Tentando escrever esse capítulo
Enquanto o caos se espalhava pelo mundo, consumindo-o como se fosse mero parágrafo riscado de um rascunho esquecido… ainda no vácuo, estava Masaru…
Espera!
Onde ele está?
Eu o havia deixado vagando, suspenso entre um nada, esperando que outro problema o encontrasse.
Mas agora… agora não consigo narrar onde está. Como se tivesse escorrido pelas frestas da história.
— Talvez porque eu esteja aqui? — a voz ecoou, e quando me virei, lá estava ele: atravessando o limiar daquilo que não é cenário, nem personagem, mas sim o coração de tudo o que é ficção e realidade, Residência das Mentes, a Casa das Ideias.
Um lugar onde o Caos infiltra-se em cada fresta e veste de cor o que antes era apenas silêncio.
Caminhava como um intruso que reconhece o lar, com passos que deixavam atrás de si rastros de palavras soltas, frases abortadas, sonhos incompletos.
Despindo-se do seu mundo de origem.
— Ah… esse lugar…
Os olhos vagando pelas milhares de palavras suspensas, cada qual tremulando como vaga-lumes.
Algumas eram vislumbres, outras lembranças, outras apenas sonhos malditos que nunca nasceriam de fato.
Ainda assim, todas eram reais.
Possíveis. Impossíveis.
O que faz aqui? Como…?
— Você me permitiu — respondeu, e sorriu com um cansaço zombeteiro, como quem já sabia a réplica antes da pergunta — E… ele.
Seguiu com o olhar até um único termo que cintilava maior que todas as outras.
Um núcleo imutável no turbilhão.
“Ordem.”
Olhei… e vi.
A maldita.
Não era sombra, tampouco só uma palavra.
Era algo que segurava meus dedos, uma força que os dobrava contra o papel ou contra as teclas, não sei, fazendo-me profanar meu próprio texto.
Cada letra que surge não é minha.
Ele… então se fundiu com a Ordem?
— Mais ou menos… — Bocejando como se nada fosse mais banal. Sentou-se em cima da palavra “Destino”, que imediatamente se distendeu e se curvou sob seu peso, transformando-se numa rede que o embalava — Ele falou diretamente comigo. Me explicou as regras do jogo.
Para conseguir torcer um conceito, ele teria que ser mais pesado que o próprio pensamento que o gerou.
Mais pesado que a linguagem que tenta capturá-lo.
Que os mundos que repousam sobre ele sem perceber.
Um peso de absoluto, que não cabe na balança.
Descrever?
— Que tal pesado como um hipopótamo?
A comparação quebrou o ar.
O vácuo, antes solene, tremeu com um estalo, e palavras que pairavam como constelações se agitaram, rindo em silêncio.
A própria palavra “hipopótamo” surgiu acima é maior que as demais, inchada, corpulenta, e desabou sobre outras esmagando “esperança”, “virtude” e até “beleza”, que se estilhaçaram como porcelana.
Ele gargalhou.
Maldição… agora até um hipopótamo pode ser mais pesado que um conceito.
E ele? Ergueu os olhos, triunfante, como quem descobrira a fórmula secreta para ridicularizar os deuses.
No caso, eu…
— Então… eu sou realmente só um personagem em uma WebNovel? Oh… céus… — estalou os dedos.
O ambiente piscou.
Uma lâmpada velha prestes a estourar.
As linhas que me cercavam começaram a escorrer em manchas aquosas, como se o texto inteiro estivesse sendo lavado, levado pelo ralo invisível do banheiro.
Ele sorriu de canto.
— Você tá escrevendo isso do banho, não é?
Merda!
A acusação não veio como uma mera pergunta casual.
As palavras pingavam da parede, molhando o chão de letras. O mundo ficava encharcado de narrativa.
Que pesadelo!
…Ehr.
E então, o som de água escorrendo… não da minha casa, mas dentro da própria Casa das Ideias.
— Hehe… não precisa se envergonhar, criador — Com aquele riso insolente que não vinha da boca, mas da própria frase que acabara de pronunciar — É engraçado saber que minha existência escorre junto com o sabonete.
O que quer, Masaru?
Ele não respondeu de imediato.
Apenas deixou o silêncio se esticar como um fio prestes a arrebentar, enquanto observava as palavras ao redor se dissolverem em névoa.
— Só que me responda uma coisa… Por que eu deveria ouvir vocês?
Futuro. É tudo o que posso garantir.
— Futuro… — repetiu, revirando a palavra como quem prova um vinho azedo, que insiste em ferir o paladar — O que eu quero, ou o que eu preciso?
O que você precisa. O que você já tem. Tudo aquilo que não pode ser descrito, mesmo que esteja contido agora. Basta imaginar…
Ele estreitou os olhos. A palavra imaginar começou a tremer no ar, como se estivesse à beira de se despedaçar.
Eu… não conseguiria manipulá-lo.
Nem suas falas, nem seus gestos…
— Não. Não, não é assim tão simples! — murmurou — Eu já imaginei mundos melhores, já sonhei com heróis vestidos de capas e cuecas ridículas, já criei finais diferentes, destinos menos cruéis para mim… e sabe o que a sua Ordem fez? Transformou tudo em pó. Me mostrou que nada daquilo podia ser tocado.
Levantando-se da rede-palavra, “Destino” não suportou o abandono… despedaçou-se em letras quebradas.
As sílabas rolaram pelo chão, tentando ainda formar frases que já não podiam existir.
São as amarras da Ordem. Isso te frustra?
Não respondeu.
Apenas inclinou a cabeça.
Se agachou, tocou a palavra “eternidade” e ela quase colapsou.
— Hm… me diz você. Isso me frustra?
Ergueu o olhar, as pupilas já transbordando reflexos impossíveis e inomináveis.
Vi suas pupilas se multiplicarem.
Não eram olhos mais, mas eram espelhos.
E cada reflexo devolvia não apenas a mim, mas também todas as narrativas possíveis que eu nunca escrevi.
As histórias abortadas, os mundos nunca narrados, os personagens que morreram no esboço. Todos eles me encaravam de dentro de Masaru.
Era como se, naquele instante, fosse a soma de tudo o que eu neguei ao escrever.
Não…
— Não entendi, hein? — Zombou, colando a mão no ouvido como se fosse o fone de um orelhão. Inclinou-se para frente, fingindo escutar melhor.
Não!
A Casa das Ideias estremeceu.
Isso não te frustra… são barreiras, apenas! Só te fazem… se agitar!
— É isso — disse por fim, enfiando as mãos nos bolsos soltando um suspiro longo. Os ombros relaxaram, como se toda a discussão não passasse de um teatro — Por que me criou, hein? Tá aí se batendo, sua cabeça fervendo, tentando costurar sentido onde só existe caos…
Engoli em seco.
Não havia resposta simples.
Sério?
Sério mesmo que o personagem mais foda-se de todos me perguntou isso?
Porque é assim que um escritor vive… Criando problemas para si, tropeçando em abismos que inventou. Essa é a graça… eu acho… não?
Ele ergueu as sobrancelhas, saboreando a confissão.
— Sei lá… — balançou a cabeça, como quem já desistira de entender — Só… me dê a tal luta, que eu me vou feliz!
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