Capítulo 331- Espelho
Sabia que a morte está a um passo?
Sim?
Então você é paranoico.
Não?
Então você é um tolo.
Pois bastou um passo — e Javier cruzou as portas daquele salão.
Seu casaco negro arrastava-se, silenciando o ranger das dobradiças. O som de suas botas ecoava como sinos fúnebres em um templo devastado.
O sorriso — frio, clínico, quase zombeteiro — cortava o ar como uma lâmina embebida em cinismo.
Vestido de morte, mas fantasiado de salvador.
Como todos os que ousavam vestir o negro.
— Myazaki está presente?
Sua voz reverberou como um trovão em câmara.
Olhos vacilantes se entreolharam. Alguns sequer tinham coragem de respirar.
Outros ainda sentiam o sangue secando nos dedos, como se jamais pudessem limpá-lo.
Um jovem, cabelos cacheados grudados à testa de suor e pânico, apertava os punhos de forma involuntária.
As correntes de vento que lhe obedeciam explodiram contra a parede esmagando tantos inocentes.
Tinha olhos opacos — o tipo de olhar de quem não sabe se matou um inimigo ou um eco inocente.
Não muito longe, uma exorcista de cabelo rosa, agora desbotado pela noite insone tremia os joelhos como se a própria alma suplicasse por trégua.
Seu corpo balbuciava “perdão” como se a palavra tivesse vida e quisesse fugir dela.
Nos olhos, um reflexo distorcido da cena que não a deixava…
Uma criança.
Uma explosão de pressão.
Um pequeno corpo, perfurado.
A água — sua água — tingida de carmim.
— N-não, senhor… — respondeu um rapaz franzino, vestes surradas pelo tempo e pela pressa.
A voz, embora trêmula, carregava algo raro ali, esperança.
Mas ela vacilou ao fim da frase.
— Ehr… aquela árvore lá fora…? — seus olhos brilharam com o pavor de quem viu o inexplicável — há algo… há um aglomerado de trevas em torno dela… É como se… se a própria árvore tivesse enraizado no abismo.
— Por que é… — Javier ergueu uma das sobrancelhas, o tom entediado — parece ter surgido do mundo imaterial. Uma ponte praticamente…
Bocejou.
Um gesto real ou zombeteiro, ninguém soube ao certo.
— Isso assusta vocês?
O silêncio que se seguiu não foi falta de resposta — foi sufocamento.
Os olhos, antes fixos nele, se dispersaram. Como se o chão fosse mais seguro que sua presença.
Como se encará-lo por mais um segundo pudesse convocar a própria sentença de suas vidas ou culpa.
— É assustador… — repetiu, quase uma confissão — Como se… algo estivesse observando de dentro da árvore. Algo que… respira. Mas não tem forma. O-o que f-faremos, senhor?
Javier passou os dedos pela gola do casaco, arrumando um vinco imaginário. Seus olhos semicerrados pareciam medir o peso daquela pergunta… ou da ingenuidade por trás dela.
— Fazer?
Ele então caminhou alguns passos até o centro da sala.
O chão parecia estremecer com seu andar, mas era apenas o medo condensado nos ossos de quem o observava.
— Se for mesmo o que eu penso… — A voz mais baixa — …então essa ponte não surgiu. Ela foi chamada. E se foi chamada… é porque algo em nós a atraiu.
Fez-se um silêncio que doía.
— Então, meu jovem… o que em você está clamando por aquilo?Seria a culpa por ser um assassino? Ou seria a de vocês todos? Por que temem o mal que causaram? A árvore só chegou porque algo dentro de vocês a chamou.
— M-mal…? — o rapaz engoliu em seco, a voz falhando como um fio prestes a se romper — Não era… tudo pelo bem?
— Pelo bem, senhor! — interveio outro, com olhos abertos demais para serem sinceros — Seguimos os ideais do mestre Seiji! Tudo… tudo por um novo amanhã! Por um mundo sem o mal!
— Oh… o amanhã… Um amanhã que exige cadáveres no hoje, não é?
Caminhou entre os exorcistas como quem desfila em meio a lápides.
Parou no centro do salão, onde o som de sua própria respiração parecia ecoar mais do que deveria.
— Se tudo foi pelo bem… Se tudo foi tão nobre… Por que tanto medo agora?
Seu tom aumentou sem gritar.
Era um prazer venenoso, quase sensual.
Um prazer por expor a hipocrisia de suas vítimas.
— Mortes, mortes, mortes… — repetiu, como se saboreasse a palavra, sua comida favorita — Vocês dizem ter matado por justiça… mas essa árvore, só olha. E ainda assim, os incomoda mais que pessoas gritando por suas vidas, não é?
Ninguém entendia o lugar que ele estava ocupando. Não mais um deles.
Mas tampouco estava claramente do outro lado. Pairava — entre o acusador e o carrasco, entre o espelho e o abismo.
— Por acaso… se arrependeu? — a voz cortou o ar como um estalo. Uma garota de cabelos curtos e olhos cortantes avançou um passo, os punhos trêmulos de raiva — É um traidor agora?
A palavra ecoou.
E de repente, todos os olhares buscaram abrigo em algo que pudessem atacar.
Melhor odiar do que duvidar.
Melhor transformar a inquietação em algo externo.
Havia tensão nos pulsos dos que ainda sustentavam firmeza, como se procurassem nela um motivo — ou uma desculpa — para agir.
Alguns já haviam o condenado em silêncio. Outros apenas esperavam um gesto para segui-lo como feras em matilha.
Mas Javier… não os olhou.
Não respondeu.
Não precisou.
— Então digam-me… — se virou lentamente, os olhos em brasa sob o peso do salão, ignorando a acusação como se ela não fosse digna sequer de ser refutada — Ela é o monstro? Ou vocês é que são?
Seus olhos passearam por cada um deles.
Alguns abaixaram o olhar.
Outros cerraram os punhos.
Mas nenhum ousou responder.
— A árvore é só um reflexo. Um espelho. E o que está lá dentro… é o que vocês se recusam a ver em si mesmos. Ela não é o elefante na sala. Vocês são!
Limite.
Era ali que havia chegado.
Mais do que um lugar, era um estado. Sua boca estava seca, os lábios rachados como terra em estiagem. O estômago roncava.
Engoliu seco. A saliva, escassa, parecia feita de poeira.
Não vou te esperar, pirralho…
A frase estalou em sua mente como um tapa. Não dita, mas impressa. Como um carimbo quente no centro do pensamento.
E então… algo nele cedeu.
— Enfim… que seja! — a voz saiu firme, mas trincada como vidro sob pressão. Soltou os braços com um movimento suave — lento o bastante para parecer um gesto de rendição.
Mas os dedos…
Ah, os dedos se entrelaçaram, quase imperceptível.
Ninguém notou
O mundo pareceu inspirar.
— Expansio Energiae… — começou a declamar, a voz adquirindo ressonância — Sepulcrum, Vates Omniscientis!
E após aquele instante, mais destinos haviam sido selados.
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