado.
— Talvez você amasse o próprio estado miserável em que se encontrava… — continuou, com um tom de provocação velada. — Talvez amasse o fardo que carregava, por mais que o chamasse de maldição. Talvez até mesmo ame odiar. Ou, quem sabe, ame o vento gélido da manhã, que o lembrava de que ainda estava vivo, mesmo quando tudo dentro de si parecia morto…
Voltou os olhos vazios ao rapaz.
— Mas isso… só você pode saber.
E apertou os punhos. Não por raiva. Por impotência. Por frustração. Por se sentir um caco entre espelhos estilhaçados.
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