Capítulo 337 - O rei está em jogo
— Você parece tão assustado… — as mãos na cintura, o corpo projetado para frente em uma postura irreverente, sustentando aquele sorriso que mais parecia uma máscara rachada — Nem parece que é seu destino ser um cara foda…
— Destino? — suspirou, pesado como se cuspisse cinzas — Eu já sou! Mas… não é fácil lidar com alguém que está além da lógica!
— Além? Ah…
Ele quase a domava no papo, quase. Mas era evidente o quanto não passava de ilusão, pois logo um bando de corvos desabou do céu, em revoada insana, se atirando contra ela.
Sua técnica expansiva, a manipulação horrífica, não parecia uma habilidade controlada, mas um reflexo.
Um gesto impensado.
Um transbordar inevitável de sua essência.
Era como se a própria realidade, ao roçar, fosse rejeitada.
Tudo o que ousava tocar sofria dano, esmagado, retorcido, reduzido a pó…
Mas contra a parede de cristais que se expandia, nada acontecia.
Até o choque dissipava-se, sem efeito.
Era como se aquela manipulação horrífica tivesse fome, mas fosse uma fome seletiva.
Não se nutria de técnicas ou ataques vazios; precisava de coisas vivas.
De carne, de mente, de consciência.
Não era um poder cego, mas instintivo… como um predador que ignora o vento, mas dilacera qualquer coração que pulse diante dele.
Um instante de fúria, mas todos os anseios foram esmagados como insetos contra os cristais que se erguiam, fiéis, ao redor do corpo dela — a muralha viva que se recusava a deixar qualquer coisa tocar-lhe a pele.
— Você estava me distraindo…
— Como sua técnica se manifesta assim? — Apertou os dentes — Não era para ter um domínio? — E puxou aqueles fios invisíveis que pareciam brotar das costas dela e se entranharam até o abdômen, rasgando a carne de dentro para fora — Eu sinto sua energia expandida… ela não tem limite!
Mas até esse movimento era anulado.
Os fios, que puxava com desespero, não resistiam… eram cortados no ar como as alças frágeis de um sutiã, rompendo-se num estalo seco, quase humilhante.
Não havia glória nem esforço, apenas a simplicidade desconcertante de vê-los desfazerem-se como tecido barato diante da lâmina invisível que a cercava.
— Talvez eu a tenha modificado — havia uma estranha alegria sombria em sua confissão — Assim que entrei em um relapso. Quando minha cabeça foi cortada, eu tive que regenerar neurônio por neurônio. Pense no quão insano é: cada sinapse refeita à unha do nada! Eu sou só um fragmento do que sou!
O golpe acertou-lhe o rosto, atestando sua ruína mental — grotesco, como um palhaço de circo em plena decadência.
Mas até o próprio punho perdeu o peso ao tocar a pele…
Ah… estaria, então, sob minha pele?
E, ao abrir os braços, milhões de fragmentos cristalinos se desprenderam, a morte súbita de uma estrela, varrendo o espaço num brilho que dissolvia tudo ao redor.
— Você não aguenta…
Naquele instante, bilhões de estrelas foram apagadas.
A luz se recolheu como se tivesse respirado pela última vez, e sua supernova explodiu, trazendo àquele espaço um novo ar… denso, incandescente, sufocante.
Tudo parecia condenado a se despedaçar nos fragmentos que liberava, como se o “universo” fosse apenas vidro sendo triturado.
E, no entanto, só restava o espantalho.
Imune a danos diretos.
Não importava a intensidade, não importava o alcance, ou poder destrutivo da técnica.
Ele permanecia.
Independente das consequências.
— Não! — Gritou, mas já não sabia se contra ela ou contra o próprio destino.
Estava em cacos.
As pernas tremiam, vazando o líquido quente que escorria sem piedade; seu corpo havia se rendido antes mesmo que sua vontade fraquejasse.
O corpo retorcido em carne mutilada, ossos desalinhados como ferro retorcido em incêndio.
Porém, a dor se esfarelava, migrando para o boneco que usava como receptáculo, e o rosto de sofrimento se torcia, metamorfoseado em um sorriso falso.
Ela me mataria sem mover as mãos?
Sua mente o reduzia a um mero espectador da própria vida… que se esvaía em um único movimento.
Defendeu um chute vindo da esquerda — e só o impacto já fazia as cordas do espaço vibrarem, rasgando o ar como véus partidos. A perna dela, recoberta por cristais, surgia como um obelisco em fúria arremessado contra ele.
— Consegue me acompanhar? — brincou, a crueldade costurada no tom leve — Ou vai ficar só reagindo?
— Só reagindo… — murmurou, os olhos fixos no próprio braço, agora reduzido a mais carne exposta e ossos trincados, o sangue escorrendo como um rio sem fim — só reagindo…
Sangue… sangue… sangue…
A vida escorre como se fosse nada.
Como num filme policial, a violência apenas endossa o cinza dos dias e nos vicia na dor.
No fim, restamos todos — suicidas alheios.
Sua voz já não era som, era um eco arrastado pela dor.
Tal qual esta narrativa, cansado de existir sempre na mesma efígie, condenado a sofrer até não mais viver… e assim sucessivamente, como um eco interminável.
E num movimento invisível, ela fez o impossível.
O estômago dele foi partido em dois, como se o simples ato de pensar fosse suficiente para cortar realidades.
De onde veio esse ataque?
Ele era apenas a vítima de um reflexo que habitava tudo.
Afinal… o que o mundo pode refletir?
Essa era a pergunta.
O espaço ao redor se partia em fragmentos, multiplicando-se em infinitos pedaços de vidro, cada qual devolvendo sua imagem distorcida.
Era como existir dentro de uma memória estilhaçada — e ela, soberana, refletia-o em cada caco, até que a própria noção de resistência se desfazia como pó.
Quando tudo foi convertido no boneco, ele se desvinculou e, por um golpe de sorte, desviou do ataque que teria ceifado seu pé direito.
— Agora… — prendeu o ar no peito.
Estava pronto para decretar o fim, mas…
Foi então que a mão dela se ergueu.
E o lançou direto aos domínios que rasgavam o nó daquela realidade.
Se tornando nada mais do que um reflexo de espelho, rompendo o domínio inato como se fosse nada.
Afinal, sendo reflexo, o arrastava para uma dimensão espelhada, anulando seu ponto de existência.
Tecnicamente, ele havia ativado sua própria técnica divina ao cumprir o requisito do limite do boneco.
Mas os efeitos foram anulados pelo ponto de conexão e de direcionamento, estar agora situado além daquele espaço-tempo intercessivo.
Azar era o dela: ainda não havia acabado. Estava prestes a concluir o serviço, destruindo o espelho…
Mas, às suas costas, Seiji já a fitava olhos estreitos cravados na dama dos cristais.
— Então você derrotou os dois…
— Velho…
A surpresa foi imediata.
— …Sério? Você trouxe a sua geriátrica?
— Imbecil…
Dessa vez, não seria um mero peão… mas o rei que moveria o tabuleiro.
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