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    Amor.

    Será que alguém naquele palácio ainda sabia o que era amar?

    Seria hipócrita afirmar que… não!

    Hugo acariciava lentamente os cabelos da pequena Amane, adormecida em seus braços, com o mesmo cuidado de quem tentava segurar o tempo entre os dedos. O calor da criança era um fio tênue entre ele e a ruína completa — um lembrete de que ainda existia algo que respirava por sua causa.

    Mas o peso… o peso das escolhas era esmagador.

    — O que será de nós… — murmurou, com os olhos fixos na garrafa ornamentada deixada por Seiji após a tomada da cidade.

    Ela repousava ali como uma oferta irônica, um símbolo de tudo que ele havia deixado para trás… ou tentado deixar. Não bebia havia dias. Não por força de vontade, mas porque o gosto da bebida já não lhe causava prazer.

    Aquele prazer…

    Aquele maldito prazer se fora há tanto tempo.

    — E pensar que… você ainda me acalmava da minha insuficiência… — sussurrou, quase como se conversasse com a garrafa.

    Mas não era a garrafa. Era ela.

    A mulher que escolhera partir.

    Aquela que findara com a própria vida, levando consigo tudo o que ele fingira dominar.

    Sua irmã.

    Sim, sua própria irmã — que, mesmo nas passagens mais distantes da memória, mesmo nos silêncios profundos que ele tentava manter, ainda o fazia se culpar. Ainda o assombrava. Era um erro que não podia corrigir, um eco que não se calava, um nome que queimava quando dito.

    Ele olhou para o rosto sereno de Amane, o espelho da bela moça que ela era, alheia à tormenta que o destruía por dentro.

    Aquela pequena criatura não tinha culpa de nada. Não sabia das mortes, das falhas, das traições, das promessas não cumpridas, dos medos embriagados.

    Só sentia falta do pai…

    A única frase que repetia com ternura, mesmo quando já não havia doçura na alma.

    A quem, também, ele se culpava por partir.

    — Só ilusão… Eu… nunca me livrei de nada, nada! — rosnou entre os dentes, quase a despertando. Mas se conteve. Um longo suspiro escapou, quebrado.

    As lágrimas caíram silenciosas, encharcando o manto de unicórnios que cobria a menina.

    — Logo serei um calvo irresponsável… como dizia minha irmã… merda… — arfou, lutando contra a angústia que o dilacerava. — Me tornei exatamente o que papai e mamãe disseram que eu seria. Eu… não fiz nada de bom?

    O silêncio respondeu primeiro.

    Mas então…

    — Você fez o necessário… o que estava ao seu alcance. Afinal, ninguém seria louco de depender de um velho bêbado como você!

    A voz soou nítida. Familiar.

    Tamashiro. Não o verdadeiro. Apenas a ilusão cruel que sua mente criava agora que estava sóbrio demais.

    — Ehr… — levou a mão à cabeça, confuso, suando frio.

    — Você mesmo, Hugo. Nunca dependeu de si para viver. Nunca foi nobre. Nunca foi hipócrita o bastante pra fingir que era bom. Nunca praticou o bem… então por que agora isso te assustava tanto?

    — Você é só uma ilusão… — fechou os olhos, tentando apagar a cena.

    — Antes, você tinha algo pra abandonar, não é? Uma família. Um amor. Uma causa. E mesmo que abandonasse… ainda havia quem tentasse te recuperar. Mas agora…

    A ilusão caminhou até a janela, a luz da aurora tocando seus cabelos como se realmente estivesse ali.

    — Agora só havia caos. Caos que você ajudou a trazer. Minha filha… nem respirar podia mais nesse ar que você ajudou a envenenar. De que valeu a minha morte, hein?

    — Eu… — tentou falar, mas as palavras se engasgaram.

    — Por que não assume? Assume o que é. O que faz. E o que nunca teve coragem de fazer!

    — Sou incapaz! — finalmente cedeu, explodiu, a voz embargada, as lágrimas correndo em desespero — Mas cacete… por que agora? Por que isso não veio dias atrás? Por que essa dor só agora!? Será que é…

    — A falta de bebida? Você não conseguia ver problemas quando estava bêbado, né?

    — Será…? — a dúvida foi plantada como uma faca cravada no fundo do estômago.

    — “Será?” É, isso mesmo. Você não conseguia ver nada além de si. Do seu ego ferido. E quando uma pedra surgia no caminho… só a bebida para dissolver! — cruzou os braços, encarando-o de cima. — Você era um covarde, Hugo. Um covarde que teve medo até de se perder. Porque a perda te definiria!

    — Eu…

    A sombra desapareceu como fumaça.

    Sumiu. Como tudo em sua vida parecia sumir quando mais precisava.

    — Sou um lixo… — sussurrou para si, engolindo seco.

    E agora, sóbrio de seu estado, encarava aquela criança como se ela fosse um espelho — um espelho limpo demais para ele se permitir refletir.

    Não sabia o que fazer.

    Não sabia sequer por onde começar.

    — Essa merda é tão difícil! — explodiu em voz baixa, contida, quase implorando por um sentido.

    Então, levantou os olhos.

    A garrafa.

    Ela parecia mais tentadora agora do que nunca.

    Reluzia como um veneno vestido de consolo.

    Mas Amane respirava ali.

    Sonhava ali.

    E ele… seria tolo o suficiente para romper até isso?

    Já destruíra tanto.

    Já envenenara tanto.

    Já matara em si tudo que um dia foi esperança.

    Não sabia se merecia aquele sonho.

    O de ser alguém capaz de construir.

    De proteger.

    De amar.

    Mas fechou os olhos.

    E escolheu persistir.

    Mesmo que fosse no escuro.

    Mesmo que o mundo caísse lá fora.

    Porque, naquela noite, ela ainda dormia…

    e ele ainda era tudo o que ela tinha.

    Mas nem todos se questionavam sobre seus atos.

    Em uma suíte de luxo, Javier Fernández terminava seu banho.

    Seu corpo, esculpido como uma estátua pagã, era preenchido por milhares de runas e cicatrizes — registros de guerras, pactos e horrores que já ninguém ousava mencionar.

    Ele se encarava no espelho, gotículas d’água escorrendo entre os traços rúnicos como lágrimas de aço.

    Pegou a toalha — costurada com fios de ouro puro — e começou a se secar, mas os olhos nunca deixaram o espelho.

    — Você… é… tão perfeito… — sussurrou, arfando, como se estivesse à beira de um êxtase.

    A mão deslizou sobre a superfície espelhada, os dedos trêmulos, quase reverentes.

    — O mais perfeito…

    Havia fome em sua voz. Um desejo doentio por si mesmo.

    Era verdade: seu narcisismo era tão profundo que parecia um culto.

    O olhar então desceu para a banheira.

    O vermelho na água era sangue.

    Não o seu.

    No canto dos lábios, o vestígio de um sorriso manchado.

    Limpou o sangue com o dorso da mão e sorriu, dessa vez, com um certo charme psicótico.

    — Ninguém… está acima de você…

    Virou-se. E lá estava.

    A infame obra que era tema recorrente nas rodas mais ousadas entre exorcistas: uma runa espiritual, gravada em carne viva, em forma de um crucifixo flamejante que queimava eternamente em suas costas.

    Pele dilacerada.

    Dor eterna.

    E orgulho absoluto.

    — NINGUÉM! — sua voz saiu mais baixa, mais aguda. Feminina.

    Como um sussurro vindo de dentro.

    Como outra pessoa… morando nele.

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