Capítulo 73 - A sabedoria prepara
As longas sombras das ruínas do Campo de Treinamento 3 separavam os tons da terra batida, ora iluminada pela lua, ora escurecida por onde as estrelas não viam.
No alto da escadaria do dojo, Akemi se reerguera, com a garganta raspada pelas tosses recentes. Suas pupilas oscilavam entre a imobilidade de Jin nos degraus de mármore e Miya no solo terroso abaixo.
A poeira passada se dispersou no ar, os leves sopros do vento balançavam os rasgos do kimono laranja e criavam um contraste: diante de uma farda impecável, os vincos amassados da vestimenta marcial definiam a quem pertencia a superioridade.
Akemi apertou os dentes, relembrando histórias contadas: “Um marechal que esmagou um exército de mil homens sozinho, um áurico capaz de dobrar o vento ao ponto de deixá-lo espionar pelos batentes, um Shihai Grau SS que sustentou horas de confronto direto contra a maior ameaça vinda de Medved e influenciou diretamente no fim da última guerra de Asahi… Por que Miya o confronta?”
Além de injusta, aquela luta seria uma afronta ao passado e futuro de um militar renomado.
Entretanto, Akemi clareou a mente quando visualizou a garota suja e machucada mantendo-se inabalável em sua postura. A resistência física e a vontade eram daquelas que não precisavam provar nada, daquelas que o próprio valor era conhecido até mesmo diante do impossível.
“Ela está concentrada ao extremo. Certamente não teme ser vencida. Só que, logo ela lutaria só pela vitória? Logo ela que diz sobre sempre evitar violência e buscar a paz sem causar dor?”
Entender o comportamento que via era um desafio.
Lutar contra um superior já seria loucura, mas acima disso, quebrar os próprios ideais pacíficos a troco de vingança ou respeito? Isso seria um escândalo contraditório.
Porém, Akemi, que de longe só podia observar, buscou além.
“Não… Ela não deve estar lutando pela vitória, nem por mim, e muito menos por si mesma. Sinto que há algo obrigando-a a lutar. Mesmo que eu esteja sem entender direito o porquê dessa obrigação e nunca tenha a visto em combate, algo em mim acredita que ela possa se sobressair. É como se algo tivesse a empurrando e motivando por conta própria… Nenhum aluno estaria tão convicto de encarar um marechal atoa… Ainda assim, pelo o que esse risco vale a pena?”
Jin desceu todos os degraus; a noite o iluminou quando seu coturno prateado tocou a terra. A ameaça estava impregnada. — Ainda tem chance de recuar, garota. Nada que seguir daqui existirá. Nenhuma testemunha além de nós saberá do que ocorreu. Você sairá perdendo de qualquer maneira, mesmo que seu orgulho negue.
Miya reforçou a base, inclinando os joelhos até os músculos das pernas marcarem sob a calça. A rigidez das mãos aumentaram. A respiração? Imperceptível. O foco, absoluto.
Jin suspirou, por pena… ou raiva. — Você é muito corajosa…
woooshhhh…
O vento escondeu seu dono.
O perigo invisível retornou sua ronda ao campo.
Miya encurtou as pálpebras. — Respira, Hiromi… — A consciência acesa a retornou décadas, vidas e almas atrás. — Você já enfrentou o vento antes…

A melodia de um erhu encantava a manhã outonal sob o céu de ouro.
Abaixo de uma grande árvore momiji carmesim, um círculo formado por pequenas pedras acumulava as folhas vermelhas que caíam, demarcando uma bela área de treinos.
Nas proximidades, um riacho separava o campo rubro de uma mansão luxuosa. Paredes claras, bases de pedregulho e telhados escuros com detalhes em cores quentes complementavam a residência situada na clareira de uma floresta de pinheiros…
No centro daquele círculo de folhas, uma criança vestida numa túnica laranja movia-se feroz e calma: braços curtos estalavam as mangas com socos no ar; os pés precisos alternavam avanços, travadas, retornos e chutes.

