Capítulo 69 - O veneno da verdade
[ Terraço da ASA – 18h30 da noite ]
No extenso e circular terraço da ASA, a noite mostrava um mar verde de árvores e um céu cravejado de pontinhos brilhantes. Entretanto, o clima pesava pelo simples fato de que Masaru e Kurori dividiam o espaço, encostados na borda da cerca. O homem observava o horizonte com tanta frieza que poderia causar receio, um efeito que jamais alcançaria o conforto da mulher ao lado.
— Foi intrigante observar aquele garoto, não acha?
— …
— Hmmm… entendo. A noite realmente está muito bonita hoje. Olha o tamanho daquela lua…
— …
— Pelo visto tem algo te incomodando.
— …
— Certo. Vejo que meu principal desafio será conquistar seu olhar ao meu rosto durante uma conversa. Aceito.
— …
— Aff, você estava mais legalzinho brincando de analista no meu laboratório.
Masaru nem se mexeu para que finalmente respondesse. — Só aceitei essa sua proposta incômoda em troca de facilitar o meu trabalho. Então por favor, preserve seus ânimos.
— Hm, pensei que aqui, longe de papéis e protocolos, você seria mais divertido.
— …
Kurori percebia o crescimento da irritação de Masaru, mas tinha uma carta na manga. Numa risada baixa e provocativa, ela meteu a mão no bolso do próprio jaleco. — Então veja isso. Aposto que vai gostar — seus dedos revelaram um cachimbo de metal fino, corpo vermelho e ponta dourada — bonito, né?
Masaru espiou, riu, e com menosprezo, voltou-se ao horizonte. — Hum, um kiseru? Se quer me matar, use logo suas habilidades mirabolantes e pare o meu coração. Seria mais honesto.
— Huhuhuhuuu! Você acha que sou boba. Fumaças não fazem nada contra você. Você sabe.
O cachimbo seguia sendo ignorado.
— Apenas cansei de dar ouvidos a esses truques sujos para aliviar o estresse que você vem recomendando.
A mulher chegou mais perto, venenosamente charmosa. — Não vai nem experimentar? Eu o preparei com muito carinho. Misturei folhas raras, maceradas no álcool mais limpo que encontrei. O fumo está pronto, e não fará nada além de te relaxar. Aliás, diga-me, o que é uma nova fumaça para um corpo tomado pela névoa da preocupação?
Masaru se mantinha parado, em silêncio… até que finalmente suspirou fundo, e sem que olhasse, estendeu a mão e tomou o cachimbo pela ponta dos dedos. — E como se usa esse troço?
— Apenas puxe devagar, e solte. O intuito é sentir o gosto, não engolir. Mas antes, acenda-o com teu fogo, senhor das chamas.
Masaru levantou o cachimbo, criou uma chama mínima no dedo indicador livre e a encostou na ponta dourada do fumo. O cheiro adocicado se espalhou pelo terraço quando a primeira baforada escapou de sua boca. A tranquilidade bateu de imediato, dissolvendo a rigidez no peito.
Kurori o observava com um sorriso vitorioso. — Agora que está mais calmo, Sr. Masaru, diga, o que está sentindo?
O homem tragou o fumo outra vez, soltando devagar. — Por que se interessa tanto pela minha vida?
— Porque vejo além. Está estampado em você, mesmo quando finge estar bem. Vejo um pavio de fósforo prestes a queimar por inteiro, consumido pela própria irritação.
Masaru riu rápido, irônico. — Hum, quer mesmo ajudar com uma descrição dessas?
— Huhu, quer uma melhor? Você está insistindo em segurar uma bomba-relógio acionada por eventos que queria comandar, mas estão completamente fora do seu controle. Como pretende desarmá-la sozinho?
— Gosta de metáforas, han? Pois saiba que prefiro guardar os problemas da vida para mim mesmo, assim como sempre fiz. Qualquer suposição sua não passa de mera falácia.
— Mentira. Se fosse desse jeito, não teria salvado ela.
Por um instante, a menção misteriosa quase cedeu Masaru ao impulso de olhar para Kurori, mas conteve-se em outra tragada. — … Ahém, como professor, já ajudei e guiei alguns alunos. Mas salvar alguém? — A voz dele falhou na rigidez — nunca foi um feito meu.
Aquela quebra escapou sem que quisesse, e Kurori percebeu. — Você se cobra demais… um ato nobre, sim… mas está acabando com as suas próprias emoções.
