Capítulo 324 - Rostos do passado
Assim que a árvore surgiu…
O chão tremia, como se o próprio coração da terra estivesse batendo de novo — e errado.
Um pulso irregular, doente, reverberava pelas pedras rachadas que um dia compuseram o cenário, fazendo o ar vibrar, quase inaudível, mas impossível de ignorar.
Raízes negras se espalharam como veias corrompidas, grossas, pulsantes, subindo pelas estruturas quebradas, rasgando, infiltrando-se.
A cada toque, absorviam o apodrecido, o esquecido, corpos soterrados. E onde encostava, despertava algo antigo, uma presença, um sussurro ancestral que pairava como mofo na brisa.
O mal há muito tempo devorado parecia agora regurgitado.
Retornava em forma de espinhos, brotava em folhas de um verde escuro demais, quase negro, exalando um odor agridoce de seiva misturada ao fedor da morte.
Era um convite ao novo mundo.
A colheita enfim chegava. E era hora de arrancar o que foi plantado — não importava se ainda respirava, se suplicava ou se já tinha esquecido quem era.
Cada semente de dor, ódio e de desespero florescia em corações mortos, prontos para serem colhidos, um por um, sob as raízes dessa árvore profana.
E sim… tudo, cada instante sufocado, cada embate cuspido em sangue e gritos, cada lágrima que caiu na terra — tudo isso serviu para alimentar a grandiosa árvore.
Será regada com mais sofrimento, mais pragas, mais finais arrancados à força… até tudo terminar.
E sob a sombra, lá estavam: os últimos a desafiar o destino.
— Ethan… — murmurou Nataly, a voz falhando como se fosse engolida pela noite que estava por vir.
Ela tocou o ombro dele, trêmula, puxando a blusa ensanguentada que grudava na pele quente… mas por quanto tempo?
— Que maldição é essa? — Os olhos arregalados.
Encarando o… o tronco demoníaco.
Dele escorriam rostos ou o que um dia foram. Olhos vazios, bocas abertas em gritos que não faziam mais som.
Alguns ela reconhecia; outros não, mas o horror era o mesmo. Havia também as faces dos demônios exorcizados, agora fundidos à espécie de madeira, suas formas contorcidas em agonia.
James… Brown… Ellie… Os nomes escapavam dela quase como uma prece fracassada.
— Otávio… Kami… — Também sussurrou Ethan, e a voz quebrou como galho seco.
Não conseguia conter. Não conseguia esquecer. Eles se formaram juntos, compartilharam provas, sobreviveram à a noites— e até receberam a passagem de geração, uma promessa de futuro.
Que futuro era esse agora?
Tudo ali, empilhado, consumido pelo destino. E cada lembrança, cada rosto preso na casca, era um lembrete: nada do que floresceu estava a salvo das raízes.
Próximo dali… Sofie, Karoline e Satoshi estavam reunidos, mas era como se estivessem distantes uns dos outros, cada um preso no próprio silêncio.
Paralisados.
O sangue de amigos e inimigos se misturava à lama.
A batalha havia terminado ou ao menos essa parte dela.
O único pilar de razão entre os jovens.
Rimuru Shirasaki mal conseguia manter-se em pé. As pernas tremiam sob o peso de tudo o que já tinha visto e do que não podia mais fechar os olhos para esquecer.
Suas vestes estavam rasgadas, manchadas de sangue seco e seiva escura. O olhar, perdido em algum ponto além daquele tronco demoníaco, era o de quem já se perguntava se valia a pena tentar entender.
Assim como os demais que haviam despertado, Shirasaki estava exaurido — não só na carne, mas na alma, esgotado pela repetição dos exorcismos… pela repetição da morte.
Cada ritual deixava um pedaço para trás. E agora, ali, tudo o que restava era uma promessa vazia de salvação engolida pelas raízes.
Até onde a mente iria? Até onde… suportaria?
Aquela tarefa de matar, purificar, enterrar, resistir… Havia se tornado a névoa sobre seus olhos.
As Sete Trovoadas haviam caído. E com elas, um pedaço da esperança.
Todos estavam em choque. Todos estavam em colapso. Era real? Ou apenas um delírio coletivo em meio à insanidade?
— Não há tempo… — murmurou Satoshi, com os olhos baixos — nem descanso… nem perda… o cansaço pesa tanto que é como carregar o mundo com os ossos quebrados…
Se ajoelhou. O olhar perdido.
— Não pude preparar nada… — continuou — não houve enterro. Nem últimas palavras… só… morte.
— Satoshi? Satoshi?! — Karoline o segurava pelos ombros, sacudindo-o como se tentasse acordar um moribundo — Acorda, por favor!
Mas ele só encarava o chão.
— Por quê? Do que adianta? Me diz… O que eu faço? Nada faz sentido. Nada serve… gritar só traz mais dor… mais e mais e mais dor… — sua voz era uma chuva fina e fria — …e nada muda! NADA!
Silêncio. Havia caído novamente na penumbra, como um bêbado à beira do abismo.
Os pensamentos tropeçando, a sanidade escorregando por entre as frestas da mente.
Então, rasgando aquele breu, surgiu uma faísca.
— Mas vai mudar! — disse Sofie, a voz ecoando fraca, mas firme.
Era quase nada, sopro suficiente para vibrar no peito dos outros.
— Não desiste, Sofie?
Quase sarcástico, mas quebrado demais pra ser veneno de verdade.
Ela virou o rosto, ainda com a respiração pesada, como se o ar queimasse na garganta.
— Ahn? Não vai mudar nada se a gente desistir… — murmurou — Mas se lutarmos… talvez sejamos alguma coisa. Alguma coisa digna.
Ela buscou os olhos dele, que sequer piscava, perdido em memórias e lamúrias. E avançou um passo, como se fosse o arrastar de volta pra realidade.
— Satoshi, seu pai viveu cento e cinquenta anos. Cento e cinquenta! E Você viu ele passar esse tempo todo lamentando… ou tentando mudar o mundo?
— Kyotaka não olhou para o céu e disse “acabou”. Ele continuou. Mesmo quebrado. Mesmo sozinho. Mesmo quando ninguém acreditava mais em nada…
— E eu… sei! — sua voz falhou, rachou, mas não se calou — Eu sei que não sou ninguém. Não sou forte. Não pude proteger meu melhor amigo. Nem sei se minha família está viva… Talvez todos já estejam mortos, como os nossos companheiros agora…
E parou. Um soluço preso na garganta, um suspiro que parecia engasgar o peito.
Mas prosseguiu, porque parar agora seria pior.
— Mas… se a gente desistir, viramos o quê? Espectros? Chorando por cadáveres? — cuspiu as palavras, como se quisesse enfiá-las na carne de cada um ali — Temos que ser alguma coisa, nem que seja a última coisa que restar. Algo que vinga os mortos. Algo que grita por eles. Eles não estão mais vivos pra lamentar… Mas nós estamos! Então que sejamos o lamento deles, o eco final das suas vozes… o punho que a morte não conseguiu calar!
E então… silêncio.
Quem sabe se suas palavras chegaram a algum lugar?
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