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    Tudo ali morreu… menos ela.

    As chamas devoravam ossos e pele ao redor, transformando os cadáveres em tochas.

    O ar cheirava a ferro queimado e gordura humana.

    E, ainda assim, permanecia — um espectro de carne viva, pele descascando em lâminas vermelhas, o olhar calmo como se fosse intocável.

    As brasas não poderiam tocar quem nunca esteve ali…

    Porque há existências que apenas atravessam — sem jamais se fixarem.

    Lembra-se. Não há ofensa que alcance os ouvidos de um bem-aventurado que caminha entre a tênue linha entre o ser… e o sismo.

    — Então… — saiu firme, rasgando o ar como um riso contido, zombando da própria dor como quem a tivesse domesticado. O sangue escorria, mas ela falava como se fosse vinho — Essa é a linha…? Que separa um feitiço divino… de uma mera expansão? — inclinou a cabeça, os olhos semicerrados, analisando o caos ao redor como quem julga uma obra mal feita — Que decepção… esperava mais daquilo que chamam de milagre.

    Até a própria morte hesitou.

    A foice ergueu-se, mas seu dono deu um passo para trás, como se a realidade tivesse falhado em compreender o que via.

    Que demora…

    Pensou Javier, os dentes trincando enquanto o sangue escorria em poças quentes ao redor do corpo.

    Cada segundo se alongava como uma piada ruim.

    Ele sabia… enquanto aquilo não acabasse, enquanto a presença dela ainda vivesse, não poderia se curar.

    Estava preso entre o golpe e o alívio.

    Agonizando.

    Silencioso.

    Invisível para a misericórdia.

    Bem feito!

    Que morresse ali mesmo.

    Sem glória, sem redenção — apenas mais um esquecido enquanto a luta de fantoches continuava.

    Movimentos coreografados entre feras que já haviam perdido a alma.

    — Você… está com medo? — ela ousou perguntar a sua essência assassina encarnada em sua técnica final.

    A morte hesitou. Mas só por um instante.

    Tentou flanqueá-la, deslizando como uma sombra faminta, uma ausência que roçava o mundo em busca de fissuras para se infiltrar.

    Mas tudo o que encontrou foi vidro.

    Fragmentos suspensos no ar.

    Reflexos.

    Ecos.

    Armadilhas de si mesma.

    Cada fragmento devolvia um olhar diferente: raiva, prazer, piedade, loucura.

    E ele… Quase disse algo.

    O ser recuou, confuso, e nesse instante a voz dela retumbou.

    — Não! Não é assim que se luta! — sua figura surgiu repentinamente, intacta, sentada no alto da muralha cristalina que delimitava seu próprio domínio. O fogo não alcançava. O cabelo, ainda úmido de sangue, balançava como se houvesse vento apenas para ela — Sabe que não me vencerá. Não sabe? — seu olhar desceu lentamente até a parede que os separava.

    Então, sem aviso, sua cabeça foi atravessada.

    Um único golpe: seco, absoluto.

    O crânio partido ao meio, enchendo a lâmina com sangue quente e miolos escorrendo, pintando a própria morte com a cor da vergonha.

    — Hehehe…

    Mas o domínio não caiu.

    Acabou…

    Pensou, aliviado, finalmente soltando o fôlego preso na garganta desde sempre.

    Mas era só ilusão de sua mente ansiosa.

    O silêncio que seguiu não trouxe paz alguma — trouxe o som abafado do próprio coração, batendo rápido demais, como se quisesse escapar do peito.

    A foice ainda pingava sangue.

    O chão ainda estava coberto de cinzas.

    E então, ao erguer os olhos, ela ainda estava lá.

    De pé, intacta, como se nada tivesse acontecido. A pele antes dilacerada agora era lisa, os olhos, dois abismos que não refletiam luz alguma.

    E não caminhou até ele — estava simplesmente ali, onde não deveria estar.

    — Esperava o fim, não? — Soou doce, mas carregada de veneno — Que pena… ainda estamos só no começo.

    — C-como?

    — Eu… não te expliquei? — Arranhou-lhe o ouvido. Nunca estivera de fato do outro lado. Sempre fora apenas um reflexo e agora, dentro desse domínio, ela e os espelhos eram um só — Lá fora… você tocou só uma sombra minha. Aqui dentro, cada vidro é parte de mim!

    O olhar do ceifador tremeu.

