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    — Você não é tão ruim…

    O sorriso que escapou de seus lábios não era mero reflexo; era uma fenda súbita aberta em meio às ruínas de si. Girou o corpo, o pulso latejando sob os dedos, não sabia se pela dor do último desvio ou pela nova chama que, inesperadamente, ardera em seu interior.

    Algo mudara. Não era apenas força, mas a suspeita de ter enfim encontrado algo.

    — Maldição! — ergueu-se do chão o paladino, primeiro ajoelhado, um pé afundado na areia e o outro servindo de pilar — Então… esse é o poder de um Rei Demônio?

    — Se impressionou? — devolveu a entidade, e o tom soava como gozo.

    A máscara que vestia lhe assentava com perfeição, a farsa de um combate que, no fundo, não parecia necessário. Era estranho erguer os punhos, simular ódio, vestir a pele do inimigo quando, na essência, o vazio pesava mais do que qualquer rivalidade.

    Não que fosse santo. A pureza nunca lhe pertenceu, tampouco o desejo de redimir-se. Mas havia algo de grotesco na banalidade da morte: mesmo para aqueles que habitavam além da moral, o ato de ceifar uma vida não poderia ser mero reflexo, precisava de um significado, de uma justificativa que ressoasse para além da carne.

    Afinal, ser racional é padecer no fardo do saber, compreender que cada vida tirada arranca também uma parte de si. Sofrer não pelo sangue derramado, mas pela consciência de que se é capaz de derramar.

    E naquele instante, no espaço entre um golpe e outro, o fardo se revelou mais pesado que o próprio punho.

    E munido do pesar… o astuto agiu.

    Não era coragem, tampouco fé, era a lucidez de quem conhece a fenda entre o certo e o inevitável.

    Movia-se como sombra que aprendeu a dançar entre os clarões.

    De súbito, teu punho ergueu-se num arco de raio, atingindo-lhe o queixo com violência. O impacto soou como trovão rasgando o firmamento já morto.

    Eu… Não deixaria barato.

    Revidou. Precisava…

    Como se o próprio corpo fosse um recipiente prestes a transbordar, arrastando consigo o peso do mundo.

    Precisava libertar-se, nem que fosse apenas por um instante, arrancar o fôlego da realidade e devolvê-lo em forma de golpe.

    E na percepção distorcida do demônio, tudo fluía em câmera lenta: a areia suspensa em grãos dourados, o calor espalhando-se por cada veia como se fosse sangue líquido em erupção, o rosto adversário movendo-se apenas alguns milímetros, mas o suficiente para mostrar vulnerabilidade.

    Como deixei passar?

    A resposta veio em torrentes de trevas, cuspidas pelo próprio em ondas.

    Mas ele avançou, rugindo:

    — Você vai se arrepender!

    O segundo soco foi tão veloz que parecia um salto no tempo, deslocou o ar e acertou a entidade com mais força, dilacerando o silêncio.

    Ele está…

    O nevoeiro em sua mente se dissipava, revelando uma claridade cruel, que não admitia refúgio.

    — Ah… — recuou a besta, realizando um salto mortal que o afastou em pleno ar — Você está se fortificando! Isso é sua habilidade… ou um pacto?

    Em seus olhos, o cenário era restituído.

    O zumbido que antes dominava seus ouvidos cedeu lugar a um silêncio lúcido, como se cada frequência se dobrasse diante de sua atenção.

    A natureza, cúmplice secreta, sussurrava-lhe: o deslocar das partículas no ar, o calor que vibrava sob a pele da terra, a cadência irregular da respiração do inimigo.

    — Deduziu?

    — Não. É que cada explosão da sua energia vibra no ar, e o próprio vento me conta da mudança. A cada golpe, mais rápido, mais forte… — uniu o punho à palma da mão, incrédulo — Mas… você está se segurando?

    — Ahn?

    Um passo adiante, apenas um erro ao tentar acerta-lo novamente, e o chão inteiro gemeu em resposta.

    O contato com a terra terminou em uma onda de impacto que rompeu-se em cataclismo, desdobrando-se em ventanias que varreram quilômetros de deserto, erguendo tempestades de areia.

    Sob a superfície, o eco correu como serpente sísmica, e um terremoto pôde ser sentido nas entranhas do mundo, como se a própria Crea tivesse estremecido diante daquele passo.

    Era só um movimento, mas em suas mãos, até o erro se tornava catástrofe.

    — Me segurando? — sua voz cresceu — Está me achando fraco?!

    — ESTOU!

    E ao pisar com força, o cenário cristalizou-se: a areia esbranquiçada transformou-se no sopé de um vulcão em erupção. O caos vazava do corpo do demônio, impregnando a natureza que tanto amava. E, como resposta, uma lágrima se desprendeu da própria terra, a dor de um mundo sendo queimado por quem deveria protegê-lo.

    Ele se reergueu, firme. Sob seus pés, canalizava o calor, mas não para moldar, para inverter até o frio o salvar do pesar de queimar os pés.

    Medo de morrer? Não!

    A morte é só um ponto final.

    O que lhe corroía as entranhas era o medo de falhar, de ser lembrado não pelo fim, mas pelo vazio de não ter sido suficiente.

    Porque morrer é simples.

    Difícil é viver carregando a ruína de não ter alcançado.

    Assim, rasgava o véu da essência, revertendo-lhe o estado, acelerando o fluxo da matéria.

    Com um estalo de língua, o fogo escarlate converteu-se em inverno. O deserto, agora tundra. Ao erguer a mão, convocou uma ventania de cristais gelados que morderam a pele da entidade. Quase a congelaram. Quase — e esse “quase” já era uma vitória e uma maldição, corroendo ambos.

    Flocos efêmeros se dissolviam antes mesmo de tocar-lhe as costas. Ainda assim, o demônio sorria, irônico.

    — Você não vai a lugar nenhum assim! — respondeu, erguendo-se em chamas até tornar-se um astro em combustão — Posso fazer o mesmo que você… mas sem cooldown.

    — Não…

    A frase morreu. A onda de calor que o atingiu não era só energia: era intenção pura, crua, erradicando o ar, evaporando o deserto. O clarão riscou os céus de Crea como uma lança de luz, cega e devastadora. Lençóis freáticos secaram, lagos implodiram sob a radiação da escuridão.

    Sinto muito… pensava a besta, fitando o deserto que se transformava em ossário. Seu único consolo era manter os olhos adiante, lá, onde ainda havia futuro, fragmentado, mas resistente.

    Levantou-se mais uma vez. Lábios rachados, um olho já tomado pelo branco.

    Sou só cacos agora…

    Mas não admitiria empecilho.

    — Você é resistente… mesmo sem uma armadura dourada! — ironizou, limpando o ombro como se apenas poeira repousasse ali. Porém, em silêncio, espantava-se: Arthur ainda estava em pé. Carne viva, dentes cerrados, resistindo ao impossível.

    Quase tombando.

    Mas em pé.

    — Vai à merda, seu maldito!

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