Capítulo 71 - Sob o céu estrelado, não há mentiras
No alto da escadaria do dojô, Akemi e Miya continuavam sentados lado a lado.
Olhos castanhos e inquietos fugiam do rosto da que contemplava o horizonte, mas voltavam vez ou outra, atentos ao menor sinal.
Os segundos de calmaria tinham propósito…
— Já reparou como o céu parece mais próximo quando estamos em silêncio? — perguntou Miya, encantada.
— Eu… nunca pensei nisso.
— Hihi, perguntei porque é curioso. Pra quem só consegue vê-las daqui de baixo, as estrelas podiam ser somente pontinhos de luz no escuro. Mas eu gosto de pensar elas guardam histórias… nossas histórias.
— E como você chegou nessa conclusão?
— Disseram-me uma vez que o céu é o espelho mais antigo do mundo, e nele, é refletido tudo aquilo que o coração finge esquecer, mas nunca consegue abandonar.
— Sentimentos ruins?
— Nem sempre ruins, mas sempre profundos.
Akemi sentia-se cada vez mais enredado, porém, por trás daquela voz serena, um rosto contava outra história. As estrelas tiravam o brilho dos olhos esverdeados que as observavam.
— Você… não parece feliz de olhar o céu. Suas lembranças não são boas?
— No momento, talvez.
— Seria melhor parar de olhar?
— É inútil evitar contato. Mesmo se fecharmos os olhos, as estrelas falam nos nossos ouvidos… e nunca há mentiras.
“Isso foi meio… estranho”, sem saber para onde aquilo o levaria, Akemi ajeitou-se no degrau. — Ookaay… Acho que tínhamos outras coisas para falar, certo? Sobre nós ou você.
— Pois é, não passamos muito tempo perto um do outro nos últimos dias. Mesmo assim, acredito que você descobriu partes da minha vida. Coisas simples, como preferências, trejeitos… mas pouco do que realmente importa para que possamos continuar próximos.
— Se quiser falar sobre, tô disposto!
— Hihihi… — Miya entregou seu sorriso ao garoto. — Você é humilde, não gosta de injustiça, e é tão curioso que nem mesmo o seu pânico o impede de arriscar coisas novas. É isso o que sei de você até agora.
— Isso era pra ser um elogio, hehe?
— Sim, quero realçar que você tem um bom coração. Afinal, os naturais desta capital são totalmente opostos às suas qualidades, Akemi.
— E você não é…
— Sim, eu sou de Toryu. Mas boa parte das minhas origens vieram de bem longe daqui.
A surpresa espontânea tirou a fala do rapaz.
— Poucas pessoas sabem por ser algo que me separaria dos outros. Mas no seu caso, sei que cedo ou tarde acabaria descobrindo.
— Olha, não sei se seria tão cedo assim. Sou meio lerdo nessas coisas.
— Hihihi, está tudo bem, não fique acanhado. Só presta atenção — Miya voltou a admirar o céu, suas íris finalmente refletiram as estrelas. — Meu sangue é dividido com um país problemático com Asahi.
— Medved!?
— Não! De onde tirou isso!? — Após encarar o rapaz, ela passou a observar os próprios pés. — Eu tenho ligações com Meilí.
“Meilí…” Akemi impressionou-se, mas logo voltou à realidade. — Ah, então isso explica suas roupas com esse estilo todo… “diferente”. Só que… você e principalmente seu pai não lembram o povo de Meilí. Ou seja…
— Este sangue meiliano veio da minha mãe. As roupas são um presente dela.
— Não é estranho você usar roupas de uma nação rival?
— Não as uso publicamente, somente quando estou sozinha ou com quem confio.
— Então você gosta de usar essas roupas.
— Além de bonitas, elas me trazem memórias que não quero e não consigo largar. É impossível não usar — disse Miya, apreciando a manga do kimono alaranjado.
— Entendi. Mas e aí? Como sua mãe nasceu em Meilí?
