Capítulo 315 - Ato final
— Então, demônio… por quem você luta? Ou… pelo quê?
A pergunta cortou o ar como uma navalha.
Repete, deixando que o silêncio fermentasse entre uma palavra e outra.
E, enfim, provara o gosto amargo da ausência de resposta.
Como um bom sommelier, sentira a textura do que julgava ser o limite, a fronteira tênue entre o compreensível e o insondável, onde terminavam as palavras e começava o abismo.
O GRANDE ABISMO QUE O SEPARAVA DOS DEMAIS. E… o tornava tão distante.
Como um coração que vivia por aparelhos, a graça cessou.
Pois cortara as raízes da calmaria, até mesmo as falsas e artificiais.
O choque…
Aquela sensação de encarar algo que não deveria estar ali, diante de si. Algo que não se encaixava em sua lógica, nem em seu mundo.
Ao se deparar com algo inalcançável.
Não por distância.
Não só por força.
Mas por natureza.
Como tentar respirar debaixo d’água.
Ou tentar tocar o vazio… e esperar que retribuísse o gesto.
Esse cara…
…Eu matarei!
Algo mudara.
Até mesmo seus pensamentos.
As sombras, tímidas, recolheram seus dedos longos.
Perdera a coragem.
M-matarei!
O ar…
Como o hálito de algo que rastejava por entre mundos.
Havia algo errado. Algo podre.
Um cheiro de ferro, de terra molhada com sangue.
E antes que estivesse completamente imerso na sensação…
Fuja!
Gritara-lhe a própria pele.
Desviando por instinto, os pés rodopiavam no ar, no último segundo.
Um pulsar negro passara rente, como um coração que batesse fora do corpo, latejando ódio.
Atravessara tudo.
Tudo.
Não teria descanso até que acabasse… ou morresse.
Não há escapatória! Ele me encurralou.
E, no meio de sua quase morte, uma ideia.
Os olhos, até então “indiferentes” ao medo e ao choque que sentia, tornaram-se um com o abismo.
Um vazio tão profundo que engolia o olhar de quem ousasse encará-lo.
Preciso usar até a última gota de escuridão para matar esse desgraçado!
E então…
Explodiu.
Uma intenção bruta, assassina, que rasgara temporariamente o domínio como um relâmpago em meio à calmaria.
Meros milessegundos.
— Não… não! Não morrerei aqui!
À beira de ser engolido pela dor, sufocou… mas, no fio da existência, respirou.
Tua escuridão…
Abrira-se como uma boca faminta.
Não apenas uma sombra, mas algo que vinha de dentro, da alma abissal que portava, como se o próprio inferno tivesse sido vomitado por aquela presença.
E então, veio a sentença final de seus anseios; gélida, sem piedade:
— Donum Abyssi! Fulgur Directum!
Tudo piscou em branco.
Uma descarga tão letal que era impossível, mesmo para qualquer ser envolto em luz, não ser reduzido a nada.
Equiparável às chamas negras.
E como se manifestou?
Como um trovão enraizado e peçonhento, espesso como fumaça, que desenhara o trajeto até o celeste, ultrapassando quaisquer barreiras ou limites.
Os raios que o acompanhavam não eram comuns. Eram vivos. Monstruosos.
E urravam como feras em agonia.
Feras que se lembravam de ter sido presas. E agora… não mais.
O palco rachara em veias profundos, como se o própria quisesse fugir.
O ambiente inteiro sussurrava…
Mas não eram palavras.
Eram rosnados.
Mate-o! Mate-o! Mate-o!
Enganava-se quem pensava que era por raiva – era sofrimento. A cada uso, a essência das trevas dos assimiliados era despedaçada, como se fossem torturados por ceder ao propósito.
Mas…
Enfim, após utilizar tantas técnicas remanescentes das demais entidades, usara sua dádiva do abismo aquela concedida à alma que regia a legião.
O que não mudou a balança. Mas surpreendeu até mesmo, o mais forte dos homens.
— Boa, boa… muito bom! — disse, sorrindo com o canto da boca enquanto observava os próprios dedos, as pontas levemente queimadas, tremendo, fumejando.
Ah…
Quase se podia ver a vida surgir em sua íris.
Você…
— Como pode ser bom!? — rugiu a entidade — Esse raio deveria ter pulverizado você!
Mas ele não respondeu.
Não oralmente.
…Aguenta mais!
O espaço do domínio… tremeu.
Sua aura explodira, mas, já suspensa, era como chacoalhar uma caixa fechada.
Era…Terceiro ato. Final!
