Capítulo 347 - Karma
Olhando para os céus… o ar secou em seus pulmões.
E, por um instante, o espírito sentiu-se livre, mas do quê?
De tudo o que o acorrentava, talvez.
Ou de nada.
Até então, fora livre apenas para pisar nas frutas podres e fazer o verde verter ao ouro, como faz o homem quando transforma vida em metal, e fé em comércio.
Transformar o pulsar em prata, o sangue em ornamento.
Assim sempre foi feito.
Mas… a felicidade não veio.
Nem sequer bateu à porta.
Ironia amarga, dessas que o céu gosta de rir.
Dizem que a vingança é um prato que se come frio… Mas ele descobriu que, quando o coração congela, não há mais fome para o servir.
Sua mente transitava entre o dito e o vivido, cada lembrança ecoasse em um idioma que o corpo já havia esquecido.
Mas fisicamente… estava estendido.
Sobre as areias do deserto.
As mãos, trêmulas, afundavam na areia, tentando agarrar o que sempre lhe escapava.
Mas o que vinha, caía-lhe sobre o rosto como o sangue.
Não havia luz.
Nem som.
Nem a lembrança daquilo que o chamava de “vivo”.
Após tantos golpes, berros e carne rasgada, já não recordava nomes, apenas os rostos, distorcidos na penumbra da memória.
Estava em frangalhos.
Vazio e humano demais.
— Aurora… — o sussurro partiu-se junto ao vento.
Ergueu os dedos diante dos olhos,
mas o gesto apenas denunciou o desespero de quem já não enxerga.
E, quando a escuridão se partiu,
ela estava lá.
A entidade que sempre o observava entre o tempo e o silêncio.
Acima dos seres sobrenaturais,
existia uma norma silenciosa, entidades jamais escritas na Gênesis, mas sempre sussurradas desde o início.
Não possuíam forma fixa, rosto,
apenas sentido.
Eram conceitos universais, leis absolutas que respiravam dentro da Matriz, onde toda a realidade se sustenta.
Morte, Destino, e agora o Karma.
Namkhai.
Em sua presença dela não se movia, o mundo é que se curvava.
Aos poucos, os seis braços fundiram-se em apenas dois, e os olhos cor de mel pousaram sobre as pernas desfeitas do rapaz.
Pernas… as mesmas que o moveram até este instante foram apagadas, junto ao sentido de suas ações.
Tudo findara. E era hora de desaprender a andar.
Não se tratava de uma ideia nascida da experiência com a vida, mas de uma forma humana, estreita, limitada, de compreender o movimento.
Estacionar.
O mais cruel dos anseios.
Pois nada aprisiona tanto quanto o medo de seguir, nem nada pesa mais do que o hábito de permanecer.
— Você já não a merece… — murmurou — Terminou tudo. E, por isso, vim te conduzir àquilo que resta além da dor… a tua transcendência.
O silêncio se alongou entre eles, o vento roçava o pó sobre o corpo ferido, e a pergunta veio, tênue, quase uma confissão:
— Eu morri?
Namkhai curvou-se, tocando a areia como quem abençoa a ruína dos homens.
— Não. Morrer é encerrar o próprio caminho, é tornar-se uno com o sofrimento. Você ainda o sente,
ainda o vive… e isso te prende. Não és punido por teus pecados, nem condecorado por tuas virtudes.
— Então…
— Então és o intervalo. A fresta entre o que acaba e o que insiste. Mal percebes, mas transformou-se até tornar-se irreconhecível.
— Como?
— Você sabe.
— Como sei? Não entendo…
Sorriu, ele quem observa o inevitável.
— Porque és parte de um todo. Tua vontade, assim como a de dezenas, centenas de milhares de vidas que já passaram, move-se em direção ao mesmo fim… um destino coletivo.
Ela ergueu o olhar aos céus.
Atrás das nuvens, uma veia negra pulsava, como se o firmamento sangrasse.
— O fim está próximo. O colapso espiritual que tanto almejo… logo consumirá o que resta deste mundo. E você, entre todos, será o primeiro a atravessar o limiar.
O rapaz o encarava, não com medo, mas com aquele olhar vazio de quem já desistiu.
— Já desistiu dele? — sem pressa.
— Eu já me vinguei.
Uma confissão que o vento levaria.
— O que mais eu deveria fazer?
-— Deve tomar o que é seu…
— Como? — Os olhos, inquietos, varreram o horizonte — O que é meu? Que raio de delírio é esse?
O ser manteve-se imóvel, a voz era um eco que parecia surgir de dentro da própria areia.
— Você superou a transformação da natureza. Dobrou seus limites, rasgou seus próprios conceitos.
— Aquele instante… — sua entonação tornou-se um cântico — Leviel havia se tornado algo como eu. Viu através das linhas, não foi contido pelos espaços. Mas tua vontade, tua centelha absurda, modificou aquilo que chamamos de Lei dos Ciclos… a ordem natural que impõe a cada conceito ser uno, imutável e universal em todas as camadas do real.
— Que maluquice é essa?! — a voz dele tremia — O que isso significa?
— Bem…
Sorriu… não em escárnio, mas em compaixão.
— Significa que agora… és alguém que atravessou o ciclo do sofrimento e da constante renovação. Um ser fora da roda… nem vivo, nem morto,
nem preso à ideia de retorno.
Ela recuou um passo, como se sua própria existência estremecesse diante da verdade dita.
— E eu, assim como os demais, nada posso fazer. Teu caminho já não pertence a este plano, nem ao próximo.
O vento soprou entre eles, erguendo a areia num véu translúcido, e a voz de Namkhai tornou-se quase um sussurro, distante como o som de um templo afundando no tempo:
— Unir-te-ás a um plano… de que nem mesmo eu posso ter memória.
Assim que falou, os braços do loiro, e logo, a cintura para baixo, já haviam se desfeito.
Como vaga-lumes em ascensão, subiam ao céu, dançando em silêncio.
Leveza que contrariava o peso do adeus.
— Mas…
— Mas? — voltou-se por um instante, o olhar perdido em algo distante — …Não há tempo para “mas”. Eu até te desejaria sorte, se você não tivesse ido além dela…
E então, o rapaz se desfez por completo.
No exato ponto onde seu corpo se dissolveu, uma flor brotou… frágil, serena.
Ela libertou o que suas mãos insistiam em prender… Renovando os ciclos.
E deixando, no meio de toda aquela desgraça, uma interrogação viva, uma semente de dúvida no coração do fim.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.