Índice de Capítulo

    O fim da tarde caía em tons alaranjados e empurrava sombras compridas contra as estruturas da ASA. A muralha do quartel bloqueava o pouco sol que restava, mergulhando um brilho morno e lento no prédio principal onde a agitação continuava em seu interior.

    Ao lado de uma porta de correr no térreo, Nikko Ichikawa estava prestes a explodir: a ponta de um pé batendo no chão, as mãos na cintura e a paciência pendurada por um fio revelavam a inquietação que balançava o seifuku da ASA. “Por que esse garoto tá demorando tanto? Ele disse que só daria uma olhada no próprio estado, mas já se passaram vinte minutos desde que saímos daquele castelo maldito!” A garota ergueu a cabeça, lembranças voltavam com uma sensação ruim. “Argh, como aquela garota de cabelo roxo foi desagradável! Como era o nome mesmo daquela habilidade? ‘Córtex temporal’? Não, pera, isso não é uma parte do cérebro…? Ah, que seja! Ao menos saímos vivos no final de tudo aquilo. Mas… foi estranho a Miya não ter apare-“

    BAM!!! A porta se escancarou e bateu com força contra o batente. Nikko saltou um palmo do chão pelo susto.

    — Tô novo em folha! — Minoru Suzumura apareceu de peito estufado, vestido em seu gakuran limpo e, de certa forma, irritantemente alegre.

    — Ô, garoto! Ninguém te ensinou a ter modos, não?

    O rapaz abanou as mãos em um “chega pra lá”. — Modos são superestimados. Vamos, quero ver as nossas notas dessa PAA! 

    A direção era até um grupo de alunos que observava um folheto afixado num quadro negro ao lado da recepcionista, que como sempre, mal esperava o fim expediente.

    Mayumi Sanada mantinha-se atenta ao papel. Os irmãos Yamamoto liam em silêncio, lado a lado. Já Kyoko Shimizu, de braços cruzados e olhos fechados, parecia desligada do mundo, ou talvez só esperando alguém chegar a uma conclusão que não existia.

    Injetado pela sensação de estar inteiro de novo, Minoru ergueu a mão em um aceno animado enquanto se aproximava. — E aí, baixinha? As notas já saíram?

    Um sorriso enviesado tomou o rosto ofendido. — Olha que eu ainda te arranco a língua, garoto…

    — Falou algo? — Minoru ficou desentendido, cutucando o ouvido com o mindinho.

    — Nada que te interesse, tapado. Vão logo ver as suas notas e me deixem em paz.

    — Agradecida pela gentileza! — Nikko passou por Minoru com um empurrão de ombro que quase o fez tropeçar, e parada ao lado de Mayumi, apertou os olhos e avançou o rosto direto na folha, analisando-a como uma senha secreta. — Hmmm… “Primeira Prova de Aptidão Áurica: Situação de Resgate Áurico, Turma 1F, Instrutora responsável: Tenente-coronel Hisako Shimizu…” blá, blá, blá… Ah! Aqui!

    Assim, ela viu.

    — Hmmm… ZERO???!!!

    O grito ecoou pelo salão quase vazio.

    — É, mais uma decepcionada — Kyoko deu de ombros.

    Minoru se espremeu no grupo, encarando o folheto. — Espera, eu também tirei zero!? Não, isso tá errado… Todo mundo tirou zero!?

    — Até a Kyozinha ficou zerada, como isso faz sentido se ela era a refém do desafio?

    — Pra falar a verdade, avisei muito antes que eu nem me dei ao trabalho de participar dos desafios ridículos daquela velha maluca. Ela que me forçou a “entrar”, e ainda assim, não obtive nenhum ponto. Que seja, não me incomodo com isso. Onde já se viu ter que ser uma boa refém?

    Minoru se intrigava cada vez mais. — E quem tentou de verdade também não conseguiu nada!? E os desafios que fizemos antes!? Nada serviu pra alguma coisa!?

    — É isso que estamos tentando entender — respondeu Mayumi, sem desviar o olhar.

    Sho fez um breve aceno de cabeça. — Exato, até porque nem todos tiveram a mesma nota.

    Minoru analisou novamente o folheto para que então pudesse ver a nota distinta entre o emaranhado de zeros. — Tá… Hiromi Miyazaki: “NC”… Que diabos é “NC”?