O passo final aterrou-se nas folhas.
A menina virou-se para trás e manifestou seu cansaço. — Mãããe! Eu não quero mais treinar sozinha! Eu já tenho sete anos e tô passando da hora de aprender a lutar contra alguém de verdade!
A indignação na voz infantil perdia credibilidade, pois a mãe, de olhos fechados e sentada sobre uma das grossas raízes do momiji, tocava o erhu sem preocupação. O cabelo solto com longas e volumosas mechas nas laterais, preto até o pescoço e vermelho até a cintura, reluzia as luzes do sol que também batiam na túnica rubra.
Era claro o contentamento da mulher, o som do instrumento acompanhava o cair das folhas ao chão, exatamente o que ela queria sentir.
Mas a garota queria atenção. — Mãããe!
A música parou. A satisfação virou seriedade e revelou o quão idênticos eram os olhos da mãe com os da filha.
— O vento é o primeiro obstáculo da chama. Se não superá-lo, será incapaz de enfrentar qualquer adversário. Pode parecer simples, mas é tão complexo quanto tocar este instrumento com a mão canhota.
— Mas eu já superei! Olha isso! — Após seu retruco rouco de irritação, Miya mirou o riacho, adiantou um pé e recuou o punho. O sol filtrado pelos pinheiros incendiou os grandes olhos da pequena. Num milésimo, o campo inteiro segurou o tempo. — Raah! — O soco explodiu, liberando uma rajada colossal: fundindo o laranja e o amarelo ao brilho dourado, as chamas formaram um jato linear que queimava as folhas suspensas, cruzava o riacho e parava na outra margem, balançando os galhos de todas as árvores próximas.
O vento em sua naturalidade era incapaz de alterar a trajetória.
As labaredas cresciam por si só, mantendo a voracidade da linha de fogo. As folhas do momiji pareciam moedas de ouro. O riacho refletia a luz como se fosse sagrada.
Quando Miya encerrou as chamas e voltou-se à mãe, nada mais foi dito, as chamas falaram por ela que o vento foi devidamente superado.
O único movimento da mãe era balanço das mechas sob a brisa quente deixada pelo fogo. Entretanto, apesar da neutralidade, um sentimento inesperado crescia.
— Pft! — Um riso baixo escapou e curvou o corpo da instrumentista, o erhu quase foi derrubado. A emoção incontida se multiplicou à risadas sinceras. — Ahahahah…!
Ofendida, Miya enrubesceu1 de vergonha. — Qual é a graça!?
A que ria limpou o canto dos olhos e se entregou com gentileza. — Ai ai, me perdoe, em quase trinta anos, nunca vi uma criança com tanta sede de batalha.
— E-eu ainda não entendi o que é engraçado!
A doçura materna continuava, mas havia uma camada sob os olhos: melancolia.
Restou à mulher repousar o erhu sobre a raiz larga da árvore, levantar-se e dar passos calmos até a filha.
As folhas vermelhas pareciam abrir caminho.
Retornando à inocência, Miya desconhecia o que estava por vir quando sua mãe se agachou para que a olhasse de frente.
— Você cresceu muito, Hiromi, e sua aura cresceu com você. Entretanto, sinto em te dizer que ainda está longe de ser minha sucessora.
Escutar aquilo várias vezes fez a garotinha descontinuar a troca de olhares. — É que você não me deixa passar pro próximo estágio! Todos os meus primos estão acima de mim, mas eu sei que sou mais forte que eles mesmo sendo nova!
A mão delicada nos ombros da filha queria repassar a confiança materna.
— Hiromi… Não é pela sua idade, força, ou parentesco. A imagem que desejo em você… ainda não existe.
A frase calou ambas por dentro.
