Capítulo 322 - Peste
— Gradus Máximo: Vulturatio, Crimen Deicidium! — bradou a entidade, a voz rugindo como trombetas em um massacre celestial.
E então, de suas costas abertas como portões do abismo, irromperam dezenas de aves negras.
Corvos demoníacos, abutres com olhos vazios. Cada batida de asa cortava o ar com a fome de ciclos trancados, e o enxame voou em uníssono, como um trovão de trevas, direto em direção ao jovem.
Mahmoud não recuou.
Inspirou profundamente.
E mesmo que seu manto dourado trêmulasse para trás como uma bandeira ao vento, nada empurrava ou desafiava a firmeza de seus passos.
Era exorcizar… Ou morrer.
— Incantatio Divina: Ajogun, Dominus Calamitatum et Pestium!
E então, com a respiração profunda, lenta, reverente. Invocou aquilo que não devia ser nomeado.
O mundo calou.
Os sons cessaram por completo.
Até os grunhidos infernais, nascidos da boca suja do próprio abismo, silenciaram como cães diante de algo maior.
No lugar deles… um cintilar estranho.
Um som metálico, sutil, um agogô ecoou no ar, como um sino — não para assustar, mas para saudar.
Era o anúncio de que Ele havia chegado.
Todos os outros desapareceram.
Ecos tragados por um novo domínio.
E, com eles, tudo que carregava e os representava, seus adornos, sua identidade visível, foi transmutado.
A capa.
Os brincos.
Os braceletes.
O colar.
E, por fim, as tatuagens em sua pele.
O próprio Ajogun, Senhor das enfermidades, havia descido. Não como uma ideia, mas como algo que impunha-se sobre o mundo, preenchendo o ar com febre, praga e um silêncio doentio.
Diante do enxame, ele não se movia ou dizia.
Não precisava.
Seu ser contaminava.
Com a mão esquerda estendida, manipulou o próprio conceito de doença — infectando as aves antes que o impacto ocorresse.
As trevas que se aproximavam foram tomadas por febre, decadência e fraqueza.
Uma por uma… começaram a cair.
Nem Matteo, ao longe, pôde ver com clareza. Entre a névoa densa e o negrume absoluto, tudo que se percebia era o vulto de um trem cortando o véu da morte.
— Sério…?
Murmurou o demônio, a voz baixa, quase inaudível.
Os dentes se cerraram com tanta força que o som pareceu o estalo de ossos se partindo. Sua mandíbula tremia.
Esse vagabundo tem uma resposta pra tudo!
O olhar queimava.
As aves, antes predadoras, agora tossiam agonia no ar, já mortas antes de tocarem o chão.
Suas trevas, reduzidas à decadência pura.
O ser de pele ébano, envolto em um manto de ouro reluzente como Aurora, permanecia imóvel.
Dele emanava autoridade. Não era um movimento, era uma presença. Não precisava atacar para dominar; ele distribuía poder, como um rei antigo que era de seu povo.
Mahmoud arfava.
Aquilo custava caro.
Cada segundo com a presença de Ajogun ancorada à realidade era um preço pago.
O dano, invisível, mas real era distribuído como uma maldição.
Ao inimigo, ao campo… e a ele mesmo.
O jovem sentia o abraço da pior de todas as doenças envolvendo-o lentamente.
Não febre. Não peste. Morte.
Não era um aliado. Não era um servo. Era um flagelo primordial. E invocá-lo… não era um ato. Era um pacto.
Usar sua força para prolongar o combate seria suicídio.
Essa técnica não era feita para lutar.
Era feita para escolher.
Para decidir.
Por isso, só tinha uma carta na manga.
Não era possível manipular algo desse calibre.
Não se ordena.
Não se sobrevive a ele por ousadia.
Era preciso respeito e reverência.
No máximo… te ouviria.
E, se aceitasse, te daria uma chance.
Apenas uma.
Mesmo sua maior técnica, seu ápice absoluto, serviria apenas para anular um ataque.
Não para vencer.
