Índice de Capítulo

    A passagem estreita em que o grupo Fênix passava era tão translúcida que o gelo parecia ar solidificado, porém, só dava para ver azul e azul.

    Amostras de uma névoa fantasmagórica dificultavam a visão, mas em uma primeira curva, uma outra passagem foi indicada.

    Atrás de Nikko, Mayumi, e Minoru, Akemi foi o último a virar à esquerda; na dobra da parede, ele estendeu a mão e tocou a superfície vertical.

    Embora um toque prolongado no gelo liso pudesse causar queimaduras, outra sensação que repulsou aproximações descuidadas.

    “O que é isso?” Na nova parede à esquerda, um reflexo perfeito fascinava. “Esse… sou eu?”

    Claro, essa deveria ser uma pergunta boba de se fazer em frente a um tipo de espelho, entretanto…

    “Esse reflexo… isso não parece tão fiel…” O rapaz aproximava a mão; a réplica desprovida de vida acompanhava o movimento de forma espelhada…

    Mas no meio do gesto lento, o reflexo travou.

    — Uh?!

    A mão verdadeira foi recuada, um movimento não replicado pela representação na parede.

    Aquilo não era mais um reflexo, estava parado, de olhos vazios, observando além de uma barreira azulada. A boca falsa moveu-se, lenta e descompassada, formando palavras que não eram literalmente audíveis, mas rebatiam em uma mente como maldições. “Você nunca vai ser suficiente!”

    Passos para trás ocasionaram um tropeço nos próprios pés e cóccix no chão.

    Aquela voz não era real, parecia vir de dentro do corpo, infiltrada em pensamentos…

    “Bizaaarro! Isso é coisa da instrutora?! Não, não é possível que ela seja capaz disso!” 

    E quando menos pudesse prever, um olhar desesperado à direita descobriu que o grupo já havia desaparecido.

    “Ah, essa não…”

    — N-Nikko…? Mayumi? Minoru?!

    Quando o garoto levantou-se e observou a grande quantidade de passagens entre passagens, percebeu-se nas curvas de um labirinto, com reluzentes paredes de gelo impossíveis de serem puladas por um corpo normal. A névoa baixa que pairava sobre o solo apenas piorava a solidão.

    — E-ei! Onde vocês estão?!

    A única opção era correr e procurar.

    — Como pude me distanciar deles?! Quando eu os encontrar será um vexame… isso se eu encontrar…! Nikko!

    Sons de passos navegavam e perdiam-se por caminhos desconhecidos que levavam à mais opressiva imersão de estar preso em um pesadelo.

    — Essas paredes… o que há com esses reflexos? Parem de me olhar! Sumam!

    No decorrer de inúmeras curvas, as paredes refletiam não somente a imagem do rapaz, haviam versões distorcidas dele mesmo: um chorando, outro rindo de forma maníaca, outro com olhos vazios e uma expressão de desespero dentre outras feições e poses perturbadoras.

    — Eu… sou assim? É assim que os outros me enxergam? Não, isso não faz sentido. Concentre-se! 

    E então, ouviu-se algo que parou a corrida.

    “Não precisamos de você.”

    Nikko apareceu, de costas, andando lentamente para longe. Akemi estendeu a mão e tentou alcançá-la, mas a garota desfez-se entre a fumaça baixa.

    Posteriormente, entre o gás gelado, formou-se Mayumi, de olhar analítico ao se aproximar. “Imprestável…”, amargurada, ela caminhou até a parede, atravessando-a em silêncio, sua imagem continuava. A profundidade tornou-se realista, naquele momento, os arredores confundiriam até o mais lúcido.

    “Você só atrasa os outros, um fardo para qualquer um. Morra”, disse a voz de Minoru, que mesmo não materializado, soou como uma faca rasgando um ego de papel.

    Inesperadamente, nada mais parecia um labirinto, o local transformou-se em um campo liso e infinito de gelo escuro. À volta, inúmeras pessoas, de roupas chiques e dotes da realeza, gargalhavam, encaravam, apontavam e sussurravam comentários maldosos e desmotivadores direcionados à uma pessoa só: Akemi Aburaya.

