Capítulo 341 - Cortar fios
Ser é ser percebido.
Pois a existência só pode ser entendida por um olhar que a testemunha, uma consciência que a sustente em sua trama.
Se não há quem a observe, não há fato.
Se não há mente que a conceba, não há forma. Conceber, no fim, é dar vida: o ato de perceber é também o ato de criar.
Mas…
Isso se aplica a outros seres vivos?
Talvez.
Pois foi nesse fio tênue de percepção que Yamasaki encontrou sua âncora.
Ele se libertou do cárcere que chamava não-realidade e, ao fazê-lo, dobrou não apenas conceitos, mas a própria espinha dorsal daquilo que chamamos de “ser” e “estar”.
Sustentou-se no espaço onde nem o vazio físico, nem o mental, nem o espiritual poderiam repousar… um não-lugar que não pertencia a nenhuma categoria do concebível.
Mas não era o vazio primordial.
Era a ideia que antecede o início e sobrevive ao fim: o sopro que se mantém antes do primeiro som, a fagulha que respira mesmo após o fogo se extinguir.
Uma essência imóvel, sem experiência, sem sensação, sem sequer o peso do existir.
O antes do antes.
A pura noção de existência.
E, paradoxalmente, a fragilidade dessa noção.
Pois bastava uma fissura, a percepção do que falta, para que esse estado absoluto fosse quebrado.
Bastava que a mente, em sua necessidade de lembrar, de recompor, de reproduzir o que já viveu, deixasse escapar fragmentos de imagens.
Memórias, formas e ecos.
A ausência, quando notada, tornava-se presença. O não-ser, quando desejado, tornava-se carne de um espectro.
Criando espaço, preenchido por tempo.
Ação levando à reação antológica das coisas.
E assim, não retornou como só um homem, mas como um reflexo…
Um fantasma de si.
Um contorno que só se sustentava no olhar alheio. Interagir com o mundo te faz parte dele.
E foi assim que apareceu, na borda do campo de batalha, como se emergisse de uma dobra entre tempo e silêncio.
Atrás de Amai.
Que se mantinha como uma muralha, e ainda duvidava da ausência dele.
Enfim rompeu o silêncio do não-ser.
Não o percebeu primeiro com os olhos, mas com a memória do corpo — um cheiro conhecido, um sopro que atravessava a pele, e a arrepiava como se o tempo tivesse voltado a respirar.
Seus olhos, cor de mel, caíram sobre, subindo de suas mãos até os lábios rachados.
Houve um instante de pausa, como se o mundo temesse mover-se.
Ela mordeu o lábio ao vê-lo.
Entre eles, o ar parecia feito de saudade.
— …Onde estava?
Havia uma sombra de alívio escondida no timbre.
Ele sorriu sem sorrir, os traços quase intangíveis, como se sua presença ainda lutasse contra a própria forma que outrora o manteve.
— Você não acreditaria…
Carregando no peito a ironia de quem caminhou por lugares onde nem mesmo a linguagem alcança.
— Por quê? — a voz dela quebrou o ar rarefeito — Já não sou crente do impossível?
— Acho que o impossível… é incapaz de categorizar isso.
As palavras pairaram, desajeitadas, e o silêncio que veio depois foi profundo.
Foi então que seus olhos se voltaram para o horizonte.
Diante deles, a árvore do pecado.
Os galhos se erguiam em direção a um céu sem cor, como nervuras tentando lembrar-se de um coração.
E naquele instante, já não havia beleza em admirar o firmamento, porque, agora, parecia apenas uma cicatriz aberta no real.
Aquele cenário transformara-se em blasfêmia contra a esperança.
— Caramba… — a respiração dele embargou, rendida ao espanto — Acho que nada que eu falasse chegaria perto disso!
— É… você tem um ponto…
Olhando sua reação de soslaio.
O jovem ergueu a mão, hesitante, parando na altura do peito.
Os dedos tremeram, como se quisessem tocar uma ilusão que poderia se despedaçar a qualquer instante.
— É… físico?
Incapaz de decidir se desejava a resposta.
— Não … é escuridão pura!
Freou, na hora, todos os instintos que clamavam dentro dele para incendiar o horizonte.
As chamas negras, que tantas vezes devoraram mundos e transgrediram fronteiras, não passariam de fagulhas inofensivas ali.
