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    Ser é ser percebido.

    Pois a existência só pode ser entendida por um olhar que a testemunha, uma consciência que a sustente em sua trama.

    Se não há quem a observe, não há fato.

    Se não há mente que a conceba, não há forma. Conceber, no fim, é dar vida: o ato de perceber é também o ato de criar.

    Mas…

    Isso se aplica a outros seres vivos?

    Talvez.

    Foi nesse fio tênue de percepção que Yamasaki encontrou sua âncora.

    Ele se libertou do cárcere que chamava realidade e, ao fazê-lo, dobrou não apenas conceitos, mas a própria espinha dorsal daquilo que chamamos de “ser”.

    Sustentou-se no espaço onde nem o vazio físico, nem o mental, nem o espiritual poderiam repousar… um não-lugar que não pertencia a nenhuma categoria do concebível.

    Não era o vazio primordial.

    Era a ideia que antecede o início e sobrevive ao fim: o sopro que se mantém antes do primeiro som, a fagulha que respira mesmo após o fogo se extinguir.

    Uma essência imóvel, sem experiência, sem sensação, sem sequer o peso do existir.

    O antes do antes.

    A pura noção de existência.

    E, paradoxalmente, a fragilidade dessa noção.

    Pois bastava uma fissura, a percepção do que falta, para que esse absoluto fosse quebrado.

    Bastava que a mente, em sua necessidade de lembrar, de recompor, de reproduzir o que já viveu, deixasse escapar fragmentos de imagens.

    Memórias, formas, ecos.

    A ausência, quando notada, tornava-se presença. O não-ser, quando desejado, tornava-se carne de um espectro.

    E assim, não retornou como só um homem, mas como um reflexo…

    Um fantasma de si.

    Um contorno que só se sustentava no olhar alheio.

    E foi assim que apareceu, na borda do campo de batalha, como se emergisse de uma dobra entre tempo e silêncio.

    Atrás de Amai.

    Que se mantinha como uma muralha, e ainda duvidava da ausência dele.

    Enfim rompeu o silêncio do não-ser, não o percebeu primeiro com os olhos, mas com a memória do corpo… um cheiro conhecido, um sopro que atravessava a pele como uma lembrança e a arrepiava.

    — …Onde estava?

    Havia uma sombra de alívio escondida no timbre.

    Ele sorriu sem sorrir, os traços quase intangíveis, como se sua presença ainda lutasse contra a própria forma.

    — Você não acreditaria…

    Carregando nos lábios a ironia de quem caminhou por lugares onde nem mesmo a linguagem alcança.

    Foi então que seus olhos se voltaram para o horizonte.

    Diante deles, a grandiosa árvore.

    Já não havia beleza em admirar os céus.

    Aquele cenário transformara-se em blasfêmia contra a esperança, uma ferida aberta em forma de paisagem.

    — Caramba… — a respiração dele embargou, rendida ao espanto — Acho que nada que eu falasse chegaria perto disso!

    Ergueu a mão, hesitante, parando na altura do peito.

    Os dedos tremeram, como se quisessem tocar uma ilusão que poderia se despedaçar a qualquer instante.

    — É… físico?

    Incapaz de decidir se desejava a resposta.

    — Não … é escuridão pura!

    Freou, na hora, todos os instintos que clamavam dentro dele para incendiar o horizonte.

    As chamas negras, que tantas vezes devoraram mundos e transgrediram fronteiras, não passariam de fagulhas inofensivas ali.

    Pois aquelas trevas não eram ausência de luz, mas a presença de algo maior, denso o bastante para rasgar a própria realidade… e, sim, eram.

    Quando seus olhos se fixaram na base, o alívio de encontrar raízes sólidas se dissolveu em assombro.

    Ela não estava enterrada.

    Não tocava o chão.

    Era engolida, na verdade, por um portal de proporções tão sutis que a própria visão teria de se tornar microscópica, molecular, para captar suas fissuras invisíveis.

    Frestas quase inexistentes, onde a matéria parecia se dissolver, como se houvesse ali um limiar entre o ser e o nada.

    O tronco imenso sustentava-se sobre o impossível, erguendo-se a partir de um vazio tão fino que a mente humana não conseguiria nomear.

    E, ainda assim, resistia, imutável.

    A cada instante, dava a sensação de que poderia despencar sobre eles… mas não.

    Permanecia, como se sustentada pela própria negação da existência.

    — Que raios é isso?!

    Isso… é o que brota após plantar o mal sobre o solo!

    Enfim respondeu o tagarela Azaael, com a garganta embargada. Havia nervosismo em cada sílaba, como se até a entidade demoníaca fraquejasse diante daquilo.

    — Eu lá sei! — rebateu, batendo nas costas dela com um gesto brusco, como quem tenta trazer alguém de volta à realidade — Nada faz sentido… tudo está tão rápido! Parece só um pesadelo, não?

    — Parece… — admitiu, a voz quase quebrando, mas ainda firme — e um dos piores.

    Ele coçou a nuca, olhando para o vazio que parecia engolir a própria coragem.

    — Escuta, Amai… — suspirou fundo, pesado, como quem carrega a eternidade em um só fôlego — O que você gostaria de fazer que nunca fez?

    Ela o encarou com surpresa, como se a pergunta fosse uma violência absurda no meio daquele cenário.

    — Por que isso agora?

    Azaael ergueu os olhos para a árvore impossível, a sombra rasgando o horizonte.

    — Vai que é o fim…

    — Pescar… — e até ela mesma se assustou com a própria confissão, tão deslocada e íntima.

    O silêncio que se seguiu foi preenchido por um breve riso, nervoso.

    — E você? — perguntou, num tom que tentava disfarçar a própria fragilidade.

    Ele virou o rosto, e um sorriso torto escapou.

    — Cortar o cabelo…

    Era isso. Tão banal, tão humano, e ainda assim tão carregado de peso. Nosso herói desejava, no fundo, se libertar de sua própria lástima, daquilo que lhe caía sobre os ombros como fios emaranhados de passado e fracasso.

    Mas… o que isso significava?

    Ela não entendeu.

    Nem você.

    Nem ele próprio talvez.

    E, ainda assim, sorriu. Um sorriso breve, quebradiço, atravessado por um pequeno riso travesso que brotou quase como defesa, quase como coragem.

    — Quer que eu faça? — A ousadia leve de quem, mesmo em meio ao abismo, encontra espaço para brincar.

    E, de repente, não havia mais trevas. Não havia mais portais, nem fim. Apenas o instante.

    Ele piscou, surpreso, como se a ideia fosse um milagre impossível.

    — Pode? Quer dizer… você consegue?

    E ali estavam. Dois seres, despidos de tudo, confessando desejos tão simples que doíam mais do que qualquer batalha.

    Pois, no limite da existência, não era a eternidade ou a glória que se buscava… mas a possibilidade de um gesto singelo, de uma escolha íntima que nunca encontrara tempo para ser feita.

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