— Eu… não entendi…
A mãe fechou os olhos para que refletisse. “Como posso esperar que minha filha se torne quem sou… se nem sei quem sou?” pensou ela; quando levantou-se, alisou as vestes. — Não há necessidade por entender isso agora, Hiromi, apenas saiba que você nunca será a culpada. Continue treinando e foque-se no aprendizado de hoje. Te ensinarei a superar o vento da forma correta…
O canto de uma rolinha completava os sons da floresta, suave entre o barulho da correnteza do riacho.
Pisando nas folhas vermelhas, a mãe realizava voltas ao redor da filha; as mãos escondidas atrás da cintura e o queixo erguido mostravam que a própria comandava o ambiente. — Antes de enfrentarmos o inimigo, é preciso escutar o que nos cerca. Ar, terra, água… todos os elementos convergem ao fogo.
Hiromi inclinou a cabeça para o lado. — O que isso tem a ver com superar o vento?
A mãe parou em frente à filha e de costas ao riacho; quando passou os dedos pela parte traseira do obi2, puxou algo com um rápido movimento.
Chrak!
Um grande leque abriu-se; as folhas lançadas deixaram um vão cônico no chão vermelho.
Olhos juvenis brilharam.
— Woooah…
O objeto era maior do que o convencional, feito de um material reluzente, carmesim e detalhado com ouro nas bordas. Parecia forjado para cerimônias.
A menina saltitava em torno da mãe, encantada com o brilho amarelo que o leque refletia do sol. — Que lindo! Parece coisa de princesa! É seu, mamãe? Foi você quem fez? Vai usar isso no treino!? Vai me ensinar a lutar com um leque de fogo!?
A mãe cruzou o leque fechado à frente, no caminho da filha. — Pensa que este leque serve para lutar?
Afrontada pelo tom responsável, Miya parou. — Hm… não serve?
— Talvez. Mas hoje, serve para compreender. Quando eu tinha quase a sua idade, foi ele quem me ensinou a lidar com o vento, em um lugar bem longe daqui.
— Onde o céu é cercado por vulcões?
A mãe assentiu com a cabeça. — Aquele calor forjou minha aura, mas o vento foi um dos mestres que me ensinou a controlá-la, quanto a este leque, um antigo companheiro me auxiliou.
— Por que você o guardou por tanto tempo?
— Porque ele não está apto a ser passado adiante, mas está pronto para te ensinar na prática.
— Você lutará contra mim!? — Miya transbordava animação nos pulos.
— Haha… você é esperta, minha menina, mas, me diga a verdade… acredita mesmo que já superou o vento?
— Sim! E eu vou te provar de novo agora! — A rebatida sem pestanejo foi acompanhada de uma guarda.
A mulher ergueu a sobrancelha, mas seguiu fiel ao papel que representava. Rapidamente, um de seus pés deslizou pelas folhas, descendo seu corpo com rigidez e graça: a perna esticada distanciou-se ao lado enquanto a outra dobrou-se na direção oposta; quando a mão livre tocou o chão de folhas, a ocupada afastou-se e abriu o leque naquele mesmo som astuto. A alta velocidade do movimento deu seguimento ao sopro do fogo. Fwoush! A chama engoliu a mãe, e em menos de um segundo, nada restou diante da filha.
— Hã?
Repentinamente, uma forte brisa soprou. Ffup!
Os cabelos curtos da menina foram balançados adiante, causando um encolher de ombros.
Virando o rosto devagar, Miya viu a mãe abanando o próprio rosto com o leque com um ar debochado refrescando seu rosto.
— Achei que tivesse superado o vento.
O rubor queimou a pele da criança. — I-isso não valeu! Eu não tava esperando você usar a sua aura assim!
O semblante da mãe endureceu sem perder a compostura.
— Não espere previsibilidade ou justiça do vento. Piedade? Nem pensar. Quando ele decide agir, derruba moradias, devasta florestas e potencialmente muda o curso de vidas. Ele ataca quando bem entende, e o mínimo que você hesitar, será tarde demais.
Fwoush! A chama a absorveu novamente.