Pois aquelas trevas não eram ausência de luz, mas a presença de algo maior, denso o bastante para rasgar a própria realidade… e, sim, eram.
Era o maior fragmento de Alum, a entidade que existia além do que pode ser contido por palavras,
a própria Dualidade que faz da “realidade” e da “ficção”
faces opostas de um mesmo espelho.
Sua presença não se descrevia: sentia-se.
Um peso sem forma, um murmúrio que atravessava todas as dimensões materiais sem jamais pertencer a nenhuma.
Quando seus olhos se fixaram na base, o breve alívio de encontrar raízes sólidas se dissolveu em assombro.
Ela não estava enterrada.
Não tocava o chão.
Flutuava,.suspensa sobre o nada,
sustentada por uma ausência tão perfeita que se tornava visível.
A terra abaixo não a segurava, era ela que mantinha o mundo preso ao ato de existir.
Era engolida, na verdade, por um portal de proporções tão sutis que a própria visão teria de se tornar microscópica, molecular, para captar suas fissuras.
Frestas quase inexistentes, onde a matéria se dissolve, como se houvesse ali um limiar entre o ser e o nada.
E, ainda assim, resistia, imutável.
A cada instante, dava a sensação de que poderia despencar sobre eles… mas não.
Permanecia, como se sustentada pela própria negação da existência.
— Que raios é isso?!
Isso… é o que brota após plantar o mal sobre o solo! A voz de Azaael rompeu. O fim que tanto te disse, garoto! Mas as palavras vieram trêmulas, como se algo as apertasse em sua garganta.
Enfim, o tagarela Azaael apareceu e pela primeira vez, sua tagarelice se tornava profecia cumprida.
A garganta embargada, o olhar fixo na árvore também. Havia nervosismo em cada sílaba, como se até uma entidade demoníaca fraquejasse diante daquilo que não devia ter nome.
— Eu lá sei! — rebateu, batendo nas costas dele, como quem tenta trazer alguém de volta à realidade — Nada faz sentido… tudo está tão rápido! Parece só um pesadelo, não?
— Parece… — admitiu, a voz quase quebrando, mas ainda firme — e um dos piores.
Coçou a nuca, olhando para o vazio que parecia engolir a própria coragem.
— Escuta, Amai… — suspirou fundo, pesado — O que você gostaria de fazer que nunca fez?
Ela o encarou com surpresa, como se a pergunta fosse uma violência absurda no meio daquele cenário.
— Por que isso agora?
— Vai que é o fim…
— Hm… — vários momentos passaram diante de seus olhos, cada lembrança era uma partícula de luz presa entre respirações — Pescar… — por fim, e até ela mesma se assustou com a própria confissão.
Tão deslocada, tão íntima, que parecia ter escapado por acidente de dentro da alma.
O silêncio que se seguiu foi tímido, preenchido apenas por um breve riso… nervoso, desajeitado, humano.
— E você?
Ele virou o rosto, e um sorriso torto escapou.
— Cortar o cabelo…
Era isso. Tão banal, tão humano, e ainda assim tão carregado de peso. Nosso herói desejava, no fundo, se libertar de sua própria lástima, daquilo que lhe caía sobre os ombros como fios emaranhados de passado e fracasso.
Mas… o que isso significava?
Ela não entendeu.
Nem você.
Nem o próprio, talvez.
E, ainda assim, sorriu. Breve, quebradiço, atravessado por um pequeno riso travesso que brotou quase como defesa, quase como coragem.
— Quer que eu faça?
E, de repente, não havia mais trevas. Não havia mais portais, nem fim. Apenas o instante.
Ele piscou, surpreso, como se a ideia fosse um milagre em meio ao mar de karma.
— Pode? Quer dizer… você consegue?
E ali estavam, dois seres despidos de tudo, confessando desejos tão simples que doíam mais do que qualquer batalha.
Pois, no limite da existência, não era a eternidade ou a glória que se buscava, mas a possibilidade de um gesto singelo, de uma escolha íntima
que jamais encontrara tempo para ser feita.
No fim, tudo o que restava
era o desejo humano, aquele que sobrevive mesmo diante das amarras do destino e da causa.
Um desejo que não pede poder,
mas apenas permissão para existir.

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