    — Vadia…

    — Prefiro puta! — Sua mão atravessou o peito dele com facilidade obscena, como se carne e osso não fossem nada além de véus frágeis de tecidos baratos — Você desperdiçou seu feitiço final por nada! — seu rosto se aproximou, os dentes manchados de sangue mostrando-se num sorriso quase infantil — Sabia disso? Você é um burro… burro!

    E em um ato… retirou a mão, como se fosse nada mais que um pedaço de barro que a sujava.

    Tudo se pôs fim.

    O silêncio, pesado, parecia zombar.

    Merda… sério que essa vadia me matou?

    A mente gritava, mas os lábios já não se moviam. O orgulho, teimoso, forçava-o a sorrir por dentro.

    Ehr… eu estava tão bem…

    Enquanto caía, o corpo entregue ao chão, restava apenas Myazaki em pé, imóvel, com um sorriso irônico cortando-lhe o rosto.

    Os domínios foram findados.

    — Você é o próximo!?

    Ao redor, cadáveres ainda — carbonizados, contorcidos, enfileirados como gargalhadas mal contidas pela realidade.

    Ela se virou devagar, olhos afiados como disparos de fuzis, reluzindo com o reflexo de tudo o que se foi.

    A rainha carmesim e o anticristo se encararam.

    Dois demônios disfarçados de gente.

    Dois deuses pequenos demais para caber no próprio orgulho.

    E o sorriso dela…

    — Já ouviu a piada de três psicopatas entrando num bar?

    …Era de quem já sabia a piada antes do final.

    O silêncio os cercou.

    Ela ergueu o queixo, triunfante, insuportavelmente viva.

    — Um morreu… outro traiu…

    — E o terceiro?

    Ele sorriu mais.

    — O terceiro ainda não entendeu que a piada… é ele!

    — Idiota!

    Foi então que algo mudou.

    O ar tremeu. Um estalo imperceptível — como a realidade prendendo o fôlego.

    E então, linhas invisíveis caíram do além.

    Finas, quase etéreas.

    Como fios de marionete abandonados por um deus entediado.

    Surgiram do nada e, enroscaram-se em torno do pescoço dela.

    Que não pareceu surpresa.

    Nem assustada.

    Apenas… irritada. Como quem esperava mais de um velho conhecido que insiste em repetir os mesmos erros.

    — Você poderia ser mais criativo! — cuspiu, com o olhar de quem já tinha matado mil vezes aquele tipo de truque e ainda achava enfadonho — Sério… fios de contenção? No meio do ato final?

    — Você acabou de frear sua liberação! — Myazaki ergueu a voz, a sombra de um riso amargo acompanhando cada sílaba — Mas te dou os parabéns. Ele era forte… até demais! O velho vai chorar pra caramba por ter perdido seu melhor carrasco.

    — É?

    Ergueu os olhos.

    — Eu te odeio, sabia?

    — É, também te amo… — mordeu os próprios lábios até sangrar, sem piscar — …Mas a gente já sabia que uma hora isso acabaria.

    — Mas? — provocou, o sorriso manchado de sangue.

    O olhar do assassino não vacilou.

    — Você sabe que é mais forte que eu. Está satisfeita? Sua compulsiva. Ninfomaníaca por batalhas!

    Virou-se, dando-lhe as costas.

    Incapaz de a encarar…

    Covarde.

    Odiava encarar suas próprias falhas — eram espelhos demais para suportar.

    Por isso, sempre andava em frente, como se o futuro fosse um véu capaz de esconder o passado.

    O que deixava para trás não era esquecimento, mas apenas reflexo do que um dia fora…

    A única coisa que se importou em sua miserável vida.

    — Leões se devoram, né?

    — Não sei… — Quebrando a tensão — Vocês devoram os outros!

    — Sabe… sentirei saudades! Sabia?

    E antes que as linhas a sufocassem, inclinou o rosto, os lábios rasgando um último sorrisinho lascivo.

    — Que você se foda muito, meu amor.

    Foi então que ele deu um passo.

    Apenas um.

    Simples. Silencioso. Mortal.

    E nesse instante, o fio brilhou como um adeus sem lágrimas.

    Cortou-lhe a cabeça sem hesitação — nem triunfo, nem raiva, apenas a frieza de quem já matou aquela dentro de si mil vezes.

    A cabeça rolou devagar, como se não quisesse cair.

    E por um momento, mesmo decapitada, ainda sorria.

    Deixou para trás a morte.

    Na forma mais nojenta.

    Mais injusta.

    Mais familiar.

    E naquele dia…

    Três psicopatas morreram.

    Um pelas mãos do outro.

    O segundo por dentro.

    E o terceiro… ainda não entendeu que a piada foi sempre sobre ele.

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