— Ela nasceu na família Huang…
— E-ela nasceu da família imperial!?
— Dos mesmos conhecidos por serem mestres incomparáveis da aura do fogo. Minha mãe veio ao mundo como a primeira filha da Imperatriz MoYan e seu consorte DaoYan.
— Sua mãe… era uma princesa?
— Além disso, ela surgiu como representante de uma nova linhagem ígnea que se iniciaria.
— Então você também é uma!?
— … Quem sabe…
— E você esconde isso dos outros? Como consegue? Aliás, como sua mãe cresceu sendo tão importante? Como ela te teve aqui?
— Calma, vamos por partes. Respondendo ao que importa, quando as forças de Medved cresceram e Meilí curvou a cabeça para selar uma aliança, foi a hora da minha mãe mostrar que jamais caminhou por trilhas prontas. Desde pequena, ela já incendiava os olhos de quem via sua aura que brilhava diferente. Não servia ser forte, ela coreografava o fogo com os punhos. Enquanto todos aproveitavam heranças, ela se esforçava para desenhar chamas que ninguém conhecia e reinventava o combate para as formas mais belas possíveis. Por tudo isso, colocaram no pescoço dela um colar com uma joia de topázio, o que se tornou um fragmento do coração que ela mesma tinha fundido em brasa. Daquele dia em diante, ninguém mais viu uma chama maior.
— Pra que ela pudesse ser forte assim, alguém a treinou.
— Ela teve a presença de vários mestres, mas nenhum a fez sentir que estava treinando de verdade… Até que ela conheceu uma pessoa.
— Sei pai?
— Não, um senhor que passou a morar no castelo sob cortesia da realeza. Dizia ela que foram momentos importantes, que se não fosse eles, cresceria completamente diferente.
— Consegue me dizer como era esse senhor?
— Um dançarino que usava técnicas ígneas para representar a vida. Todos eram fissurados nele. Mas a idade chegou e a fraqueza era inevitável. Ele desenvolveu Beribéri a um estado grave.
— Hm, uma doença comum, mas pra causar riscos, este dançarino tinha uma dieta horrível a base de arroz. O que fizeram com ele depois?
— Os Huang custearam todos os seus cuidados e o deixou repousar dentro do palácio. Nisso, minha mãe, ainda criança, vivia trancada nos aposentos imperiais e não conseguia ver pessoas novas. Ela decidiu conhecer o senhor.
— Devia ser horrível a sensação de solidão. Acho que mesmo sem ser de uma família nobre, entendo um pouco.
— Sim, aquele senhor também não possuía riquezas, mas era tão vivido que suas histórias levavam uma criança que só via paredes luxuosas e chamas às melhores das imaginações.
— O que ele contava a ela?
— Dança, mas baseado em paisagens, sentimentos, e fogo… Haviam ensinamentos que ninguém conseguia passar.
— Acho que posso imaginá-lo dançando.
— Esse era o desafio da minha mãe. O sonho dela era dançar como o velho dizia, mesmo sem liberdade, mesmo sem poder sentir o que era vida de verdade.
— Que sonho bonito. Nesse caso, ela conseguiu só com a imaginação?
— O tempo longe dos mestres e da família para tentar replicar o que o senhor fazia era o melhor proveito, embora alguns guardas flagrassem e suspeitassem do que estava acontecendo. Mas no final, a resposta era sempre a mesma: “É só uma dança.”
— O que ela aprendeu com isso?
— Aprendeu a enxergar melhor, sentir melhor, viver melhor. Todas as histórias que escutadas e todos os movimentos repassados foram misturados aos deveres de se tornar uma mestra das técnicas de combate do fogo e desenvolveram uma arte marcial baseada na imaginação incerta de uma dança aclamada por todos.
“Que profundo”, pensou Akemi, relembrando-se do que vira no dojô. — Essa arte marcial, era isso o que você fazia agora pouco?
— Exatamente.
— Sua mãe deve ser extremamente forte.