    “Hii-huhuhu, olha só aquele garotinho, nem sabe o porquê de estar aqui. Ele deve sentir tanta vergonha por dentro.”

    “Muitos áuricos podem passar por dificuldades, agora, um aluno da ASA? Isso com certeza não é algo a se esperar.”

    “Áurico? Hahahaaa! Piada! Esse daí não apresentou uma única habilidade aparente em toda essa jornada!”

    “Nem sequer uma destreza física, será mesmo um aluno qualificado?”

    “Definitivamente não. Não dou uma semana para que ele seja desligado.”  

    “Será que ele realmente possui uma aura?”

    Apesar de sofrer com a falta da realidade, era preciso compreender que aquelas palavras e gestos não passavam de miragens surgindo e desvanecendo-se por todos os lados.

    Tentar entender como tudo acontecia era essencial.

    “Essas pessoas não param de falar! Sei que isso tudo é falso, mas… é tão real… é como estar em um sonho, só que com a verdadeira consciência de estar acordado. Cadê os outros? Como eu saio disso?!” Após recuar um pouco, Akemi parou, respirou, fechou os olhos, balançou a cabeça e adquiriu o foco que precisava. “Chega. Não posso me deixar levar pelo o que não existe, estão querendo bagunçar minha cabeça. Tenho que achar um jeito de sair daqui e encontrar o grup-”

    Repentinamente, um sorriso branco e retorcido desenhou-se no ar, distorcido, meio carniceiro, uma boca sem rosto que escapou das sombras. — Hiii-shi-shi-shiii, pegamos você… — O tom, risonho e rouco, ecoou como se várias pessoas de diferentes idades e gêneros falassem ao mesmo tempo, timbres funestos1 que racharam o gelo sob os pés de quem, diante da figura, arregalou os olhos.

    A voz, ou — as vozes — continuavam: — Estamos te acompanhando o tempo todo, e pelo que notamos, não podemos deixar de perguntar, como acha que sobreviverá aqui? Um magricelo, frágil, que nem sabe controlar a própria aura?

    Não eram apenas insultos, eram sentenças. Cada sílaba tinha o intuito de machucar como pregos cravados na carne, o que pouco importava, aquela boca já havia conseguido instalar o terror.

    Toda aquela coragem pré-moldada, foi-se embora há muito tempo.

    — Hmm, olhe ao seu redor. Todos veem o que você realmente é: um fracasso, um erro, um menino que não deveria estar aqui. Sabe o que acontece com erros como você? 

    Uma pausa deixou o silêncio preencher o vácuo, um silêncio que doía bem mais do que aquela pergunta.

    Pernas fraquejaram, medo e confusão corroía ossos.

    — Você será punido, e quando terminarmos com você, não sobrará nada além de vergonha e arrependimento. Você nunca mais vai querer voltar, afinal, nem poderá. A Academia Shihai de Asahi não precisa de alunos fracos e sem futuro — a promessa reverberou com o toque único de um sino funerário.

    Akemi caiu de joelhos, inerte. Respirar virou uma tarefa complicada; raciocinar, então? Impossível. Só restava uma sensação: nada daquilo era blefe…

    Outras vozes vinham como uma cacofonia2, difamando, gritando, rindo.

    “Você é fraco. Sua essência é a própria fragilidade. Você não é capaz de suportar o peso de continuar aqui.”

    “Inútil! Sua existência é um vazio que não contribui, não cria, não importa! Você é um eco sem voz, alguém que não deixa e nem deixará marcas! Você não existe!”

    “Huhuhuuu! Por que você ainda tenta, hein? Diga-me, qual o seu sonho? Tornar-se um shihai?! Huhuuu! Por que insistir em uma batalha já perdida? Seu empenho é tão fútil quanto tentar apagar o sol com as mãos! Desista!”

    O jovem colocou as mãos nos ouvidos, mas os dedos logo foram para a cabeça até serem enterrados no cabelo.

    Fechar os olhos foi a última tentativa de bloquear tudo, e por incrível que pudesse ser, o que veio a seguir não foi nada além do vazio — apenas o silêncio, puro e absoluto…

    Lágrimas que congelavam antes mesmo de atingir o chão escorriam.

    — Eu vou melhorar! Eu vou conseguir mudar! Eu prometo!