    — Não calculado — disse Kyoko, com a empatia tão distante quanto o olhar.

    Nikko começou a refletir. — Hm, eu realmente não vi mais a Miya depois que fomos jogados aos andares de baixo… Onde será que ela estava aquele tempo todo?

    A baixinha quase distribuía broncas em vez de informações. — Já que vocês foram o primeiro grupo formado, é óbvio que não puderam ver o resto das seleções. Com base nos nossos dois primeiros desafios, a instrutora definiu um critério pra dividir os grupos heroicos, separar um refém, e escolher dois ou mais vilões. Dessa vez, a Kurosawa e a Miyazaki foram escolhidas, provavelmente a energia áurica das duas pareceram interessantes o bastante pra dar conta de segurar o resto da turma e… me manter naquele… cárcere nojento.

    — Então por que ela não estava ao lado da Kurosawa? Independente se era uma simulação, Miya não é do tipo que deixa ponto escapar.

    Minoru chamou a atenção. — Olha, esquece essa garota, vai, ela nem tava lá. A questão é: por que a gente não pontuou?

    — O motivo é mais idiota do que imagina — Kyoko jogou a frase como uma bomba.

    — Qual é, se você não quer ajudar, garota, então fica na su-

    — Gente — interviu Aruni, ajeitando os óculos — aqui diz que a Senhorita Kurosawa foi advertida por colocar a estrutura da academia em risco. Pode ser uma pista.

    Seu irmão concordava. — Realmente, eu já ouvi falar de capacidades áuricas inimagináveis, mas o que a Kurosawa fez hoje está fora do meu entendimento… Ela foi incrível… — Seus olhos brilhavam só de lembrar.

    — Incrível nada, ela quase matou a gente! — delatou Minoru.

    — Ué, não era você o fanfarrão que iria derrotá-la se chegasse perto? — rebateu Nikko.

    — Q-quê!? É… E-eu com certeza faria isso se ela não tivesse aumentado a potência no final.

    — Isso sem se preocupar com os efeitos colaterais em si mesma — complementou Mayumi.

    — Verdade, ela parecia em colapso quando aquela esfera cresceu — confirmou Aruni. 

    — Quando perdi minha katana, percebi. O corpo dela se despedaçava. Era evidente que se tratava de uma condição áurica, contudo, Kurosawa parecia carecer de noção até mesmo para compreender o que de fato provocava, principalmente a si mesma. Aquela aura a consumia por completo, inclusive a sanidade. Era como se sua mente nem soubesse o que estava fazendo.

    Minoru bocejava. — Nooossa, que bela aula de filosofia, hein, ruiva. Mas acho que entendi.

    — “Se ao término resta apenas o vazio, que valor têm os passos que nos trouxeram até ele?” — recitava Kyoko — “Os esforços, os acertos, os erros… tudo se dissolve quando o destino é o nada…”

    — Que isso, baixinha? — desconfiou Minoru.

    — Palavras da minha tataravó. Qualquer reclamação, sugiro que a procure. Boa sorte com isso.

    — Passo. Prefiro reclamar com quem parece normal. Mas, falando nisso… cadê o resto da nossa turma?

    Mayumi calmamente revelava: — Alguns viram a nota e saíram exaltados, outros olharam com indiferença como se já esperassem ver algo parecido, e ainda tiveram os que nem apareceram para checar a situação.

    — E onde eles estão?

    — Espalhados por aí — respondeu Kyoko — fomos liberados antes das 19h para o horário de intervalo noturno. Alguns devem estar treinando ou sei lá.

    Nikko colocou a mão no coração, preocupada. — Mas, galera, algum de vocês viu o Akemi, ele não parecia muito bem durante a prova.

    — Pois é — reparou Minoru — depois que aquele castelo de gelo foi desfeito e aquele shihai misterioso largou a gente no meio do campo de batalha antes de sumir do nada, o Akemi tava com uma cara de quem viu coisa demais, tipo, bem pirado mesmo. E ele não era o único, o Nihara também tava com um olhar fantasma no fim do desafio.

    — Quando chegamos ao topo do castelo, vi que o Akemi não estava nada bem — disse Sho — tentei falar com ele mas nenhuma resposta saía daquela casca vazia. Acho que eu nem estava sendo escutado. Mas como você disse, Minoru, estava muito estranho, parecia até que aquele corpo estava… amaldiçoado.

