Capítulo 72 - O vento subjuga
Pelo susto, pela culpa, e principalmente pela revelação de que estava sendo observado, Akemi sofria quieto com a sensação de ser pego no erro, e não era a primeira vez.
Viver cercado pelo avô que o espreitava de perto o ensinou a identificar quando o perigo vinha vestido de autoridade, entretanto, o detalhe de que seu criador estava substituído por alguém poderoso trouxe um gostinho extra de adrenalina e pavor.
Correr? Jamais. Mentir? Seria inútil.
A mão que tocaria um ombro alheio continuava suspensa, a ousadia e o castigo a impedia de finalizar o gesto, que por si só, já seria outro delito diante de um superior.
Akemi sabia que estava totalmente exposto, sequer se movia. À sua frente, Miya permanecia com o rosto baixo mergulhado na sombra, afetada por sentimentos negativos desde a nova chegada.
— O que foi? Não sou bem-vindo em uma das instalações da minha própria academia?
— A ASA não é sua — retrucou Miya, afiada e certa do que disse.
— Oh? Ho ho ho… — Dois passos avançados fizeram a figura oculta aparecer diante do garoto. De mãos cruzadas nas costas, Jin involuntariamente comprimiu o ar ao redor, tornando sua presença sufocante como sempre; a farda branca reluzia os detalhes dourados e verdes; a barba grisalha e o curto cabelo rareado deixavam claro que o tempo o marcava sem consentimento. — Senhorita Miyazaki, confesso que jamais esperei brandura na língua de seus parentes. Estou apenas de passagem, vim recolher alguns pertences e… registrar algumas ocorrências.
— Engraçado, achei que estaria liderando seu exército sedento por morte na fronteira de Asahi neste exato momento.
Akemi via o clima esquentando. “Por que esse tom sarcástico agora!? Ela enlouqueceu!? Esqueceu completamente o perigo em que estamos!?”
A conversa piorava a cada deboche trocado.
— Hm… — Jin analisou o comportamento da aluna e chegou a uma conclusão. — Então você não me esperava aqui. Achou mesmo que eu não voltaria mais? Quanta imprudência…
— Imprudência é usar um cargo falso pra mascarar crimes de guerra. À vista disso, já encontrou quem ocupe seu posto na academia nos próximos meses?
— Desconheço do que diz, meu nome permanecerá aqui.
— Ganancioso demais pra dar crédito aos que limpam a sujeira por você?
— Meu trabalho é muito bem executado por mim… e sabe de uma coisa, garota, você se esbanja na hipocrisia. Sempre buscou mais do que lhe foi dado, isso se enquadra na ganância que tanto abomina. Mas convenhamos, te falta a sensatez de um Miyazaki. Trocar grande parte do prestígio da própria família e do nosso império por teorias fajutas? Ho, isso sim é totalmente… infortúnio.
Ambos os jovens se calaram.
— Aliás, caro Aburaya… pensei que tivéssemos um acordo. Em vez disso, descubro que você não só segue perto de quem justamente lhe proibi contato, como também divide o mesmo alojamento que a minha neta. Seria coragem ou falta de juízo?
O suor frio de Akemi escorria como se seu próprio corpo tentasse escapar dali: seus lábios tremiam e buscavam palavras que não existiam. “De novo… De novo eu fico parado, sem conseguir agir! Eu deveria fazer alguma coisa…! Mas o que impediria um shihai como ele!?”
Jin dava um passo a cada pergunta. Tão instável quanto o vento que o seguia, só sua voz. — Vamos, Aburaya, que reação esperava de mim? Orgulho pela sua astúcia? Desapontamento pela sua ignorância? Ou nojo por essa sua covardia barata de nem ao menos me encarar!? — A última pergunta bateu como um tapa no pescoço. Akemi fechou os olhos para conter o pânico que se formava, pois entendeu que o marechal perdia o controle da calma.
Mas ele estava acompanhado.
— Você é indigno do olhar dele, Diretor — cravou Miya, com a frieza de quem sabia onde doía. Na penumbra que cobria parte do rosto, ela entrou no tabuleiro de provocações do superior, que por ironia, cambaleou no próprio jogo.
— Ugh… já te contaram o quão insolente é, garota!?
— Ke ke ke… Não se irrite. Quando os planos do governo maquiados por essa sua cara feia ruírem nas minhas mãos, você vai desejar que Asahi tivesse parado no tempo em que realmente tínhamos paz e as mãos isentas de sangue inocente.
— Ho ho ho. Quanta baboseira — Jin curvou-se, devagar, até que sua sombra aparecesse no ombro da jovem; seu sussurro, junto do vento, desceu como um quente veneno. — Quem tu pensa que é para achar que pode intervir na justiça do Exército Asahiano?
— Sou quem irá restaurar a verdadeira paz desta nação. De dentro pra fora. Assim como minha mãe quase fez… antes de vocês a assassinarem.
