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    Olhando para os céus… o ar secou em seus pulmões.

    E, por um instante, o espírito sentiu-se livre, mas do quê?

    De tudo o que o acorrentava, talvez.

    Ou de nada.

    Até então, fora livre apenas para pisar nas frutas podres e fazer o verde verter ao ouro, como faz o homem quando transforma vida em metal, e fé em comércio.

    Transformar o pulsar em prata, o sangue em ornamento.

    Assim sempre foi feito.

    Mas… a felicidade não veio.

    Nem sequer bateu à porta.

    Ironia amarga, dessas que o céu gosta de rir.

    Dizem que a vingança é um prato que se come frio… Mas ele descobriu que, quando o coração congela, não há mais fome para o servir.

    Sua mente transitava entre o dito e o vivido, cada lembrança ecoasse em um idioma que o corpo já havia esquecido.

    Mas fisicamente… estava estendido.

    Sobre as areias do deserto.

    As mãos, trêmulas, afundavam na areia, tentando agarrar o que sempre lhe escapava.

    Mas o que vinha, caía-lhe sobre o rosto como o sangue.

    Não havia luz.

    Nem som.

    Nem a lembrança daquilo que o chamava de “vivo”.

    Após tantos golpes, berros e carne rasgada, já não recordava nomes, apenas os rostos, distorcidos na penumbra da memória.

    Estava em frangalhos.

    Vazio e humano demais.

    — Aurora… — o sussurro partiu-se junto ao vento.

    Ergueu os dedos diante dos olhos,

    mas o gesto apenas denunciou o desespero de quem já não enxerga.

    E, quando a escuridão se partiu,

    ela estava lá.

    A entidade que sempre o observava entre o tempo e o silêncio.

    Acima dos seres sobrenaturais,

    existia uma norma silenciosa, entidades jamais escritas na Gênesis, mas sempre sussurradas desde o início.

    Não possuíam forma fixa, rosto,

    apenas sentido.

    Eram conceitos universais, leis absolutas que respiravam dentro da Matriz, onde toda a realidade se sustenta.

    Morte, Destino, e agora o Karma.

    Namkhai.

    Em sua presença dela não se movia, o mundo é que se curvava.

    Aos poucos, os seis braços fundiram-se em apenas dois, e os olhos cor de mel pousaram sobre as pernas desfeitas do rapaz.

    Pernas… as mesmas que o moveram até este instante foram apagadas, junto ao sentido de suas ações.

    Tudo findara. E era hora de desaprender a andar.

    Não se tratava de uma ideia nascida da experiência com a vida, mas de uma forma humana, estreita, limitada, de compreender o movimento.

    Estacionar.

    O mais cruel dos anseios.

    Pois nada aprisiona tanto quanto o medo de seguir, nem nada pesa mais do que o hábito de permanecer.

    — Você já não a merece… — murmurou — Terminou tudo. E, por isso, vim te conduzir àquilo que resta além da dor… a tua transcendência.

    O silêncio se alongou entre eles, o vento roçava o pó sobre o corpo ferido, e a pergunta veio, tênue, quase uma confissão:

    — Eu morri?

    Namkhai curvou-se, tocando a areia como quem abençoa a ruína dos homens.

    — Não. Morrer é encerrar o próprio caminho, é tornar-se uno com o sofrimento. Você ainda o sente,

    ainda o vive… e isso te prende. Não és punido por teus pecados, nem condecorado por tuas virtudes.

    — Então…

    — Então és o intervalo. A fresta entre o que acaba e o que insiste. Mal percebes, mas transformou-se até tornar-se irreconhecível.

    — Como?

    — Você sabe.

    — Como sei? Não entendo…

    Sorriu, ele quem observa o inevitável.

    — Porque és parte de um todo. Tua vontade, assim como a de dezenas, centenas de milhares de vidas que já passaram, move-se em direção ao mesmo fim… um destino coletivo.

    Ela ergueu o olhar aos céus.

    Atrás das nuvens, uma veia negra pulsava, como se o firmamento sangrasse.

    — O fim está próximo. O colapso espiritual que tanto almejo… logo consumirá o que resta deste mundo. E você, entre todos, será o primeiro a atravessar o limiar.

    O rapaz o encarava, não com medo, mas com aquele olhar vazio de quem já desistiu.

    — Já desistiu dele? — sem pressa.

    — Eu já me vinguei.

    Uma confissão que o vento levaria.

    — O que mais eu deveria fazer?

    -— Deve tomar o que é seu…

    — Como? — Os olhos, inquietos, varreram o horizonte — O que é meu? Que raio de delírio é esse?

    O ser manteve-se imóvel, a voz era um eco que parecia surgir de dentro da própria areia.

    — Você superou a transformação da natureza. Dobrou seus limites, rasgou seus próprios conceitos.

    — Aquele instante… — sua entonação tornou-se um cântico — Leviel havia se tornado algo como eu. Viu através das linhas, não foi contido pelos espaços. Mas tua vontade, tua centelha absurda, modificou aquilo que chamamos de Lei dos Ciclos… a ordem natural que impõe a cada conceito ser uno, imutável e universal em todas as camadas do real.

    — Que maluquice é essa?! — a voz dele tremia — O que isso significa?

    — Bem…

    Sorriu… não em escárnio, mas em compaixão.

    — Significa que agora… és alguém que atravessou o ciclo do sofrimento e da constante renovação. Um ser fora da roda… nem vivo, nem morto,

    nem preso à ideia de retorno.

    Ela recuou um passo, como se sua própria existência estremecesse diante da verdade dita.

    — E eu, assim como os demais, nada posso fazer. Teu caminho já não pertence a este plano, nem ao próximo.

    O vento soprou entre eles, erguendo a areia num véu translúcido, e a voz de Namkhai tornou-se quase um sussurro, distante como o som de um templo afundando no tempo:

    — Unir-te-ás a um plano… de que nem mesmo eu posso ter memória.

    Assim que falou, os braços do loiro, e logo, a cintura para baixo, já haviam se desfeito.

    Como vaga-lumes em ascensão, subiam ao céu, dançando em silêncio.

    Leveza que contrariava o peso do adeus.

    — Mas…

    — Mas? — voltou-se por um instante, o olhar perdido em algo distante — …Não há tempo para “mas”. Eu até te desejaria sorte, se você não tivesse ido além dela…

    E então, o rapaz se desfez por completo.

    No exato ponto onde seu corpo se dissolveu, uma flor brotou… frágil, serena.

    Ela libertou o que suas mãos insistiam em prender… Renovando os ciclos.

    E deixando, no meio de toda aquela desgraça, uma interrogação viva, uma semente de dúvida no coração do fim.

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