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    — Gabriel? — o sussurro saiu como um soluço, enquanto caía quase de joelhos, a mão trêmula pousando sobre o peito do seu amado. Ainda sentia ali, fraco, o pulsar teimoso de um coração que se recusava a silenciar.

    Sua feição, tomada antes pelo desespero, tremulou entre o terror e o alívio. Um sopro de esperança em meio ao gosto amargo de sangue e cinzas.

    Era indescritível ver quem se ama assim, tão próximo do fim, mas ainda ali. E, por um instante, tudo pareceu se dissolver num vulto, uma sombra que se aproximava. Sentiu o toque suave de dedos em seu ombro.

    — Ehr… — virou-se, devagar. O rosto se contorceu de espanto.

    Era Jacir. Em frangalhos. Roupas rasgadas, pele marcada de hematomas, os dedos sujos, tremendo como galhos secos ao vento.

    Ainda assim, um sorriso torto lhe manchava o rosto.

    — Tá vivo… sério? — a voz escapou num riso contido, nervoso, que misturava alívio e uma pontada de insanidade.

    — Senhorita… — ele cambaleou, segurando-se no ombro dela como náufrago em tábua podre — Quase… esse caos todo… me devorou… assim como fez com eles…

    — Marcos… e James? Bons garotos… sofreram muito?

    Os nomes pairavam pesados entre eles, como fantasmas mal enterrados.

    E Jacir respirou fundo, como se puxasse toda a poeira do mundo para dentro dos pulmões, e soltou um sopro embargado.

    — Sim… mas… — seus olhos se reviraram, e então arregalaram num clarão de consciência — …mas eles foram ótimos guerreiros no fim. Fico tão… feliz por estar aqui… por ver que… que você está viva. E o senhor Gabriel…?

    Ela respirou fundo. Um tremor de raiva, de proteção, a fez erguer-se, firme como muralha.

    — …Está bem! — disse, embora a garganta ardesse — Melhor se preocupar com você, garoto… porque as coisas não vão ficar bem — engoliu em seco, olhando para o horizonte distorcido — Acho que o inferno… está em Crea!

    Diante deles, como um monólito, a árvore estava lá — suas raízes rompendo o solo, sugando tudo que fosse sonho, esperança ou fé.

    Em cada dobra do tronco, um pesadelo dormia. Os gritos sufocados de quem cedeu ao medo.

    E lá no topo, coroando aquela abominação, brotavam os medos, os anseios não ditos, fantasmagóricos, berrando ao mundo a canção do fim.

    Era um cortejo de espectros, a procissão de todos os fracassos humanos condensados. E, entre cada berro, uma pergunta latejava, sem resposta…

    …Quando foi que a semente foi plantada?

    Em tantas linhas temporais atrás…

    Há mais ciclos do que os que se contam — mais fins do que os que se lembram, mais renascimentos do que qualquer boca ousa dizer em voz alta.

    E ali estava Alum, condenado a vagar entre ruínas após sua tentativa de fratricídio.

    As terras vazias de Maladomus pareciam eternas. Um mar de areias negras, tão finas que se agarravam aos seus pés como cinzas de um pecado que nunca se apaga. O vento assobiava através das pedras e galhos secos e retorcidos, carregando sussurros de maldições, repetidas em coro por sombras sem nome.

    Sua manifestação imperfeita de sua onisciência.

    Seus cabelos brancos, outrora coroa ou sinal de sua natureza primordial, balançavam, grudando-se à pele, enquanto sua armadura, quebrada em placas que rangiam a cada passo, soltava faíscas corroídas.

    A mesma que fundiu nas lacunas do mundo.

    Quando as pernas finalmente fraquejaram, se ajoelhou. O peso de suas próprias lembranças, de suas ações antrópicas, de todas as traições que ecoariam futuramente entre irmãos e pai, não pesava mais do que sua rebeldia.

    Sua foice, cravada na areia, era o único suporte que o impedia de tombar por completo. O cabo negro, talhado em runas que carregavam a indignação da morte por ser reduzida a uma mera arma, parecia, pelas palavras entalhadas, zombar de sua fraqueza.

    — Maldito seja meu pai… — cuspiu-as como veneno, deixando-as cair na areia que engolia tudo — …e meus irmãos…

    A voz que antes carregava ordens e decretava mortes agora era apenas um sussurro rouco, quebrado pelo sal de lágrimas que nunca se permitia derramar.

    Sentia-se o mesmo de quando se ajoelhou diante do altíssimo — mas agora, não via mais em si aquela força capaz de rasgar o mundo material e desfazer os próprios irmãos fio por fio.

    Restava-lhe apenas o peso e uma possibilidade cravada na areia.

    Ele ergueu o rosto, encarando o céu rachado, tão vasto e sem cor que lembrava uma ferida aberta no vazio.

    De lá nasceu, e de lá foi abordado após sua fuga.

    — Malditos sejam todos! — gritou novamente, o eco se perdendo entre dunas e pilares partidos. Um brado inútil, pois naquele reino morto ninguém restava para ouvir.

    E, mesmo assim, as areias continuaram a se mover, escondendo segredos, engolindo as memórias de um deus caído que não conseguia mais distinguir onde acabava sua ira e começava seu arrependimento.

    Mas… a queda é só um novo começo. Se não há fim, não existe motivo para desistir.

    Bem… e foi isso que ele fez.

    Em sua mente, nada comum, o fracasso se converteu numa semente que repousava em sua palma, bebendo uma parte de seu fragmento, aquele que mantinha a dualidade das coisas ali… viva… pulsante… corrompida.

    — Você será…

    Suas mãos tremiam, erguendo a pequena forma até a altura de seus olhos.

    — …minha última esperança. Que toda a dualidade seja manchada, para que eu possa abrir uma fissura do Abismo até as terras dos homens!

    Foi como um selo, uma sentença gravada na tela do mundo. Sua força, trancada sem pensar duas vezes — pois, para encontrar sua outra parte, o sucesso, deveria abdicar de algo seu.

    Seu… sua… Nosso.

    Assim, dividiu sua essência.

    E o que antes era inteiro, espalhou-se pelas lacunas do mundo, infiltrando-se na carne de tudo que viria a nascer corrompido.

    Mais tarde, essa veio a compor cada alma demoníaca, a dádiva do abismo, uma faísca de si plantada em cada servo. E, ao fim de cada existência, quando um deles caísse, retornaria a ele… trazendo poderes, possibilidades, força.

    De um único, fez um exército e de cada queda, beberia uma gota de poder.

    Assim, pouco a pouco, erguia o que precisava para o que viria.

    Então, tudo convergiu para o fim. Por um único motivo…

    Alum deveria voltar e reger este mundo com sua força plena, total, imaculada.

    Para isso, precisava de cada fragmento, cada sopro de corrupção, cada vestígio de medo e desejo arrancado do ventre dos homens.

    A árvore nasceu, o fruto brota e dele comerá o digno.

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