Capítulo 329 - Amém
— Então é isso…
De Yokohama, Seiji sorria satisfeito ao ver a árvore rasgar o céu como uma lança, crescendo até engolir nuvens.
Galhos torciam-se como veias, derramando uma seiva negra que parecia contaminar o próprio ar.
Esta… era uma das pragas que espalhava. Uma semente pútrida, capaz de vestir a pele dos mortos, roubar-lhes o nome e pisotear a memória que restava deles. Um espectro que devorava o que ainda palpitava de vida — deixando para trás só cascas vazias e lembranças.
— O firmamento está sendo rasgado… como uma virgem… — Respirou fundo, arfando como um animal em cio — Eu sinto o cheiro da virgindade sendo tirada… é… tão saboroso!
De seus lábios grossos escorria uma baba espessa, misturada com o hálito acre de quem se embriagava no próprio delírio.
Seus olhos, vidrados, refletiam o clarão púrpura que a árvore emanava. Cada pulsar era um orgasmo podre em sua mente, a consumação de anos de planos e traições.
O prazer de um servo das trevas não era carnal — era o gozo abissal de corromper tudo que ainda respirava pureza.
Atrás dele, Javier observava com as mãos nos bolsos, a cabeça levemente inclinada. Seu sorriso era um corte torto, tão frio quanto a lâmina que carregava embaixo de seu peito.
— Seu velho nojento! — disse, cuspindo cada sílaba como se fosse veneno. Um meio sorriso se formou em seu rosto, mas seus olhos, vazios de remorso, eram os de um predador entediado — Quer mesmo fazer isso?
O velho virou-se, passando o dorso da mão na boca para limpar o fio de baba. Seus dentes amarelados surgiram num sorriso demente.
— Quero… Não há porque manter possíveis traidores por perto. Eles não entenderiam… Eles jamais entenderiam o que é ver o mundo sangrar pelo buraco que abrimos!
Elenergueu uma sobrancelha, como quem brinca com a própria presa.
— Inclusive Hugo?
Respondido por uma risada sibilante, tossindo em seguida.
Pequenos coágulos escuros mancharam o lenço que tirou do bolso.
— Principalmente Hugo! — Seus olhos faiscando — Ele se acorrentou àquela garota… aos luxos humanos… ele não entenderia o quão próximos da paz nós estamos! Ele se agarrou à falsa moralidade… à esperança! Mas eu? Eu sou livre! Eu sou o arauto do novo solo fértil, regado com sangue!
O careca avançou um passo, pesado, chutando uma pedra que ricocheteou pelo piso rachado até parar aos pés do velho.
O meio sorriso em seu rosto se abriu num escárnio largo, dentes à mostra, como se fosse um cão prestes a morder a mão que o alimentava.
— Mas eu não sou nenhum nobre, Seiji. Não dou a mínima pra paz…
No fundo, sabia. Abria-se ali para o único que o aceitaria, como um filho.
Watanabe já criara tantos assim — psicóticos, assassinos, fanáticos. Monstros sem lugar no mundo, que encontravam abrigo embaixo de suas asas.
O velho riu.
— Não… mas a paz… a paz é o fim que você tanto almeja, Javier — Ele estendeu a mão, trêmula, mas firme na convicção — Subjetivo? Sim… mas é intrínseco! Nós estamos do mesmo lado! O lado que renega tudo… tudo que apodrece sob a luz mentirosa!
O vento trouxe o fedor da árvore que se erguia. Javier inspirou fundo, deixando que o cheiro de podridão queimasse suas narinas.
— Que seja, velho… — Murmurou, a voz arrastada, como se saboreasse cada sílaba.
— Fará?
O brilho assassino em seus olhos parecia cintilar.
— E acha que não? — Como se não fosse óbvio — Matar uns idiotas? Por favor… não é nada mais! — Lambeu os lábios, tique de predador — Na verdade… — deu de ombros, puxando o ar como quem respira fumaça de vísceras queimadas — É até divertido!
— E eu sou o nojento?
Ergueu o olhar, agora sério, com um toque de ironia venenosa.
— É… enfim, Myazaki me ajudará?
— Ajudará! Mas seja rápido… quanto mais demorar, mais fracos ficamos… o firmamento está rasgando… precisa ser agora!
— Serei — Virou-se de costas, puxando o casaco como se fosse capa de carrasco — Aproveite o cheiro, velho… vou trazer mais cadáveres pra sua festa!
— Amém…
Assim, em falsa fé, selaram o pacto silencioso de sangue. Não havia santos — apenas blasfêmia vestida de devoção. E Javier partiu, os passos ecoando como sinos de uma missa, rumo a mais um de tantos massacres.
Oh, vida…
Por que tanta escuridão levaste teus filhos?
Por que deixaste que abraçassem o abismo como se fosse colo?
Onde está a paz que deveria repousar sobre tanta amargura?
Mas ali não havia respostas. Só a sombra que crescia, alimentada por orações vazias e sorrisos manchados de sangue.
E… mancha.
Era o que mais havia colado à reputação, ao coração e à determinação daquele que um dia fora imperador.
Manchas que não saíam nem com guerra, tempo ou lágrimas.
Sentava-se na varanda de piso em barro cru, onde o vento soprava morno e indiferente. Encarava a maldita — a árvore, o céu, o fardo, o mundo — como se fosse nada.
Nada demais.
— A senhora é religiosa? — perguntou de repente, com a voz rouca, como quem cutuca feridas.
A mulher não respondeu de imediato.
A seus pés, a criança brincava, alheia à escuridão que se estendia como uma praga no horizonte.
E assim sempre fazia — brincava como se o mundo não estivesse desmoronando à sua volta.
— Não — respondeu por fim, sem olhar para ele — Não o suficiente para temer isso.
Ele sorriu de canto, amargo.
— Então vê como eu vejo? Cinza?
— Sim… — Assentiu devagar, quase num sussurro — Na verdade… o senhor agora vê o sofrimento cobrindo seus olhos.
Fez uma pausa, o olhar preso no firmamento, outrora, vagando em seus pensamentos, sempre esteve assim?
— E, meu bom senhor… não há nada que o sofrimento não mascare. Nem mesmo mais sofrimento!
— É… tô começando a perceber isso… — murmurou, a mão pousando no próprio ombro, como se tentasse segurar o peso que sempre escorregava — Mas acho que ainda não mereço dizer que entendo você…
A mulher desviou o olhar para ele, olhos calmos, mas cheios de algo antigo.
— Por quê? Acha que sofrimento tem tamanho?
— E não tem?
— Trava no peito, às vezes?
— Sim…
— Aquele vazio que parece que vai te engolir?
— Sim…
— E você olha pro amanhã e ele parece… sem forma? Sem cor?
— Sim…
Ela sorriu — não de alegria, mas de compreensão. Daquele tipo que só quem já afundou sabe oferecer.
— Então somos iguais.
Fez-se silêncio por um instante.
— Somos…
— Pronto! Não dê pesos aos sentimentos. Sinta-os. Valorize-os…
Independente dos valores que os outros dão a eles.
Não respondeu de imediato.
Apenas respirou fundo e, pela primeira vez em muito tempo, o ar entrou inteiro.
— Certo…
— E quando você entender o que digo… o cinza vai sumir. Não que vá se sentir feliz…não exatamente. Mas vai enxergar… uma esperança. Pequena, talvez, mas viva… Em algum lugar.
— Se você diz… Eu… acredito.
Ainda era escuro… mas não totalmente.
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