Expandir novamente? Levaria tempo.
E tempo, naquele lugar… era sentença.
— Hahahahahah!
Ecoou a risada quando, enfim, as sombras se dissiparam, como fumaça após um incêndio que não queimou o suficiente.
Seu olhar cintilava com desdém. A boca, deformada num sorriso largo demais para parecer humano, expressava triunfo e ofensa.
Percebera a ruptura.
— Então foi isso… humano… — rosnou com ironia venenosa, dando um passo à frente, como quem pisa em formigas — O que achou que conseguiria? Hahahahah! — gargalhou outra vez, mais alto, mais sujo — Realmente… há uma grande diferença entre um celeste e um não!
Seus olhos brilharam em rubro maldito.
— Você não deu nem pro cheiro.
Cruel.
Vitorioso.
Mahmoud apenas inclinou a cabeça, um leve sorriso no canto dos lábios.
— É…?
E então… estacou.
Algo atravessava seu corpo.
Uma lança de luz, perfurava-lhe o estômago. Ardia. Queimava.
Era uma quebra na estrutura de sua alma.
— Achou mesmo… que eu estava perdendo tempo com uma cena idiota dessa? — Sua voz era fria. O olhar, sem medo. A respiração, estável.
— Você… — gaguejou a criatura.
Mal terminou a palavra.
Um segundo feixe de luz o atravessou abrindo um rastro ardente nas costas.
A dor fez seu corpo curvar.
— Eu só precisava lidar com a sua técnica… sem ser atingido — Em um tom didático — Me curar não adiantaria. Cansado, eu morreria. Meu manto tem limite. E as entidades… odeiam ser usadas por alguém incapaz.
Fez uma breve pausa, os olhos fixos no inimigo em ruína.
— Então, tive que aprender a ser eficiente. Por bem… ou por mal.
Levantou um pouco o queixo, com o orgulho silencioso de quem sobreviveu ao impossível.
— E achei a solução!
— Você…! — tentou protestar.
Mas não havia mais tempo.
A ferida não se fechava. Suas trevas, mesmo concentradas, não conseguiam selar o dano. Era luz pura e ela continuava queimando de dentro para fora.
— Eu?
Avançou.
Desviou do último golpe do inimigo, um arco de trevas que explodiu no céu como um último grito.
Os corações de todos palpitaram.
A explosão rasgou o firmamento — e ao varrer mais vida dos céus, levou consigo um pedaço da esperança.
Mas…
Já era tarde.
Com um gesto, apontou para a testa do inimigo.
Boom!
A cabeça explodiu por completo — não restou carne, osso ou sequer sombra.
Apenas o nada.
Um vazio onde antes havia ameaça.
Mas naquele instante… foi o próprio corpo dele que gritou.
Sentiu.
As veias em sua pele pareciam prestes a romper, como rios contidos demais pelo leito frágil da carne. Um tremor percorreu seus músculos. Quase desabou.
Estou…
Pensou, enquanto o mundo à sua volta girava em silêncio.
A adrenalina recuava… e com ela, vinha a fraqueza.
Mas… uma mão em suas costas o fez focar.
— Mahmoud! Mano? Você tá bem?! — a voz de Matteo cortou o ar, carregada de pânico e alívio. Ele correu até o amigo, os olhos arregalados diante do que acabara de presenciar — Fica firme… isso ainda não acabou!
Enquanto falava, a entidade derrotada começava a se desintegrar.
Com uma serenidade inquietante.
Como cinzas arrastadas por um vento que ninguém sentia.
E então… algo ficou visível.
Uma corrente negra, fina, espectral, invisível aos olhos, mas ali, marcada pela distorção do ar. Ela subia, serpenteando em espiral, como um cordão da condenação… levando consigo a essência das trevas diretamente para os céus.
Ambos recuaram um passo, sentindo um calafrio percorrer a espinha.
— Tem algo estranho nisso tudo… — completou Amai, surgindo logo atrás deles, os olhos fixos no rastro que se dissipava.
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