O cachimbo ardeu mais uma vez, refletindo na lente opaca dos óculos de Masaru. — Fale de uma vez o que você vê ou quer em mim.
— Quero a verdade. Estou nesta instituição a mais de cinco anos, e você a décadas. Porém, em todos esses anos, mesmo que sempre me ignorasse e julgasse, nunca o vi tão inquieto. Riscando papéis, jogando folhas para o alto, revirando mesas e chutando cadeiras. O que aconteceu com aquele homem elegante e autoritário que tomava os olhares daqueles que buscavam uma referência ética?
— Suspeitei que estivesse seguindo com suas violações a minha privacidade com suas visões pelas paredes. Definitivamente és uma figura indevida.
— É por causa da sua filha, certo?
Após instantes calado, Masaru usou mais uma pequena chama para aquecer o cachimbo. — Hiromi é uma mulher de conceitos, criada com uma força sem igual e uma sabedoria distinta do que vemos na juventude de hoje em dia. Ela não precisa da nossa preocupação.
— Tem razão, talvez não precise… Entretanto, por mais que diga, você não quer aceitar isso, pois se alguma coisa acontecer, se sentirá culpado… mais uma vez — alfinetou Kurori, olhando no fundo das lentes do homem, que seguia fumando sem que ao menos abrisse a boca.
— … Está querendo cutucar a minha dignidade?
— Não, quero recuperá-la. E não seja ingênuo, Sr. Masaru. Você é vizinho de trabalho de uma pessoa que espreita até os seus órgãos, acha mesmo que desconheço sua rotina? Inclusive, era fácil, não era? Acordar às quatro, dar aulas até o meio-dia, depois se trancar em pilhas de papéis e relatórios, sem pressa, esperando o sono bater… Até que sua filha cruzou os portões desta academia. A partir dali, a calma se esfarelou. O mestre sereno virou um homem inquieto, acelerando a escrita tanto quanto o balançar das pernas, parecia que você queria fugir daquela cadeira a qualquer custo. Ansioso, aflito, preso em uma sala de onde não se pode sair e vigiar alguém que não sabe por onde anda. Você nem disfarça mais, mas sempre foge de admitir. Só que dessa vez, seu rosto mascarado não esconde a dor que carrega.
Naquele instante, Masaru era saqueado por dois ladrões: a lua, que sequestrava seu olhar, e as palavras que invadiam seus ouvidos, rompendo sua firmeza.
A máscara de serenidade em seu rosto trincava a cada frase. Bastou um último sussurro acompanhado de um sorriso peçonhento para que seus ombros caíssem.
— Culpado. Este é o sentimento que teme.
O silêncio se prolongou no terraço. Kurori aproximou-se ombro a ombro, um toque natural ignorado pelo homem, mas glorificado pela mulher.
O controle se esvaiu do corpo que mentia: Masaru suspirou. — Haah… A culpa nos tira o fôlego, arranca a força dos ossos e destrói qualquer segurança. Não aceito mais viver com ela de novo.
Kurori pousou uma mão no antebraço alheio, e deslizou os dedos até a dobra da manga. O contato não foi repelido. — Está certo em temer, mas está errado em se auto sufocar. A culpa que você tanto evita só existe porque ainda se importa.
— Só se importar não traz alguém de volta.
— Mas pode impedir que alguém vá embora.
As palavras atingiram fundo. Lembranças do sofrimento de uma figura feminina ocultada por uma névoa negra assombravam por trás das lentes, mas a quietude permanecia, dando espaço para os tragos que afogavam aquelas imagens dolorosas.
Aproveitando o momento, Kurori puxou outro cachimbo com um isqueiro para que o acendesse. — Sei que teme perder outra vez, Masaru, está claro demais. Mas esse medo não combina com o homem que vi pela primeira vez.
O perfume dos fumos misturados confundiam os sentimentos de Masaru, que fechou os olhos, dolorido. As revelações que ouvia eram bisturis cavando feridas abertas. — Não sou pilar algum. Só um homem… cansado de se sentir fraco — ele soltou a fumaça devagar e olhou para cima como se a lua tivesse uma resposta — não se trata de mim. Hiromi é quem importa. Se ela tem pessoas poderosas como alvo, o que faço ou deixo de fazer não passa de detalhe inútil. O que um reles cientista cercado por regras, cobranças e vigilâncias poderia fazer para quebrar esse padrão e proteger a sua filha…? Haah, graças aos deuses que ela consegue se defender sozinha.