Passando segundos quieto, o militar retificou a postura com o incômodo de quem já tivera aquela conversa antes, revivendo lembranças que preferia deixar trancadas. — Hm… fala da Marechal do Fogo. A estrangeira. Poderosíssima, sem dúvida. Porém, não foi páreo perante o adversário que enfrentamos.
Miya enrijeceu-se e encolheu os ombros: uma fisgada aguda reabriu uma antiga ferida interna, forçando-a a conter a ira nos dentes. — Não me venha com essa… Vocês a mataram!
— Negativo, todos sabem que aquela mulher correu atrás do próprio fim.
— Sua cara nem treme… Foi você quem nos colocou naquela situação, deveria estar preso!
Acusado, Jin sentiu-se insultado. — Modere o tom que usa, Miyazaki. Não sou um de seus íntimos, tampouco os adversários que deva ter cruzado por aí… — Ele se inclinou novamente para devolver a afronta na mesma moeda. — Se é que algum deles teve o privilégio de ver até onde vai essa sua aura enganosa.
— Quer pagar pra ver?
— …
Pelo campo de treinamento, construções destruídas compunham um cemitério de batalhas simuladas. Todavia, Akemi testemunhava algo longe da encenação.
“Não existe escolha segura quando se está entre monstros.” A voz ecoada na mente do garoto não vinha dele mesmo. Isao o disse uma vez que oficiais de alta patente apareceram em casa para fiscalização. “Quando o martelo cai, um prego frágil nem tem chance de reagir. Nessas ocasiões, só nos resta aceitar os nossos limites e destinos calados. Nunca devemos enfrentar o que não vencemos, devemos esperar.”
“Então, por que ela o enfrenta?” perguntou-se Akemi, observando de um lado o rosto escondido da filha do fogo, e do outro, a curvatura imponente do vento em pessoa acima de uma subordinada1.
A atmosfera tensa transbordava a ira de Jin. Pela primeira vez, o militar cessou o cinismo. Seus punhos cerraram-se.
Se passaram segundos demais para quem revidaria somente com palavras. A quietude dele se tornava perigosa, do tipo que precede massacres.
O vento circulou num padrão dissonante.
wosshhh… FPWOSSHHH!!! Um vendaval transparente tomou forma num turbilhão feroz e explodiu pelas costas de Miya. O estrondo chegou pouco antes da reação.
A garota foi disparada como se tivesse sido atirada de um canhão. Quando seu corpo tocou a terra seca, iniciou-se uma sequência brutal de rebatidas e giros incontroláveis, até que desaparecesse por completo na nuvem espessa de poeira erguida.
Akemi levantou-se no último degrau e gritou sem pensar. — MIYA!!! — Seus olhos buscavam freneticamente por qualquer sinal da garota entre os vestígios de destruição na terra aberta. A paisagem torturada consumia sua esperança. “Cadê ela!? Não, não, o que acabou de acontecer!? Foi uma explosão!? Um ataque!? Eu mal vi!” O pane chegou primeiro nos pensamentos, depois, nas pernas. O colapso resultou em berros. — MIYAAAA-!!! A-agh!
O vento teve um novo alvo.
Um aperto súbito estrangulava a garganta de Akemi, arrancando-lhe o fôlego num único instante. — Ugh… aah! — As mãos do rapaz subiram ao colarinho, tateando, arranhando, vasculhando por alguma corda ou fio, mas não havia nada, só o vácuo sufocante do ar pesado feito concreto que o erguia devagar, centímetro por centímetro, até os dedos dos pés deixarem o chão. A cabeça latejava, a visão embaçava, e o desespero crescia exponencialmente.
“Ele vai me matar! Vai me matar só por estar aqui!” O som da própria respiração se transformava num lamento das lágrimas que escapavam por reflexo. A dor aumentava a cada segundo sem ar, e a voz que se seguiu agravou a situação.
— Quando te vi pela primeira vez, confesso que me alegrei… — A fala arrastada de Jin soou como açoite. — Um garoto peculiar, tímido porém singelo, com uma aura instável porém promissora. Planejava receber-te de bom grado, no entanto, fui obrigado a aceitar o pedido sujo de uma Miyazaki. O que ganhei? Um áurico medíocre, covarde, ridículo, e que ainda por cima, se atreve a desrespeitar a minha soberania.
Com a visão oscilando, Akemi notava a sombra abaixo de si. Ainda assim, nada abafava o ódio de quem o rodeava.
Jin afastou-se lentamente, como se passasse. — Você não passa de um garoto perdido, facilmente dobrado por discursos heróicos e esperanças utópicas. Uma marionete com o fio da glória amarrado ao pescoço. Se não fosse por antigos favores e a bendita nobreza, eu já teria me livrado de você e da sua coleguinha petulante.
— C-coleguinha? — O adjetivo despertou no garoto uma raiva enjaulada, mas impotente. Abaixo do medo, emergia o desejo de lutar. A voz da mente saía sofrida e cheia de ódio. “Urgh! Nunca imaginei que seria humilhado por quem um dia foi meu ídolo… Afinal, o que ele quer de mim? Se ele é tão forte, por que atacaria alunos desse jeito!?”
