Capítulo 314 - Tragédia, o segundo ato
Tripas…
Sangue…
Vazava profusamente de seu estômago rasgado, escorrendo gotas vermelhas que manchavam suas vestes escuras e surradas. Pingava ao chão, formando poças que pareciam querer engoli-lo. Mesmo assim, um sorriso torto se formava em seus lábios rachados.
— Tá feliz é?
— Tô…
Tentou falar mais, mas da sua boca saiu apenas uma tosse violenta, jorrando mais sangue quente a seus pés.
— Que deplorável… — o demônio se aproximou — Falou tanto… Ehr… se achou invencível, né, cara?
O demônio tentou reunir forças para retrucar triunfante, mas a sensação de sorte lhe tirou a confiança e desprezo que tinha. Só sobrou razão e felicidade por estar vivo.
— Mas… dar brecha para o adversário, sendo mais forte ou não, é um erro fatal… e por isso, você morreu!
— Morri?
E então, como se o tempo tivesse sido puxado para trás, um estalo cortou o ar – seco, certeiro.
E de repente, o demônio se viu de volta, na mesma posição em que estava antes do ataque, imóvel, confuso, os olhos arregalados em descrença absoluta.
— O que…?
— Aconteceu? Ehr… você… foi burro o suficiente para crer que eu estaria lhe dando uma chance real. Na verdade, tá, eu até estava… mas… dentro ou fora desse domínio, ninguém pode me matar!
Ele recuou, os olhos ora fixos, ora buscando desesperadamente uma saída, enquanto a realidade parecia se dobrar e se reconfigurar diante dele.
— Como… como fez isso? — Um sussurro entrecortado pelo medo, o pânico crescendo com uma velocidade assustadora.
Antes, era só um receio. Depois virou medo.
Agora… era colapso.
— Como? Ué… foi um ótimo primeiro ato! Mas eu te falei, não falei? Vão ser três…
Enquanto esmagava lentamente qualquer fagulha de esperança, as cortinas do teatro se fechavam com um baque surdo e se abriam logo em seguida, revelando o próximo ato:
A tragédia.
A plateia invisível batia palmas. O ar tornava-se pesado, denso de presságios.
Graças ao seu feitiço…
O terrível Mortis, o ator imortal, anulou a linha temporal onde morria – arrancou-a do tecido do destino como quem rasga uma página do roteiro.
…E criou outra, nova, escrita à sua imagem, onde o erro não mais se repetiria.
Um palco redesenhado.
Uma morte esquecida.
E um destino, agora inevitável.
— Resumidamente, na etapa um: se eu morrer, eu retorno… e… anulo não só o que aconteceu, mas também me torno imune a essa morte.
— Mas… eu me lembro que te matei… — a voz do ser falhou, trêmula, traída pelo terror crescente que se enraizava em seu peito como um espinho invisível.
— É, você se lembra da cena anterior… mas tudo isso faz parte do roteiro, não é? Afinal… fomos apenas atores.
Desde o instante em que o domínio foi aberto, os papéis foram definidos.
Ele: protagonista.
O outro? Apenas o antagonista.
— Maldição… — sussurrou, já sem forças, a resistência desfeita como cinzas ao vento.
Seu corpo ainda permanecia, mas sua alma abissal… já estava ajoelhada diante do inevitável.
Maldição!
MALDIÇÃO!
Eu não vou cair aqui!
Não… não depois de tudo!
A vontade veio. De novo.
Quis atacar, tentou se mover, mas então notou algo estranho em sua mão direita, a do meio entre as três – uma arma.
Uma pistola reluzente.
Quando ergueu os olhos. Masaru estava vestido como um mafioso, em um terno escuro alinhado, com outra arma em punho.
— Vamos trocar balas, demônio?
Mas o que estava diante dele…
Ia além do senso comum.
Não era apenas uma luta. Decidida por aquele que tem mais poder ou estratégia.
Era um teatro cósmico, onde as vontades se dobravam às linhas de um roteiro inalcançável para qualquer um, que não fosse o próprio celeste.