A espertinha não se deixou enganar: girando no mesmo instante e rangendo os dentes, seu punho foi disparado com tudo na retaguarda, cobrindo os arredores de calor. — Raah! — As chamas ferozes da jovem atacaram como antes. Porém, mais uma vez a brisa a traiu pelas costas; e além dos cabelos balançados, trouxe um brinde: um golpe de leque no topo da cabeça.
Tuc!
— Aiii! — Miya levou as duas mãos ao couro cabeludo e virou-se, os olhos úmidos e a boca aberta tremiam. — Por quêêê-?!
— Shh, shh shh, nananinanão, sem atacar — respondeu a mãe, no mesmo instante da pergunta.
— S-sem atacar? Mas você tá me atacando pelas costas! E ainda me bateu na cabeça! Doeuuu…
— Estou te ensinando e te prevenindo. Você ainda tenta queimar o vento, mas isso é inútil. É arriscado confrontar o que não se pode ver, mas atacar o que não se pode tocar é impensável.
— Mas você tá usando as habilidades pra ficar invisível! Eu não sei isso ainda! É desvantagem!
— Hiromi, mesmo que soubesse, não seria as utilizaria nessas circunstâncias. Intangível contra intangível não gera resultados. O nada não machuca o nada.
— Você tinha que parar de falar difícil e me ajudar logo a dominar a chama eterna.
A mãe curvou o tronco só para que pudesse acariciar o rosto da filha, amorosa. — Minha querida… os dons da chama eterna vão brilhar em ti, e nesse dia, talvez você entenda o que significa poder, para que no futuro, possa usá-lo na hora certa e pelo motivo correto — as chamas a tomaram outra vez; o som correu pelas árvores.
Miya tentou virar, mas o vento veio de outro lado… depois do outro… de cima, por baixo, dos lados. As ventanias subsequentes superavam a potência das antecessoras.
Com o cabelo em todas as direções, a pequena rodopiava em falso. Folhas batiam no rosto, nos braços, nas pernas. Mãos levantavam em vão para se defender, o vento escorria pelos dedos, zombando.
Cada segundo desorientava, até que um tropeço nas próprias pernas definiu uma queda certa, contudo, outro sopro evitou-a. — Aaaah! — Lágrimas iminentes não eram de dor, era impotência. “Eu não posso usar fogo… O que eu faço!? Isso não é justo!”
Finalmente, a ventania acabou.
Enquanto folhas despencavam num balé silencioso, Miya, além da bagunça no cabelo, mal as enxergava pela tontura. Atrás dela, uma presença atenta escurecida pelas sombras a observava.
— Se continuar assim, será devastada em sua primeira batalha.
A tontura girava nos olhos da pequena acanhada.
— Então como luto contra o que não vejo?
— Procure-o, encontre-o, toque-o, e só então, quando souber onde ele está e o que é… desvie-o.
— Desviar… ele? — Embora o rosto estabilizado, Miya virou-se com dificuldade. — M-mas eu sou uma áurica da chama… não do vento. Como quer que eu controle algo que não tenho controle?
A mulher sorriu com calma, sentida por memórias passadas… ou talvez futuras. — Eu sei muito bem das suas capacidades, minha querida. Mas sei ainda mais que… um dia, quando a vida soprar sobre você, será esse ensinamento que impedirá a sua queda. Por isso, quero que ouça bem. Não fuja do vento, nem lute contra ele, procure-o antes que te encontre, veja-o antes que venha, toque-o antes que te atinja, e conduza-o para onde não fere.
— E… e-e se eu errar?
— Tente de novo, e caso se sinta incerta de continuar, não tema fazer o que te pedi. Recue antes que seja tarde.
A feição singela da mãe tentava acalmar a filha. Demorou, mas surtiu efeito.
Miya extravasou sua animação. — Certo! Vou dar meu máximo pra aprender tudo e usar na hora certa! Prometo que vai se orgulhar de mim quando chegar o meu momento, mamãe!

— Meu momento chegou… mãe.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.