— Uma das melhores áuricas da história de Meilí, e uma bela mulher que aprendeu a construir o próprio senso do certo, nunca aceitando os dogmas dos ditadores e nem os grilhões1 da própria família.
— Fala da dominação mundial, né? Inimaginável como as pessoas chegam nessa vocação. É cruel até demais.
— Sim, e com isso em mente, minha mãe foi forçada a treinar para o exército de Meilí. Entretanto, mal sabiam eles que ela desejava um dia fugir.
— Uma princesa fugir do país? Ela tinha noção do que estava fazendo?
— Ela queria a paz entre as nações, e para começar, quis conhecer o outro lado da moeda.
— É aí que entra o seu pai?
— Hihi, exato. O papai nasceu em Asahi, e como integrante da família Miyazaki, herdou a aura ígnea, entretanto, nunca foi bom em combate. Seu talento é outro: a mente. Hoje, ele é um grande professor.
— E um conselheiro bastante arrojado…
— Disse alguma coisa?
— A-ah! Nada, nada! É-é… Como os seus pais se conheceram, hehe?
— O primeiro encontro deles? Bem, eram jovens, um pouco a mais da nossa idade. Meu pai, como destaque de ciências das academias que frequentou, foi mandado para uma missão de reconhecimento naval em território neutro, sem intenções de combate, eram poucos na embarcação. Na mesma ocasião, minha mãe foi escalada para uma fragata de interceptação, a primeira missão dela. Quando os navios se cruzaram… — Miya abaixou a cabeça, ficou difícil continuar.
— Mas isso é extremamente perigoso! O que deu?
— Mesmo que o corpo dela estivesse pronto… mamãe congelou assim que o combate começou. Toda sua concentração desmanchou no instante em que sentiu o sabor cru da guerra pela primeira vez. Quando o massacre de Meilí teve início, ela enxergou os asahianos como escudos frágeis, vidas prestes a se perder sem sequer ameaçar a paz. Tudo era muito diferente do que a informaram… Um ataque covarde transformou Meilí na mão que fere, e foi naquele abismo que minha mãe despencou de joelhos, sem saber se cerrava os punhos… ou estendia a mão.
— Ela fez uma escolha?
— O colar foi a opção. A fragata foi totalmente destruída. Meilí sofreu uma traição.
— Impensável, ela eliminou a própria tripulação!?
— Os meilianos derrotados foram nocauteados e largados aos restos metálicos da embarcação. Acredito que até hoje não sabem o que se passou na cabeça da minha mãe.
— Ela te contou?
— Haviam vozes entre os gritos… chamando-a. Conversas de alianças contraditórias, torturas, destruição de lares, famílias. Domínio de território. Ela só queria que o caos acabasse.
— E acabou gerando mais caos?
— Ela sabia que era muito inocente pra entender isso. É errando que se aprende.
— E o seu pai?
— Estava lá em cima… no setor de segurança do manche, observando tudo de longe. As chamas engolindo o convés, os gritos, os escárnios, e principalmente, a traição… Quando só restou uma meiliana no navio asahiano, os sobreviventes quase a lincharam, mesmo vendo com os próprios olhos o que aquela mulher havia feito. Os asahianos estavam tão apavorados quanto ela, cercada por todos os lados. Mas meu pai interviu, se meteu no meio da confusão, enfrentou a própria tripulação, defendeu a intrusa confusa e… conseguiu trazê-la pra cá.
— Isso tá começando a ficar inacreditável. Como a aceitaram em Asahi?
— Sob olhos cheios de pedra, preconceito puro, e uma desconfiança venenosa, meu pai não perdia o encanto no que presenciou e continuou protegendo a estrangeira com palavras. Entretanto, o governo imperial asahiano e os líderes dos Miyazaki somente tinham fome nos olhos, e por ganância, cobiçaram as técnicas da minha mãe como se fossem relíquias sagradas, como se pudessem arrancá-las à força ou comprá-las com títulos. Só que aquela arte não se aprende com um manual. É uma chama que se cultiva desde o berço, um idioma falado com o corpo que leva uma vida inteira aos ecos corretos. Os treinos até começaram. Mas só uma mulher continuou capaz de dançar com a própria aura em chamas e moldá-la com a alma de uma guerreira.