    Respostas ao lamento de um coração devastado emocionalmente demoravam a chegar, alimentando ainda mais o sentimento de insignificância que o consumia.

    A crueldade por trás de todo aquele desprezo atingiu o seu objetivo com exatidão. No entanto, aquilo não era apenas o efeito de meras palavras, havia algo mais profundo, uma energia sombria que afetava o cérebro. Um poder desconhecido, aprimorado ao nível mais refinado da loucura, estava em ação.

    A alma e a mente de quem ousava escutar estava sendo corroída.

    — … Hiii-shi-shi-shiii… Patético! — O tom macabro distanciou-se.

    Foi então que Akemi sentiu uma mão tocar seu ombro; de olhos marejados, ele checou a retaguarda.

    — Endoidou, garoto? — perguntou Nikko, apesar de preocupada, a situação divertia-a — tá falando sozinho agora?

    Recuperando o fôlego, o rapaz ficou confuso. As miragens sumiram, o labirinto parecia “normal”, e mesmo que as paredes de gelo continuassem, elas só refletiam o azul opaco.

    O salão de escuridão infinita, o sorriso, todo aquele mal havia desaparecido.

    A nova pergunta era: foi real, ou não?

    Sem tirar os joelhos do chão gelado, Akemi perdeu o brilho e o próprio olhar ao nada. — Eu… me perdi.

    — Perdeu? — Minoru apareceu irritado — você achou a saída dessa bagaça.

    — A… saída?

    À frente, uma grande entrada com uma larga escada congelada provavelmente tinha destino ao penúltimo andar do castelo.

    — Como esperado, um labirinto clássico. O objetivo era somente chegar ao outro lado. Ao menos teremos uma subida conveniente — Mayumi passou diante de Akemi e seguiu pela escada.

    Nikko desgrudou do ombro alheio e colocou as mãos na cintura. — Muito bem, Akemi! Sua gritaria serviu de guia para nós! 

    — Como me acharam?!

    Minoru aproximou-se. — As paredes não são tão altas. Eu e a Ichikawa conseguimos subir com um só pulo. Lá em cima, pudemos mapear melhor a saída.

    — Foi aí que percebemos a sua ausência — complementou Nikko — mas rapidinho vimos você correndo e gritando igual um doido pelos caminhos. Eu queria te responder, só que o seu companheiro aqui disse que você estava seguindo o caminho certo. Confesso que foi maldade por parte dele.

    — Que maldade o quê, ô! Só demoramos pra achá-lo porque tínhamos que guiar a Mayumi!

    — Tem certeza que não foi maldade? A gente podia muito bem se separar e cada um ajudava o outro, não precisávamos ficar só com a ruivinha.

    — … É, você tem um ponto. Mas você só fala isso agora?! 

    — G-gente — trêmulo, Akemi levantou-se; desencurvar a coluna era difícil, o trauma alastrou a insegurança — e-e as miragens? E as vozes?!

    — Vozes? Do que você tá falando, cara?

    — … Vocês não viram nada?

    — Negativo, só paredes azuis e enganosas.

    As respostas de Minoru não eram o que Akemi esperava.

    — … Mais nada?

    — Hmmm — Nikko relembrava de algo — pra falar a verdade, tinha uma energia áurica fluindo delas, parecia querer afetar a gente, mas era tão fraquinha que nem conseguia penetrar a primeira camada da nossa barreira astral. A real é que ela parecia dissipada… Você viu alguma coisa?

    Após a pergunta, Akemi retraiu o olhar. Ele não sabia mais o que sentia; medo, confusão, até mesmo raiva, todas essas emoções estavam fundidas em um único sentimento: frustração. — Eu… não vi nada — com passos irritados, o rapaz foi até a escada e subiu-a.

    A reação inesperada fez Nikko e Minoru apenas darem de ombros um para o outro, com certeza, entender o que se passava na cabeça de Akemi era uma perda de tempo para os dois.

    Naquele instante, o foco precisava ser total. O próximo desafio poderia exigir tudo, afinal, era o último antes do estágio final: o andar de Kyoko…

    1. Funesto: que pressagia morte ou que traz consigo desventuras, desgraças; sinistro.[]
    2. som desagradável.[]
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