— Tragodiae… Esse é o meu feitiço de restrição. Com ele… eu defino a cena, os acontecimentos, os papéis… o roteiro inteiro. Aliás… dê uma olhada. Em uma das suas mãos esquerdas… — disse, quase com desdém — há uma folha.
O demônio baixou o olhar.
Lá estava ela.
Uma folha branca A4.
Simples.
Escrita com tinta uma única palavra:
“Atire.”
— Que palhaçada…
A incredulidade dava lugar a um desespero que crescia a cada segundo, corroendo a razão.
— É… a vida, o teatro… é tudo palhaçada! — Com um sorriso e olhar penetrante — Mas você não vê, não é?
— O que?
— O que está além das entrelinhas. A morte não é o fim de tudo, assim como a tragédia não é o começo. Às vezes, ela é só… o meio! E o que vem depois?
— Cala a boca!
O disparo cortou o ar com um som cruel, seco, definitivo – um estalo que selava destinos.
Tal que o corpo caiu, tombando sem vida sobre o palco, imóvel, sob os holofotes frios que iluminavam a cena da última derrota.
O mafioso, morto a sangue frio… era trágico demais para ser apenas um ato.
Seriam ilusões?
Não… eu matei ele…
Pensou o pobre demônio, um fio tênue de esperança surgindo no meio do pânico.
Dessa vez, olhos vazios. Sem brilho. Sem vida. Parecia finalmente ter encontrado o silêncio eterno.
Mas…
— Incantatio expansiva: veni ad me, incarnatio mortis meae, pugna pro me!
Saiu da boca do moribundo, que já não respirava.
O cadáver se ergueu com um estalo horrível, seus ossos se contorcendo como galhos secos.
E então… das costas rasgadas, surgiu uma criatura demoníaca, imensa, horrenda, como se o próprio inferno tivesse aberto um olho.
Um abismo se escancarava em seu corpo – negro, vivo, pulsando.
Sangue podre escorria, como óleo maldito, queimando tudo que tocava.
DE NOVO?!
Desviou por pouco.
Um disparo de pura escuridão, denso, como se a própria noite tivesse sido comprimida em um projétil, cruzou o ar, vindo direto do buraco “hollow” que se abria no abdômen da entidade invocada.
Era o mesmo tipo de disparo que ele próprio havia usado para matar o exorcista… na primeira vez.
Mas agora, estava do outro lado da mira.
O ser… era terrivelmente deformado.
Não tinha olhos. Nem bocas.
Silencioso como a morte.
Magro, quase esquelético, a pele branca, pálida como ossos expostos à lua.
Os braços desciam até os joelhos, finos, longos demais.
As pernas, dobradas por excesso de comprimento, o mantinham curvado como uma aberração prestes a saltar.
Media quase quatro metros de altura.
— Gr…
O som escapou involuntário de sua garganta, enquanto sentia o calor sombrio do disparo passar rente à sua pele. Não queimava como fogo… queimava como a escuridão das próprias trevas.
O palco tremia, como se prestes a ruir sob o peso de algo que jamais deveria ter sido invocado.
A cortina, agora enegrecida, manchada de pura escuridão, balançava.
A Tragédia… continuava.
— Por quem você luta? — ecoou uma voz indiferente, fria como mármore.
Veio do palco…
Não – da plateia.
Lá estava ele.
Masaru.
Sentado de pernas cruzadas, em uma das poltronas. Vivo, impecável, novamente, com suas vestes normais.
— Você…?
Murmurou o demônio, confuso, o suor frio escorrendo por sua têmpora.
Mas ao olhar novamente para o cadáver que supunha ser ele…
Era só um monte de vermes.
Eles se contorciam sobre a madeira velha, escorrendo como uma lembrança pútrida da ilusão que foi.
Um disparo o atingiu.
Veio do demônio conjurado, que não parava.
O impacto o lançou para trás, os pés arrastando-se pelo palco.
O choque queimava até os ossos.
— Eu? — Erguendo-se lentamente, limpando a poeira do terno — Só estava… testando os bancos.
Fez uma pausa, o sorriso torto, sarcástico.
— E tenho que admitir… são confortáveis!
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