As cortinas do palco foram rasgadas por um grito e, entre elas, uma língua vermelha surgiu, maior até do que a própria entidade conjurada.
Era, enfim, o ato final…
Espelhado no olhar insano do celeste.
Exitus!
— É… isso foi bom até demais… demônio, você… você está de parabéns!
— Tá me…
Sua voz foi entrecortada pelo golpe seco que levou vindo do avatar de sua tentativa de homicídio, que, ao enfim acertá-lo, abriu um buraco em seu peito.
Que diabos!?
M-me esqueci desse bicho…
— …Zuando?
E então, ao finalmente feri-lo e derramar seu sangue…
A intenção cessou.
Retornou a ser… pó, na palma da mão de seu conjurador.
Era trágico ser “morto” por uma parte de si.
Tragédia. Pois fim, ao segundo ato.
A entidade afundou-se em uma dissertação interna. Afinal… como diabos um de seus próprios movimentos foi a causa de sua queda?
Seu sangue púrpura escorria. Esgotado, os olhos tentavam enxergar algo além… mas não havia nada. Apenas a cena vergonhosa de ser derrotado sem ao menos fazer o adversário suar.
Quase se ajoelhou, mas, de repente… estava nu.
Seu breu explodiu após acumular sentimentos negativos, como uma bomba de pólvora, um instante puro de adrenalina.
Dos seis braços restou apenas um.
Os muitos olhos reduziram-se a dois.
As caudas, antes múltiplas, agora dançavam como uma só serpente.
E a ferida — embora regenerada — carregava o peso de um luto.
Uma existência salva pelo sacrifício de todas as outras.
Rueal? …Barael!? …T-Toreel?
Lágrimas caíram.
Shoel? …Eel? …Kfael? Não me deixem só! Não!
Até um demônio tinha o que perder em um embate qualquer.
Mas é só mais uma luta, sem consequências. Só isso…
Seria… só triste e humilhante. Mas…
De repente.
A grande língua se contorcia.
E, entre ambos, estendeu-se como um tapete vermelho, mas não de gala.
De puro desamor.
— O que… isso significa!?
Berrou. Chorou. Gritou.
— Que a peça chegou ao instante final.Tudo será devorado… e servirá de alimento para a entidade… a…
סופההבלתינמנעשלחייךצופייקר!
Quando disse, tornou-se inaudível. Como se o próprio mundo recusasse ouvi-lo.
— Entidade? Que caralhos isso importa, seu desgraçado!?
— É o incompreensível sentimento de um final amargo… e agridoce.
Não!
Não era uma pergunta.
Era negação.
A mais profunda e desesperada negação.
Seus olhos, marejados, focaram a face à esquerda.
Um sorriso de orelha a orelha.
Olhos rubros, como se rubis tivessem sangrado.
Era como se tudo tudo aquilo tivesse sido um tributo ao…
Espectador.
E quando voltou o olhar ao exorcista, ao ouvir aquele nome…
Já não havia mais palco.
Na verdade, viu…
O nada.
— Você…
— Eu retirei sua visão. Como quem apaga um personagem fictício do roteiro. Não há mais mundo para você. Por sorte… ainda pode ouvir minha voz.
Tentou se mover… mas não conseguia.
Preso. Ausente. Enterrado na própria consciência.
— Se perguntou como, não é? Ao dizer o nome da entidade, anulo sua percepção do que existe. Você ouve. Você pensa. Mas não interage com o espaço. Não para por ai… se eu falar novamente, posso remover seu entendimento do que está sendo ouvido… ou sentido. Mas aí seria… tão sem graça. Você se tornaria apenas um vegetal.
O que esse cara é!?
Alum… Luciel… Elum…
O que… isso significa!?
Até eu, o mais forte entre os do conselho das trevas…
Digno de ser equiparado a reis, e príncipes…
Pareço tão fraco!?
Grr… tão… fraco!
— Uma pena você não poder responder…
Cruzou os dedos.
Um ar gélido, escapou dos lábios.
— Eu poderia te finalizar com meu feitiço expansivo. Conjurar as três entidades que cercam esse espaço como avatares. Ou mesmo te exorcizar com energia positiva… Mas…
Apertou.
A energia se formou,fluida, límpida, cruelmente bela.
Tão densa e perfeita que parecia um feitiço à parte de tudo que existia.
— Este é…
…meu feitiço divino.
Mordeu os lábios.
E seus olhos, dois sóis sombrios, brilharam.
— Incantatio divina, Absolutio Nihil: Ne Fuit Neque Fuisset!
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