Kurori estreitou os olhos por trás da fumaça que subiu. — Hm… curioso. Tem medo de que ela descubra o quanto você realmente a vigia?
— Queria que ela tivesse a certeza de que posso vigiá-la. Mas nas minhas condições, isso é mera ilusão. Não posso acompanhá-la sem correr o risco de ser denunciado e arrastar a sua imagem para o lodo. Nossa família jamais perdoaria se destruíssemos de vez uma reputação já fragilizada. Temos uma cobrança imensa para recuperar a matriarca que perdemos.
— Se quer que eu te ajude, preciso entender até onde vai sua devoção. Quer mesmo minha cooperação? Então me deixe aproximar da sua filha. Posso levar a sua voz e qualquer informação até ela. Prometo ser invisível, intocável, de forma que nem mesmo o vento me perceba.
— … Está me pedindo algo perigoso.
Kurori ergueu a mão e ajeitou um pequeno fio rebelde na franja de Masaru, um gesto delicado demais para não ser intencional. — Estou oferecendo~ — seduziu ela em um sussurro próximo ao ouvido dele — e você sabe que sou a única capaz de andar pela academia inteira sem ser notada nem por aquele velho; eu e quem estiver por perto. Pare de fingir que consegue suportar tudo sozinho, se não, acabará se quebrando. Deixa eu te ajudar~.
Por alguns segundos, Masaru fechou os olhos. A chama pequena que usava para aquecer o fumo foi finalizada junto da decisão. Por fim, uma forte exalada entregou a resposta: — Muito bem. Aceito sua ajuda… mas com uma condição.
O sorriso peçonhento cresceu. — Diga~.
— Sua prioridade deve ser Hiromi. Se conseguir me informar tudo o que ela vem fazendo na academia, tudo o que descobrir, terá o meu aval. Mas se for vista, se Jin desconfiar de algo, estará por conta própria.
Kurori afirmou com a cabeça, satisfeita. — Então estamos de acordo.
Mas antes que a vitória dela se consolidasse, Masaru baforou e a encarou, firme. — E não pense que esqueci do garoto.
A mulher franziu uma sobrancelha. — Garoto? O que acabamos de analisar? Ah, então ele também mexe com você. Pensei que fosse indiferente àquela criaturinha elétrica. Afinal, parece que ele passa um bom tempo perto da sua filha, ao menos tem o interesse dela… isso não o incomoda?
Um riso áspero escapou de Masaru. — Hmph, Akemi merece cuidados também, sim. Mas que fique claro: ele deve ajudar mais do que atrapalhar. Sei que ele ainda não está pronto para acompanhar Hiromi, mas espero que ele não a atrapalhe por enquanto… No fim, torço para que um dia aquele rapaz aprenda o bastante para protegê-la por mim.
Kurori recostou-se de costas na parede da cerca, balançando o cachimbo de um lado para o outro, espalhando a fumaça. — Ora, ora… finalmente o mestre Masaru me revela onde guarda seus verdadeiros medos: sua filha… e aquele garoto. Interessante. Porém, não pense que farei seus desejos de tão bom grado. Eu também tenho uma condição.
O silêncio alheio era a permissão para mulher.
— Gostaria de passar mais momentos assim com você… Não me leve ao lado errado, mas sou uma moça mal olhada por superiores e suspeita para os alunos, é difícil conseguir contato, e nos dias de hoje, o ser humano não sobrevive na solidã-
— Trato feito — interrompeu Masaru, com ar de cansaço, permitindo que a fumaça escondesse a confissão que escapara de seus lábios. — Não precisa se aprofundar nas suas dificuldades nesta academia, são óbvias demais pra mim. Apenas me faça sentir próximo da minha família novamente. Quem sabe um dia eu a enxergue com outros olhos.
Inexpressiva, Kurori abaixou a cabeça, oculta por uma sombra que descia da testa até os olhos. Aparentemente, o corte em sua fala tocou em seus sentimentos de forma inesperada, mas não odiada. Sorrateiramente, os cantos de seus lábios se repuxaram devagar, demonstrando mais do que alegria: uma satisfação predatória, o sorriso de quem assiste paciente à própria armadilha se fechando. Para o bem? Ou para o mal? Impossível a compreensão, o que importava, era que a partir daquele terraço, surgia-se uma parceria inusitada entre dois cientistas que não se olhavam…
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