    Trocas de olhares ocorreram entre os jovens, o que foi dito soou muito mais do que apenas um simples relato…

    — Bom! Já que não podemos fazer nada, que tal comermos alguma coisa? — sugeriu Nikko.

    — Tem razão — afirmou Minoru — já que fomos liberados antes das outras turmas de grau F, teremos uma variedade maior de coisas deliciosas pra comer!

    Após uma breve conversa entre o grupinho, todos saíram juntos do prédio principal e foram rumo ao refeitório.

    Naquele momento, o grande salão do térreo ficou vazio. A única figura presente, novamente, era a recepcionista com o seus dotes góticos.

    Mas essa calmaria total não duraria por mais tempo…

    Sons surgiram como um eco abafado, ao longe, quase tímido.

    toc… toc… toc…

    Passos.

    Um calçado ressoava pelos degraus internos do prédio principal. Cada toque contra a madeira polida arrastava um suspense que não era explicado.

    Algo naquela cadência fazia o tempo desacelerar.

    Até que o primeiro pé tocou o térreo.

    Estava em um tênis preto, sem detalhes. Liso, limpo, como se tivesse sido tirado da caixa poucos minutos antes. O toque sobre o tapete rubro esticado no corredor principal foi firme, mas sem arrogância. Um passo apenas, e já se notava o peso simbólico do retorno.

    O tecido da calça preta acompanhava o ritmo, encobrindo parte do tornozelo; discreta, porém arrumada. Na altura do peito, mãos ajeitavam o gakuran negro, bem passado, sem um fiapo fora do lugar. Os botões de cima eram recolocados com destreza, como se aquilo fosse a única coisa que pudesse ser controlada por quem o vestia.

    E no meio de tudo isso, um rosto conhecido. Mas não exatamente familiar.

    O cabelo continuava o mesmo: castanho, um tanto bagunçado, do jeito que sempre foi. Os olhos, no entanto, pareciam enxergar mais do que deviam. Havia um abismo atrás da íris, algo que não estava ali antes; era uma ausência diferente, uma falta de alegria, porém, não aquela infelicidade que nos deixaria cair nas desgraças da tristeza e até chorar, mas por colisões internas que nos fariam pensar se seríamos mesmo capazes de seguir em frente…

    Havia dias em que o destino batia na porta como uma brisa bem-vinda. Outros, porém, ele arrombava a entrada feito um trem desgovernado; e quando isso acontecia… nada restava igual.

    Era nessa linha tênue — entre o ontem que já morreu e o hoje que sangra — que algo novo podia surgir: um estalo, uma ruptura sem aviso, o tipo de mudança que não pedia licença… apenas tomava.

    O medo, sorrateiro, ainda arranhava os cantos da mente, como um bicho faminto à espreita. A dúvida, uma das maiores parasitas do ser humano, uma praga sem corpo, mas com garras, escorria pelas mãos como um óleo que impediria qualquer corda invisível te salvar da queda. 

    Mas, naquela noite, algo quebrou o ciclo.

    Quando a realidade parecia pender para o colapso, veio ele — o momento que ninguém viu chegar…

    Definitivamente, aquele que chegava no térreo da academia sentia-se um estranho em terra hostil — não pelo lugar, mas pelo que habitava dentro de si. Havia uma prisão, uma que não se via, que não se ouvia, que não rangia correntes e nem exibia celas de ferro enferrujado; um cárcere sem cor, sem forma, sem som… sem saída clara… Era o pior, aquele sentimento que caminha contigo, que se esconde atrás do sorriso forçado, do olhar cansado, do silêncio que grita.

    A prisão chamada: crise existencial.

    O mais cruel: só existia uma chave para a libertação, e ela estava nas mãos trêmulas do próprio prisioneiro.

    Foi quando ele entendeu. “Isso não é só sobre a ASA, ou ser um shihai… Nem sobre desafios ou notas que são somente números. É sobre não caber mais em si mesmo…”

    Se quisesse correr atrás de um futuro, de um sonho — de si mesmo — teria que agir. Não amanhã, não quando estivesse “pronto”. Agora.

    Então, naquele instante, naquele quase suspiro de decisão… que se ergueu a cabeça.

    Akemi Aburaya.

    Seu primeiro passo para a verdadeira mudança aconteceria ainda naquele dia que parecia nunca ter fim…

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