A voz de Jin soou próxima. — Tem ideia da sorte que tem, Aburaya? É uma sorte frágil, passageira, assim como você. Então, mesmo que eu precise sair de cena por algum tempo, acredite, este está longe de ser nosso último encontro. Contudo, entenda que vocês dois são irrelevantes, formigas numa colônia que se alastra. O mundo inteiro será Asahi, e vocês… serão os únicos descartados da história dos vitoriosos desta academia.
Em meio às dificuldades, Akemi sentia o zunido em seus ouvidos se unindo ao borrão que distorcia sua visão. “Ele fala como se tivesse escrito a minha vida e soubesse toda a minha trajetória até chegar aqui. Ele sabe demais, demais mesmo. Mas… não consigo pensar direito por causa dessa droga de ar!”
— Por fim, escute-me bem. Se deseja evitar tragédias que não poderá impedir e muito menos suportar, saia do caminho de seus líderes. Aceite. Obedeça. Sobreviva. Proteja os que você ama…
“Isso… foi uma ameaça para além de mim?” A consciência escorregava por entre os ossos do garoto, e no vácuo que deixava, uma vontade voraz tomava, rugindo por dentro da carne, gritando que bastava, que nunca mais, nunca mais, abaixaria a cabeça para qualquer domínio. — Você… não é meu líder…
A pressão do ar aumentou.
“Eu… vou apagar…”
Mas antes que a escuridão o engolisse por completo…
— Ei, velho covarde! Solte-o agora mesmo!
Sob o torpor, os olhos de Akemi viram uma silhueta no início das escadas.
Era Miya, de pé, com os trajes sujos de terra e cortes nas mangas. Seu semblante inabalável definido pela seriedade escondia o vulcão que borbulhava no interior, ameaçando transbordar em chamas.
A atenção que queria, funcionou.
Akemi caiu sentado no degrau com o peso da própria vida e imediatamente tombou para o lado, tossindo como se tivesse renascido. — Kagh! Cof! Cof! Cof…! Cof, cof…! Hh… ughh…! — Lágrimas escorreram pelo seu esforço. A tontura continuava.
O vento deu trégua temporária aos tormentos que causava, desafiado por algo tão impontente quanto.
Vingança…
Jin atravessou o corpo do caído sem tirar os olhos da reerguida. — Ho ho… Sabia… — Ele ria contidamente enquanto vagarosamente descia pelos degraus. — Era óbvio que não me livraria de você tão fácil.
— A resistência que herdei deveria ser respeitada — respondeu Miya, firme, fundida com a dor de não ter e o orgulho de possuir.
— Oh… então você realmente deseja me confrontar? Ho ho, está aí a prova de que você é indistinta de sua mãe.
Atingida pelo sarcasmo do marechal, Miya entrou em guarda, apertando os punhos com tanta força que seus dedos rangeram. — Há tempos eu queria saber como é bater de frente com um Shihai Grau SS.
Um breve silêncio antecedeu o “Tsc” de Jin ao parar no quinto degrau e desviar o rosto. O riso desapareceu e deu lugar ao desprezo. — Deveria se envergonhar, está lutando contra alguém em desvantagem clara. Não posso eliminá-la, pois embora contestada, ainda tem sua relevância. Membros da família Miyazaki são subversivos2, evitarei desestabilizá-los… — A ira em sua compostura rompia com seu senso político da autoridade, e inclusive, sua paciência. Restou-lhe revelar suas verdadeiras intenções ao encarar. — Mas nada me impede de te deixar tão lesionada que desejará nunca mais cruzar meu caminho, ingrata! — O vento o obedeceu.
WOSSHHH!!! Uma repentina ventania deslocou o espaço diante de Miya numa força brutal, espalhando terra em todas as direções.
A garota reagiu cruzando os braços diante do rosto no instante exato em que a onda de choque a alcançou. O impacto a recuou metros, contudo, não a derrubou.
Em pé, uma posição alertava que queria lutar novamente: pernas afastadas e dobradas a 90° no limite do suportável. O tronco baixo e ereto alinhava com a verticalidade de um bambu. A mão esquerda avançada ocupava o centro da visão em guarda: dedos retos, unidos e apontados ao oponente criavam a sensação de que a ponta de uma asa aguardava. A outra, recolhida ao lado do peito, seguia igual, pronta para o contra-ataque.

— Você realmente não se abdicou desses teatros ridículos?
Miya se recusava a responder, pois sabia que nada nela era teatral. Ela apenas esperava, deixando que seu adversário falhasse nas tentativas de diminuí-la, irritando-o.
Akemi, estável e caído no alto dos degraus, via o que acontecia abaixo. As lágrimas continuavam a queimar em seu rosto, mas seus olhos, mesmo embaçados, captavam o brilho do momento. “Ela conseguiu ficar de pé…”
A filha do fogo desafiava o próprio ar com as chamas que nunca havia mostrado, transpassando em seus olhos o tempo, as ordens, os abusos e as agressões feitas por aquele sujeito fardado.
Com a resistência encarnada, Miya escolheu lutar…
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