— Seus pais se casaram em pouco tempo?
— Eles dividiram pensamentos e forças até se casarem. Minha mãe tinha uma gratidão eterna pelo zelo do meu pai, e abandonou o sobrenome antigo para renascer inteira sob uma nova identidade.
— Ela entrou para o exército asahiano?
— Ao liderar e vencer inúmeras batalhas, a intitularam como marechala por conta da força que ninguém entendia. Já meu pai ficou como subtenente.
— Não suspeitavam do governo assim como você?
— Eles sentiam que enquanto o povo celebrava a paz momentânea, feridas seguiam abertas, sem curativo, sem explicação. Quando os dois tentaram investigar, descobriram que só tinham mudado os nomes. Os mesmos podres de sempre… escondidos atrás de medalhas e promessas. No fim, era tudo teatro. Uma farsa nojenta orquestrada por cima.
— Acho que descobri de onde vieram essas ideias malucas de sair por aí bisbilhotando.
O comentário extraiu um sentimento nostálgico. — Mereço crédito por ao menos ser corajosa. Ela sentiria orgulho disso.
— Concordo… — Pensativo, Akemi também baixou os olhos. Havia tempo que uma pergunta consumia sua mente, mas depois tanta conversa, a resposta parecia óbvia. — Onde está a sua mãe?
Nenhuma resposta.
O céu estrelado pareceu mais distante de repente.
— Ei, você nem chegou a dizer o nome dela! Mas, pensando bem… Se estamos falando de uma marechala com poderes de fogo… Só existiu uma pessoa assim nos últimos anos… — Naquele momento, Akemi abriu a mente, mas seu rosto retraído escondia o que acontecia nos arredores. A suspeita só floresceu quando ele virou o rosto. — Miya? — Sua voz saiu apagada, e o retorno do chamado seguia oculto.
Algo não estava certo. Miya, antes envolvida pela narrativa que lhe deu várias emoções e lembranças, esvaziava o semblante: seu foco se dispersava nos degraus e o céu não conseguia alcançá-la mais.
“Ela ficou… vazia?”, questionou Akemi, que irritado pela falta de resposta, chegou para o lado no intuito de buscar algo nos olhos da outra, alguma fagulha, alguma expressão que explicasse aquela ausência repentina, mas só encontrou um espelho rachado refletindo pensamentos que não pertenciam a ele. — Miya…
Akemi tirou uma das mãos do apoio para tentar tocar o ombro de Miya.
Seus dedos chegaram perto.
Quase a encostaram.
Por pouco…
Um sopro atravessou os espaços entre suas falanges.
Não foi uma brisa comum. Não veio da noite, nem da natureza.
Foi um sopro familiar, autoritário, tão indistinto quanto um trovão.
Paralisado, Akemi sentiu a pele do braço arrepiar e o coração contrair antes de bater com força.
A presença surgiu sem aviso, mas aparentemente, estava ali fazia tempo, como uma montanha espiando cabritos imprudentes no meio do vale.
Olhar para saber quem era? Não, a densidade ao redor já denunciava.
Apenas uma pessoa calava o mundo daquele jeito, para logo após, despertá-lo com a força da própria voz.
— Ho ho ho… Vejo que temos alunos bastante astutos por aqui. Estão usando o estabelecimento para treinar? Ou só estão aqui para tirar uma boa prosa?
Akemi sentiu as costas suarem, sua garganta travou.
O que poderia ser uma simples visita, acabou sendo um aviso, ou pior: a consequência direta de regras quebradas.
Só restava aos dois “delinquentes” encararem a realidade…
- Correntes ou algemas usadas para prender os pés de uma pessoa, limitando seus movimentos. Neste contexto, refere-se a ideais de teor maléfico.[↩]
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.