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    — Então é isso…

    De Yokohama, Seiji sorria satisfeito ao ver a árvore rasgar o céu como uma lança, crescendo até engolir nuvens.

    Galhos torciam-se como veias, derramando uma seiva negra que parecia contaminar o próprio ar.

    Esta… era uma das pragas que espalhava. Uma semente pútrida, capaz de vestir a pele dos mortos, roubar-lhes o nome e pisotear a memória que restava deles. Um espectro que devorava o que ainda palpitava de vida — deixando para trás só cascas vazias e lembranças.

    — O firmamento está sendo rasgado… como uma virgem… — Respirou fundo, arfando como um animal em cio — Eu sinto o cheiro da virgindade sendo tirada… é… tão saboroso!

    De seus lábios grossos escorria uma baba espessa, misturada com o hálito acre de quem se embriagava no próprio delírio.

    Seus olhos, vidrados, refletiam o clarão púrpura que a árvore emanava. Cada pulsar era um orgasmo podre em sua mente, a consumação de anos de planos e traições.

    O prazer de um servo das trevas não era carnal — era o gozo abissal de corromper tudo que ainda respirava pureza.

    Atrás dele, Javier observava com as mãos nos bolsos, a cabeça levemente inclinada. Seu sorriso era um corte torto, tão frio quanto a lâmina que carregava embaixo de seu peito.

    — Seu velho nojento! — disse, cuspindo cada sílaba como se fosse veneno. Um meio sorriso se formou em seu rosto, mas seus olhos, vazios de remorso, eram os de um predador entediado — Quer mesmo fazer isso?

    O velho virou-se, passando o dorso da mão na boca para limpar o fio de baba. Seus dentes amarelados surgiram num sorriso demente.

    — Quero… Não há porque manter possíveis traidores por perto. Eles não entenderiam… Eles jamais entenderiam o que é ver o mundo sangrar pelo buraco que abrimos!

    Elenergueu uma sobrancelha, como quem brinca com a própria presa.

    — Inclusive Hugo?

    Respondido por uma risada sibilante, tossindo em seguida.

    Pequenos coágulos escuros mancharam o lenço que tirou do bolso.

    — Principalmente Hugo! — Seus olhos faiscando — Ele se acorrentou àquela garota… aos luxos humanos… ele não entenderia o quão próximos da paz nós estamos! Ele se agarrou à falsa moralidade… à esperança! Mas eu? Eu sou livre! Eu sou o arauto do novo solo fértil, regado com sangue!

    O careca avançou um passo, pesado, chutando uma pedra que ricocheteou pelo piso rachado até parar aos pés do velho.

    O meio sorriso em seu rosto se abriu num escárnio largo, dentes à mostra, como se fosse um cão prestes a morder a mão que o alimentava.

    — Mas eu não sou nenhum nobre, Seiji. Não dou a mínima pra paz…

    No fundo, sabia. Abria-se ali para o único que o aceitaria, como um filho.

    Watanabe já criara tantos assim — psicóticos, assassinos, fanáticos. Monstros sem lugar no mundo, que encontravam abrigo embaixo de suas asas.

    O velho riu.

    — Não… mas a paz… a paz é o fim que você tanto almeja, Javier — Ele estendeu a mão, trêmula, mas firme na convicção — Subjetivo? Sim… mas é intrínseco! Nós estamos do mesmo lado! O lado que renega tudo… tudo que apodrece sob a luz mentirosa!

    O vento trouxe o fedor da árvore que se erguia. Javier inspirou fundo, deixando que o cheiro de podridão queimasse suas narinas.

    — Que seja, velho… — Murmurou, a voz arrastada, como se saboreasse cada sílaba.

    — Fará?

    O brilho assassino em seus olhos parecia cintilar.

    — E acha que não? — Como se não fosse óbvio — Matar uns idiotas? Por favor… não é nada mais! — Lambeu os lábios, tique de predador — Na verdade… — deu de ombros, puxando o ar como quem respira fumaça de vísceras queimadas — É até divertido!

    — E eu sou o nojento?

    Ergueu o olhar, agora sério, com um toque de ironia venenosa.

    — É… enfim, Myazaki me ajudará?

    — Ajudará! Mas seja rápido… quanto mais demorar, mais fracos ficamos… o firmamento está rasgando… precisa ser agora!

    — Serei — Virou-se de costas, puxando o casaco como se fosse capa de carrasco — Aproveite o cheiro, velho… vou trazer mais cadáveres pra sua festa!

    — Amém…

    Assim, em falsa fé, selaram o pacto silencioso de sangue. Não havia santos — apenas blasfêmia vestida de devoção. E Javier partiu, os passos ecoando como sinos de uma missa, rumo a mais um de tantos massacres.

    Oh, vida…

    Por que tanta escuridão levaste teus filhos?

    Por que deixaste que abraçassem o abismo como se fosse colo?

    Onde está a paz que deveria repousar sobre tanta amargura?

    Mas ali não havia respostas. Só a sombra que crescia, alimentada por orações vazias e sorrisos manchados de sangue.

    E… mancha.

    Era o que mais havia colado à reputação, ao coração e à determinação daquele que um dia fora imperador.

    Manchas que não saíam nem com guerra, tempo ou lágrimas.

    Sentava-se na varanda de piso em barro cru, onde o vento soprava morno e indiferente. Encarava a maldita — a árvore, o céu, o fardo, o mundo — como se fosse nada.

    Nada demais.

    — A senhora é religiosa? — perguntou de repente, com a voz rouca, como quem cutuca feridas.

    A mulher não respondeu de imediato.

    A seus pés, a criança brincava, alheia à escuridão que se estendia como uma praga no horizonte.

    E assim sempre fazia — brincava como se o mundo não estivesse desmoronando à sua volta.

    — Não — respondeu por fim, sem olhar para ele — Não o suficiente para temer isso.

    Ele sorriu de canto, amargo.

    — Então vê como eu vejo? Cinza?

    — Sim… — Assentiu devagar, quase num sussurro — Na verdade… o senhor agora vê o sofrimento cobrindo seus olhos.

    Fez uma pausa, o olhar preso no firmamento, outrora, vagando em seus pensamentos, sempre esteve assim?

    — E, meu bom senhor… não há nada que o sofrimento não mascare. Nem mesmo mais sofrimento!

    — É… tô começando a perceber isso… — murmurou, a mão pousando no próprio ombro, como se tentasse segurar o peso que sempre escorregava — Mas acho que ainda não mereço dizer que entendo você…

    A mulher desviou o olhar para ele, olhos calmos, mas cheios de algo antigo.

    — Por quê? Acha que sofrimento tem tamanho?

    — E não tem?

    — Trava no peito, às vezes?

    — Sim…

    — Aquele vazio que parece que vai te engolir?

    — Sim…

    — E você olha pro amanhã e ele parece… sem forma? Sem cor?

    — Sim…

    Ela sorriu — não de alegria, mas de compreensão. Daquele tipo que só quem já afundou sabe oferecer.

    — Então somos iguais.

    Fez-se silêncio por um instante.

    — Somos…

    — Pronto! Não dê pesos aos sentimentos. Sinta-os. Valorize-os…

    Independente dos valores que os outros dão a eles.

    Não respondeu de imediato.

    Apenas respirou fundo e, pela primeira vez em muito tempo, o ar entrou inteiro.

    — Certo…

    — E quando você entender o que digo… o cinza vai sumir. Não que vá se sentir feliz…não exatamente. Mas vai enxergar… uma esperança. Pequena, talvez, mas viva… Em algum lugar.

    — Se você diz… Eu… acredito.

    Ainda era escuro… mas não totalmente.

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