Capítulo 320 - Indo até o limite
Faces. Inúmeras.
Persistem mesmo quando os olhos se negam a vê-las. Silhuetas, memórias, delírios — tanto faz.
Se alguém parte ou não, pouco importa… Pois há sempre um e se que permanece. Um sussurro pútrido enterrado na raiz da mente, que se repete como uma prece.
E rasteja por trás das pálpebras,
arranhando a razão, soprando promessas de um futuro que nunca foi, assombrando cada alma… ignorante.
Ou inteligente demais para escapar.
Pensar no que nunca aconteceu… ruminar o irreal… é sina de quê?
Ansiedade?
Não.
É possessão.
Uma condenação que dilacera o tempo com hipóteses, martela possibilidades nos ossos como um bom serial killer, e rasga cicatrizes em mundos que jamais existiram.
Duvidar de si… das próprias escolhas… é criar? Ou é só mais uma forma elegante de sangrar?
Não importa se foi real ou apenas projeção.
O delírio tinha gosto e o fracasso, cheiro.
A besta, estava agora à mercê da técnica restrita da celeste.
Exspectatio fracta.
Era instantâneo.
Toda tentativa de tocar o impossível… evaporava. Cada impulso em direção ao que desejava era esmagado pela maldita…
A maldita. Maldita!
Ele… havia desaprendido a ser demônio. Outrora caótico, imprevisível, infame. Agora, um mero eco de si.
O drama se infiltrava em sua mente como mofo, corrompendo sua essência, convertendo o terror que fora… na própria ruína.
Não importava se suas garras negras roçavam a carne dela, ou se sua dádiva flamejante quase a tocasse…
Por anseiar, já estava condenado.
O desejo era o gatilho para o erro.
E cada tentativa era retrabalhada, distorcida, para que sua falha soasse… inevitável.
— Por que não funciona!? Por que nada funciona!?
Um berro afogado.
Mesmo que se movesse, não escaparia. Mesmo que rugisse, não quebraria o silêncio imposto.
Não havia fronteira. Nenhuma parede, linha ou céu. O domínio dela se estendia como a febre do desespero — absoluto.
E assim, os eventos não tinham limite.
um campo sem fim…
— Ultima Liberatio, Vastator Mundorum!
A sentença foi cuspida com fúria. E então… liberou. Um acúmulo obsceno de trevas, há eras contido, transbordou de seu corpo como uma onda negra que se espalhou como um sonar, dissolvendo tudo em seu campo de visão.
Era… o limite. A última ruptura. A fronteira final entre o que é e o que jamais deveria ter sido.
Uma das técnicas mais temidas entre os seus. A capacidade de liberar sua aura latente num único grito de negação absoluta.
Uma explosão comparável a um blackout espiritual… mas infinitamente mais destrutiva.
E que… Não passara de uma tentativa grotesca. Um espasmo desesperado.
Formando uma cratera dilacerada no campo infindável. Descomunal. Caberiam dezenas de milhares de cidades ali dentro e ainda sobraria espaço.
No centro, onde o mundo deveria ter se partido, sua visão turvava.
Mas ele viu. As raízes do tecelão. O sorriso exposto. Os dentes afiados espumando. E ela, com os cabelos ocultando parte da face, como se o vendaval tivesse falhado em tocar sequer um fio.
Parecia uma árvore impossível, enraizada até o núcleo da realidade, com galhos que ultrapassavam o tempo. E seus ramos… nem mesmo arranhados.
— O que foi, exorcista? Cadê sua confiança agora?
Ele flutuava. Ou achava que flutuava…
até que notou o olhar dela. Convencido e inquebrável.
— P-por que está me olhando assim…?
O silêncio respondeu primeiro.
A areia e a pedra ao redor… reorganizadas. Como peças de um tabuleiro, cuidadosamente recolocadas após o término da primeira partida.
Tudo, no domínio da Técnica, foi reconstruído. Lugares, formas, memórias… Vidas ceifadas, ressuscitadas.
E no ar… só restava a tentativa falha.
E o seu anseio — aquele desejo maldito de fazer algo digno, de enfim quebrar o ciclo, impedir que seu drama virasse piada… tudo isso foi reescrito.
— Sinceramente… vai mesmo usar uma tática tão ruim?
Ele arfava.
Com ódio, fome.
Com algo que nem ele mais sabia nomear, um vazio entre o desejo e o colapso.
— R-ruim…?
Riu, sem fôlego. Uma risada quebrada.
— Solidão… minha única amante fiel…
Engoliu seco, olhos arregalados, o corpo tremendo.
— E você ainda tem a audácia de zombar disso?
Enquanto o Tecelão erguia lentamente a mão esquerda, a cena tinha a calma dos finais inevitáveis.
O desfecho já estava escrito… determinado no instante em que a essência começou a se dissipar em sua palma, gota por gota.
— Gr… Não se recuperou dos danos do ataque anterior, não é?
Como uma faca deslizando por seda.
— Já está sem energia pra emanar luz… ou será que simplesmente acabaram os seus truques ridículos?
— Está falando… desses ferimentos bobos?
Seu corpo era uma tapeçaria.
Cada ferida, uma medalha cravejada em carne. Suas condecorações? Gravadas a fogo em seu belo corpo.
O queixo dilacerado.
O ombro ardendo.
A coxa esquerda carbonizada.
E o pescoço… fumegava.
— É preciso nem mais que isso… bem mais!
E então, apontou para ele. Um gesto simples que rasgou o ar.
Fez seus pés se moverem por instinto.
O arrepio percorreu sua espinha como uma sentença não escrita. E recuou. Trêmulo.
— Você é…
— Incantatio Divina: Fatum Fixum, Transitus Ineluctabilis!
As palavras foram cuspidas com o peso de eras. E tudo se converteu à visão da criatura.
O espaço se contraiu. O físico e o metafísico implodiram em silêncio. O domínio inato foi encerrado, não uma simples anulação…
Mas com uma explosão que abalou o multiverso inteiro. Linhas do tempo, tramas de causalidade, frequências ontológicas… tudo desabou.
A linha entre destino e caminho foi cortada. E ali, no vácuo final, o fim foi traçado.
Apenas passado e memória.
E quando a técnica enfim cessou o tempo retornou com um baque brutal.
Ela caiu de joelhos, o selo gravado em sua alma estalando como vidro trincado. Quase desmaiou. O sangue escorria como uma poça viva, abraçando seu corpo.
Dei tudo de mim…
Seus lábios tremeram, mas não recuaram.
…Só assim, espero que você esteja bem, meu amor…
Sustentando tudo até ali. Cada partícula, cada ruptura do seu ser carregando o impossível nas costas até que enfim lidasse com a ameaça.
Dando tudo de si. Mesmo que estivesse selado, o que havia sido proibido.
Tudo, por ele.
Pelo amor da sua vida.
Morrer por alguém… você faria?
Ou deixaria a promessa secar na garganta, esperando que o outro sangrasse primeiro por você?
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