Capítulo 330 - Pessimismo
Abrindo a porta…
Shirasaki precisou de um segundo para se acostumar com a penumbra do quarto. O cheiro de mofo misturado com sangue seco e ervas curativas impregnava o ar. O ranger das dobradiças quebrou o silêncio, e, enfim, ele a viu.
Lilyan estava sentada sobre um velho colchão estendido no chão, os joelhos dobrados junto ao peito. Seu vestido — que outrora cintilava em tons de laranja e dourado — agora parecia uma lembrança esfumaçada de cores passadas. Desbotado, amarrotado, encharcado por suor e lágrimas. O rosto, pálido; os olhos, opacos como o céu antes da tormenta.
— Amai não veio? — perguntou a ele, hesitante.
Que ergueu os olhos devagar, como se cada movimento pesasse toneladas.
— Não… está em combate.
— Ah… — Suspirou, e naquele sopro havia um cansaço que não era apenas físico.
Os lábios estavam rachados, e em seu ombro esquerdo espalhava-se uma mancha negra. A Síndrome da Escuridão, que corrompia a alma antes do corpo.
— Não acabou?
— Não… e não acabará tão cedo — Shirasaki se aproximou, ajoelhando-se diante dela, as mãos envolvendo as dela, trêmulas e frias — Creio que… será o derradeiro último combate.
— Acha que ela virá?
Seus olhos se fecharam, com um suspiro trêmulo.
Sentia um calor esquecido.
Um carinho que há muito tempo não tocava sua pele, sua alma.
A vida havia lhe negado ternura…
Somente a morte, irônica, lhe oferecera boas companhias.
Ela se isolou.
Não por força, mas por fuga.
Covarde, era assim que se nomeava, em segredo.
Covarde por se afastar do mundo, por se esconder nos cantos escuros da casa, por temer o peso do falar… e mais ainda, o peso de encarar.
— Acho… só está cheia… — Desviou o olhar por um instante, buscando palavras que não a machucasse — Ela está carregando um peso nas costas maior do que uma jovem da idade dela deveria suportar…
Lilyan forçou um sorriso, pequeno, mas firme.
— Ela é forte! — E em seguida mordeu os lábios, a emoção prendendo sua garganta — Sua personalidade… se reflete em cada decisão e sentimento!
— Ela é… puxou o velho.
Tentou suavizar com um sorriso.
— Puxou. — Riu, fraco, com ternura — É nossa maldição… odiamos tanto seu pai, que nossa filha pegou o melhor dele… ou seria…
— Nunca é o pior! — Interrompeu, firme.
— É… nunca é — Repetiu, encostando a testa na dele.
E por um instante, no meio da guerra, da doença, da dor — houve apenas o silêncio entre dois sobreviventes.
Amantes. Pais. Cúmplices.
Dois corpos marcados pelo tempo, pela luta, pelas perdas… mas que, um no outro, ainda encontravam abrigo.
Um beijo selou o reencontro — não apressado, impetuoso, mas carregado de ausência.
A ausência dos dias, das palavras não ditas, dos toques guardados como relíquias.
As mãos de Shirasaki, firmes e calejadas por guerras e lutos,
deslizaram pela cintura fina de Lilyan.
Ele a puxou com cuidado, quase em reverência, deitando-a sobre o colchão gasto que agora parecia um altar.
Foi úmido, quente e reconfortante.
Como se o tempo, por misericórdia, suspendesse a realidade.
— Lilyan… — murmurou contra seus lábios, enquanto a despia com o tato de quem toca o que é sagrado,
os corpos febris se encaixando, procurando calor onde o mundo só dava frio — Me faça esquecer de tudo…
Ela o olhou como quem encara um espelho, não o reflexo exterior, mas aquele que revela a alma.
Seus olhos, marejados e vivos, carregavam o peso de tantas versões dele que já tinham morrido… e mesmo assim, ainda o amavam.
Então, com a voz embargada, mas firme, disse seu primeiro nome, que quase ninguém mais ousava pronunciar.
Como se, ao fazê-lo, chamasse de volta o homem que existia antes da guerra, antes das perdas, antes de tudo desmoronar.
— Rimuru… — sussurrou novamente,
como quem reza uma última prece. E então se entregou por completo.
Não apenas o corpo, mas o cansaço acumulado nas dobras da alma, o medo que morava entre seus ossos, e até mesmo a saudade que queimava em silêncio.
Cada toque era confissão. Um pedido de cura.
Enquanto os corpos se chocavam no quarto ao longe, um som abafado e ritmado, vida tentando sobreviver no meio da guerra.
Mahmoud ouvia outro som… o irritante e persistente eco da morte, zombando dele entre o assovio do vento e o tilintar distante de metal contra metal.
— Vamos, homem…
— Me deixa, Matteo… — suspirou, os ombros curvados, o rosto coberto de fuligem.
Sentado sobre um bloco de concreto quebrado, encarava a névoa cinza que engolia o horizonte.
— Você não deveria estar bolando um jeito de destruir aquela bosta ?
— Ah, eu tentei! — respondeu com um sorriso torto, dando de ombros.
Fez um gesto vago com a cabeça, apontando para a figura ao longe.
Amai estava ali, imóvel, encarando a vastidão adiante como quem decifrava um enigma.
— Melhor deixar pra ruivinha… — murmurou, passando a mão pelos cabelos desgrenhados — Ela é forte. Muito mais que eu.
A risada morreu rápido.
Matteo sabia que havia verdade ali.
Mais do que gostaria de admitir.
— Aliás… — Matteo estreitou os olhos, franzindo o cenho — Tá sentindo agora?
O rapaz ergueu lentamente o olhar, como se algo nele já soubesse.
— Várias auras dispersas?
— Isso, isso! — Mordeu o lábio inferior, inquieto, os dedos tamborilando na lateral da coxa — Alguma coisa mudou… o aglomerado de trevas… se foi!
— Não se foi… Só… se espalhou. Como se tivesse explodido em fragmentos.
— Como?
— É como se o coração da coisa tivesse morrido… e o resto, tentasse sobreviver por conta própria!
O chão parecia mais leve. O ar, menos opressor. Mas o silêncio…
O silêncio agora pesava diferente.
Como se algo grande estivesse apenas recuando. Ou esperando.
— Então acha que isso é o fim?
— Não. É o prelúdio!
— Merda… — resmungou, enfiando as mãos nos bolsos como quem tenta esconder o próprio desespero. Desceu a pequena inclinação de terra com passos rápidos, quase tropeçando nos próprios pensamentos — Nosso espírito tá no chão. Shirasaki sumiu… o garoto, aquele… também desapareceu.
Parou por um instante, olhando para o céu turvo e sem luz.
— Uma das nossas peças-chave se foi.
Acho que… acho que vamos perder — riu, mas não havia alegria, apenas um escárnio cansado — Hehe… Que irônico, não?
— O que é irônico?
— Eu estar… tão pessimista.
— Ah, é! — Estalou os dedos no ar — Esqueci que estava falando com o senhor alto astral!
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