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    — Por que está chorando, Zuri? Você não é mais uma garotinha… — disse um velho, olhos calejados como pedras sob a aurora, pele negra como o ébano queimado pelo tempo, mãos em frangalhos que pareciam feitas de casca seca. Vestia um chapéu de palha desbotado, torto pela idade e pelos ventos. Estavam em meio à colheita — ou melhor, ao que sobrava dela: uma terra rachada, cruel, ressequida como os lábios dele, e um jumento magro que mal conseguia manter-se em pé, a sombra de si.

    A enxada em suas mãos tremia, mas não pelo esforço — e sim pela raiva contida de gerações.

    — Mas… — a pequena, os olhos grandes como estrelas já há muito tempo mortas, a voz ainda tingida de esperança, — por que não posso chorar?

    — Porque sua mãe morreu por ser fraca. Veja seus irmãos… eu… estamos vivos. Assim como Nṯr canta: aos fortes, o amparo. Pois, na falta de lágrimas nos olhos, concedo a força! — disse, pela enésima vez, como se cada palavra fosse uma pedra lançada para esmagar a emoção.

    Era a doutrina.

    Era a tradição.

    Era a maldição.

    A mesma que derrubou gerações e impôs uma guerra étnica eterna: a fé.

    Aos homens, nunca foi salvação — mas arma.

    Para oprimir, para dizimar.

    Digo “homens”, pois a fé, assim como a verdade, jamais se curva à compreensão daqueles que apenas desejam controle.

    Por fim, a jovem ouvia aquela prece que queria o fim de seu coração.

    Não era gritada.

    Não era suplicada.

    Era como veneno escorrendo pelas frestas dos lábios daquele que ela chamava de pai.

    Fraca…

    Fraca!

    FRACA!

    — Então era essa a merda que me travou por toda essa vida? — murmurou, agora adulta, mordendo os próprios lábios com tanta força que o gosto de sangue invadiu sua língua. Viu a cena diante de si como se fosse uma pintura antiga, rachada… um espectro preso no tempo. Um vendaval ergueu a poeira, o passado e os gritos sufocados.

    E então, os rostos: Nataly em prantos. Yoshida, silencioso, olhar perdido. Sofie e Ethan… até eles. Os que ela julgava insensíveis demais para se importar com a morte… também choravam.

    — Idiotas…

    POR ESSES FRACOS QUE EU MORRI?

    Sério?

    Vão mesmo lamentar a morte de alguém tão falsa como eu?

    A voz rasgava a própria garganta como vidro.

    Não gritava para o mundo que deixava para trás — gritava para dentro, onde tudo apodrecia há anos.

    O que deixei para eles?

    O que eu fiz por eles?

    Imagens despedaçadas passavam diante de seus olhos: um sorriso forçado, uma promessa quebrada, uma ausência nunca reparada.

    Qualquer um teria feito o que eu fiz… qualquer um…

    — Eu não sou especial… — sussurrou, afundando-se no chão vazio daquele espaço mental. — Nunca fui. Nunca serei.

    Lágrimas caíram-lhe ao rosto — quentes, pesadas, libertas.

    Mas… aquilo não era um purgatório.

    Nem o limbo de sua existência.

    Uma luz suave envolveu suas costas, como um afago que ela nunca recebeu.

    — Que clichê… — disse, num tom de desprezo irônico, fechando os olhos. Um lapso se seguiu. Um silêncio tão absoluto que parecia um mergulho.

    Seria o paraíso?

    — Qual é, Elum… o que eu fiz pra merecer essa bosta de paraíso? Fui tão covarde… não fui eu…

    — Você foi forte… antes… e depois… — disse uma voz doce, familiar.

    Ela virou-se. E ali estava.

    Ela mesma. Com dez anos. Os pés sujos de barro seco, os olhos marejados, mas firmes.

    — Quê? Do que você sabe, pirralha? — riu com amargura. — Nessa época… você ainda mijava na cama…

    Uma risada.

    O sorriso era tênue, mas o suficiente para congelar o ar.

    A figura diante de si — a sombra distorcida de um ser que não podia ser tocado — olhou para si mais velha com um olhar que não era de julgamento. Era de compreensão.

    — Do que tá vendo graça? — resmungou, com os dentes cerrados. — Isso é… fraqueza!

    Fraqueza.

    A palavra que a persegue.

    Que a moldou.

    Que a definiu.

    A sombra sorriu — e o sorriso não era zombador.

    Era um reflexo das próprias dúvidas que habitavam no âmago de sua alma.

    Um espelho de tudo o que temia, mas não ousava admitir.

    — Você é forte… Não se esqueça disso… tá?

    Era ela mesma.

    Como aquela criança do passado.

    A mesma frase. As mesmas palavras.

    A voz que ressoava nas paredes de sua alma, tentando ressuscitar algo que acreditava ter perdido.

    Ela era a raiz.

    A base de tudo.

    Era o que restava quando tudo ao redor morria.

    Fechou os olhos, o peso daquelas palavras caindo como um fardo sobre os ombros.

    A luz que a envolvia começava a pulsar — lenta, constante — como se tentasse reacender o que julgara perdido.

    Ela sempre pensou que a fraqueza era algo impiedoso. Algo a ser banido, esmagado, escondido.

    Mas ali, naquela sombra, algo estava diferente.

    A fraqueza não a havia destruído.

    Ela a havia esquecido.

    E essa era sua verdadeira punição.

    Não ser capaz de se lembrar de sua própria força.

    Era um reflexo.

    Uma verdade que ela tinha tentado enterrar:

    A força não estava na ausência de dor, mas na capacidade de suportá-la, de crescer nela.

    Então abriu os olhos novamente. O vazio ainda estava lá,

    mas a sombra — não estava mais sozinha.

    — Então… o que faço agora? — murmurou, quase inaudível, como se tivesse encontrado finalmente uma pergunta que merecia ser feita.

    A sombra a observou, silenciosa.

    E ela sentiu que, talvez, a resposta estivesse em algo mais simples do que jamais imaginara.

    E estava.

    Já estava liberta.

    Sua alma, enfim, se desprendia —

    não como fuga,

    mas como retorno à sua essência.

    Ascendia ao campo de batalha, onde o corpo jazia imóvel, enquanto o caos seguia desenfreado.

    Mas como luz…

    No horizonte da guerra, o demônio escapava dos ataques com brutalidade e leveza — como um animal ferido que ainda se agarra à fúria para sobreviver.

    Será que encontrou seu propósito?

    Se perguntava, de algum lugar dentro de si — ou além.

    E, enquanto feixes de luz cruzavam os céus como lâminas divinas, sentiu algo…

    No peito.

    Como se o toque de um sentimento esquecido ainda ecoasse.

    Mas era a luz rasgando sua pele.

    Será que encontrou uma resposta?

    E então — sumiu.

    No ápice do caos.

    No instante onde vitória e ruína se confundiam.

    Do nada.

    Derrotado… mesmo tendo vencido.

    Mas deixando para trás um rastro de ódio espesso, quase tangível.

    O tipo de presença que não desaparece — se infiltra.

    Reapareceu a quilômetros dali.

    Arrastando os pés.

    Cada passo, um lamento.

    Em um milésimo de segundo…

    Um instante tão pífio que nem o tempo se incomodou em registrar.

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