Capítulo 302 - Infantilidade de ser infeliz
A luta de fato começou.
E… novamente, ela se via diante de um abismo.
Era conflitante. Um déjà-vu envenenado pela memória de derrotas e cicatrizes. Mais uma vez, estava diante de uma situação que somente ela poderia enfrentar — e não havia margem para erro. Não agora. Não com tantas vidas dependentes de sua decisão.
Se ele sequer tivesse uma chance… seria o fim.
Foi com esse pensamento que se lançou à frente. Sem um olho, sem uma mão, com metade do corpo em frangalhos… mas sua aura — intensa, flamejante, indomável — irradiava um poder que cortava o ar como lâminas.
Morte. Era uma certeza. Definitiva. Mas ela já flertara com ela antes, e agora dançava em sua beira com maestria.
Metade de seu cérebro estava comprometido desde a última batalha. Só permanecia em pé graças à outra metade — a mente ainda viva, mantida por uma convergência de aura que transformava energia em impulso neural. Era rudimentar. Era instável. Mas era o suficiente.
— Não me vencerá se segurando! — gritou, cuspindo sangue, enquanto as trevas dele ganhavam forma, densa como piche.
À sua frente, um caminho de espinhos emergiu do chão — longos, negros, afiados como adagas profanas. Eles quase a despedaçaram.
Ela desviou. Um salto lateral, depois outro. Um impulso vertical. Subiu, como uma flecha desesperada disparada contra o próprio destino.
Será?
Pensou. Duvidou.
Era absurdo o quanto ainda se movia com agilidade, mesmo com os sentidos desordenados, com o corpo respondendo em atrasos, como se houvesse um segundo de lag entre a alma e a carne.
Será que consigo salvar esses garotos?
Fria. Determinada. Como sempre. Não pensava em si. Nunca pensou. Desde o momento em que suas mãos ganharam força para moldar o destino, ela se tornou ferramenta de algo maior. Uma mártir silenciosa.
E o destino… o palco cruel onde ela atuava. Ao redor, os olhares aflitos dos sobreviventes se afastaram, temendo o desfecho.
E então, num instante — um piscar de olhos, um suspiro engasgado — avançou. Um passo para o impulso final.
Mas sua fiel lhe traiu…
— Maledicta umbra rebellis!
A dádiva infernal. A maldição imposta às vítimas das palavras malditas. A entidade demoníaca canalizou sua energia através da sombra. E não apenas a dele — mas também a dela.
Um estalo seco. Carne rasgando. Sangue espirrando. O impacto brutal estilhaçou seu joelho, e ela caiu, sentindo o corpo vibrar de dor.
Estava envolta numa carapuça de espinhos. Brutal, insidiosa. Cada agulha cravada como se quisessem costurar sua alma à dor.
— Não adianta o quão rápida seja… — a voz grave como a queda de uma tempestade — Meus espinhos nascem no fugaz de sua sombra!
Flertando com o próprio ego, saboreava a vantagem como um bom vinho. Atingi-la havia lhe dado algo mais que impulso — dera-lhe confiança. Uma confiança cega, embriagada, que lhe fazia crer que, naquele instante… era inalcançável. Intocável. Invencível.
Avançava devagar, os pés arrastando a poeira enegrecida, enquanto a sua escuridão ao redor se expandia como um oceano.
— Você não terá mais que instantes antes de eu a ceifar de vez! — bradou, com a voz arrastada pelo peso da arrogância, os olhos brilhando como brasas envenenadas. — Sinto seu fluxo comprometido, costurado por essa trapaça… Mas é só cortar um fio — um só — e tudo… desmorona.
Parou, erguendo uma das mãos. Seus dedos dançaram no ar como maestros de um requiem sombrio, e as sombras atrás dele reagiram, ondulando como um coro demoníaco à espera da nota final.
— Elûm não tem piedade… — murmurou, com um sorriso viciado. — E eu aprendi com ele.
O chão começou a tremer.
As sombras, antes silenciosas, agora rugiam em uníssono com o solo, vibrando como as cordas de um instrumento demoníaco afinado para o massacre.
Droga… logo eu, pensou, ofegante, enquanto o sangue escorria por entre os espinhos. Tão fatalista entre quatro paredes… tão dona do próprio fim… e agora me vejo… desse jeito…
A carapaça cravada em sua carne parecia pulsar mais a forçando a gemer de dor, como se as trevas fossem alimentando-se da soberba da entidade, e da sua hesitação. Mas não chorava. Só deixava o olho falar.
E nele… ainda ardia uma centelha.
Um brilho ínfimo, rebelde.
Não de esperança — isso já era pó em sua alma livres das amarras da infantilidade. Mas de algo mais velho que o medo, mais denso que o ódio.
Sobrevivência.
— Você fala como se já tivesse me vencido… — disse, a voz rouca, trincada, quase inaudível — …mas se aprendeu com Elum, devia saber: até Ele… já caiu uma vez!
Quando deu esperança aos homens.
Decretou em pensamento, como uma lâmina afiada fincando-se na alma do inimigo.
E então, algo mudou.
Um ruído metálico. Fraco, mas crescente. Como sinos ao longe, ecoando além do plano físico, atravessando a matéria, costurando-se ao tecido da existência. Não era som — era vibração. Um despertar.
Uma promessa antiga sendo quebrada…
O ar ficou mais denso. As sombras estremeceram. E o ombro da entidade… cedeu.
Um corte limpo. Quase imperceptível. Mas profundo o suficiente para quase decepar-lhe o braço. Ele cambaleou — um, cinco, trinta metros — recuando com o terror estampado nos olhos.
— O que…?
A incredulidade em sua voz contrastava com a certeza que até então o moldava.
Não entendia.
Minhas palavras a alcançaram?
Sangue escorreu dos lábios dele e dela.
Vermelho escuro e púrpura profundo, espesso, carregado de aura. Mas suas bocas… se contorcem em um sorriso.
— O que foi? — ela cuspiu, arrastando-se em meio aos espinhos — Não disse que me ceifaria em instantes? E… por que esse sorriso na cara?
Se levantou.
Tremendo.
Um pé, depois o outro. Como se cada músculo gritasse. Como se o mundo tentasse impedi-la de existir. Mas ali estava — torta, rasgada, mas viva.
Ele ainda exalava confiança.
— Por que?
Ela, sangue.
Mas ainda não tinha terminado.
— Por que…
E agora… o demônio sabia disso.
— Por que agora você não me tratará como um mero obstáculo! Quero que meus últimos instantes, assim como os seus… sejam gloriosos! — Sua voz tocou o coração de ambos.
Feliz… sabia disso.
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