Índice de Capítulo

    Feixes amarelos atravessando um horizonte em breu: essa era a visão de Miya, sentindo o calor por trás das pálpebras até que lentamente abrisse os olhos.

    O teto de madeira iluminado pelo grande lustre, o aconchego de uma cama e a maciez de um kimono hospitalar branco determinavam o lugar.

    “Enfermaria?”

    Para que se acomodasse, Miya pousou a mão sobre o lençol. Todavia, seu corpo inteiro travou no mesmo instante: a dor e a rigidez abalaram seus ossos pelos impactos de vendavais poderosos, uma reação dolorosa, mas suportável.

    A garota respirou fundo, e durante o esforço para que ficasse sentada na cabeceira da cama, sentiu um peso sobre as pernas. Quando olhou para suas coxas, viu Akemi, sentado em uma cadeira ao lado e repousando a cabeça afundada nos braços cruzados. Os cabelos desgrenhados sobre o rosto cansado denunciavam o sono evidente.

    Um leve rubor ascendeu nas bochechas da recém-desperta. A mão delicada ergueu-se, cogitando afastá-lo, porém, caiu de volta ao lençol. A decisão foi apertar os olhos por um segundo, forçando a recomposição da expressão e o foco na batalha passada. “Por anos sonhei em me provar contra alguém daquele nível, ainda mais contra aquele criminoso de guerra que chamam de marechal.”

    Orgulho contido.

    “Só que… talvez eu tenha exagerado. Por quanto tempo Akemi está aqui esperando? E se ele se feriu naquele momento?”

    Miya afundou a nuca contra a cabeceira e tentou afastar a culpa que roía sua mente. O contraste entre a exaustão da batalha e a calma suave da respiração de Akemi tiraram um desabafo do fundo da alma da garota. — Haaah, perdoem-me. Fui egoísta em um momento que não percebi a sensibilidade. Em troca de intuições pessoais, causei preocupações demais. É tudo minha culpa.

    Outra voz, precisa e familiar, respondeu. — Pois, diga-me, o que aconteceu lá?

    Próxima à parede, a voz veio da esquerda de Miya, que não precisava virar o olhar para perceber a presença de seu pai recostado em uma bancada de madeira.

    — Eu não tinha intenções de gerar conflitos. Estávamos isolados em um local que ninguém frequenta no momento. Eu tinha tudo sob controle, informações demais, mas pelo visto, não o bastante para evitá-lo.

    — Huhuhuuu, que graça — uma presença presunçosa ecoou próxima e invisível, parecia em movimento — nós entendemos seu ponto, Senhorita Miyazaki. Só busque ser mais cautelosa perante suas vontades.

    Uma forma feminina translúcida materializou-se ao lado de Akemi, e em poucos segundos, readquiriu suas cores predominantemente escuras. Era Kurori, vestida em seu kimono de lírios escuros sob um jaleco preto.

    — Você sempre precisa fazer esse seu showzinho? — perguntou Masaru, desaprovando.

    — Fique tranquilo, querido. Não vim atazanar sua filha. Só achei que seria justo explicar como ela veio parar aqui antes que você me acuse de invadir a enfermaria de novo.

    Miya buscava pelo motivo da presença dela mesma ali. — Quem me trouxe até aqui?

    — Tecnicamente, metade do mérito é meu. A outra metade é deste rapaz aqui dormindo feito pedra — unhas pretas iniciaram um cafuné nos cabelos de Akemi — ele entrou em pânico quando você apagou. Tentou te carregar no colo, mas não teve coragem de prosseguir… “Ai, caramba! E se me verem carregando uma desacordada ferida nos braços!? O que eu faço!?” Huhuhuuu, o desespero dele era tão ingênuo que tive de intervir, então, usei minha aura para resolver o problema. Tornei seu invisível e a levitei até chegarmos aqui.

    — Invisível? Consegue ocultar outras pessoas também?

    — Só se o corpo alheio estiver debilitado o suficiente. Você estava desmaiada e com a aura fragmentada, então foi como usar a mente para pintar um quadro colorido de trasparente. 

    A garota permaneceu calada, custando imaginar a cena.

    — Relaxa, querida, não fiz nada indevido. Só toquei o necessário para te salvar da humilhação pública, ou quem sabe, problemas maiores.

    — Entendo… de qualquer forma, obrigado pelos cuidados — disse Miya, com um sorriso agradecido; seguidamente, mais imagens da luta retornaram em sua memória. A voz de Jin em meio ao rasgo dos ventos e o fogo aceleraram a respiração da garota. “Quanto tempo fiquei desacordada?” A pergunta escapou antes que ela percebesse que a dizia em voz alta. — Que horas são?

    Masaru friamente consultou o relógio de bolso. — São dez e quarenta e nove. Trinta e último dia de abril.

    — Isso quer dizer que… eu fiquei desacordada… por um dia?

    — O suficiente para quase me fazer pensar que te perderia, mocinha.

    O sermão do pai doeu no coração da filha.

    Um dia…

    Kurori suspirou e tirou as mãos do cabelo que acariciava. Amenizar o impacto que a notícia causara era o seu objetivo. — Um dia, mas viva e com todos os membros no lugar, o que, considerando a quantidade de vento que aquele velho sopra, é um milagre digno de notas.

    Miya encarava o lençol, sem respostas. O orgulho ainda existia, mas a preocupação batia contra. “Um dia… e mesmo assim, esse menino continua me esperando. Quantas tempo ele passou aqui?”

    — Esse garoto visitou você quatro vezes desde que te trouxeram — relatou Masaru — e pelo que parece, hoje foi um dia puxado para ele. Chegou com os olhos marcados por olheiras e membros tremendo como se fosse um idoso. Não julgo, posso ver sua dedicação para que possa te ajudar da próxima vez.

    Miya se orgulhou de Akemi. — Fico grata por ele não ter interferido. Eu precisava que aquele momento fosse meu. Se ele tivesse tentado ajudar, certamente aconteceriam coisas que nunca poderíamos prever.

    Kurori sentou-se na cama, e com suas habilidades moleculares, arrastou uma cadeira distante para que colocasse as pernas sobre. O tom provocante de sempre entregou-se à sinceridade. — Bom, fico lisonjeada por ouvir isso de você, Senhorita Miyazaki. E já que tocou no assunto… Akemi foi missionado por nós para algo bem específico.

    — Missionado?

    Achando graça na curiosidade da garota, a doutora ajeitou uma mecha curta que caía pelo rosto. — Huhu, sim, a ordem foi que ele testasse sua aura em situações que envolvem múltiplas energias. Em outras palavras, queremos que o corpo dele aprenda a reagir diante de todo tipo de estímulo áurico possível. Uma tarefa potencialmente louca, mas que só ele pode tentar.

    — Vocês têm certeza disso?

    — Eu mesma o alertei. Disse para que não se metesse em situações que o excedessem, muito menos em conflitos de alto risco, ou, como acabamos de ver, situações que simplesmente não eram para ele.

    “Testar sua própria aura, enfrentando mundos que sequer entende. Que missão mais cruel deram a esse garoto. Mas sabe, eu não estou longe disso”, refletiu Miya, concordando com a situação. — Entendo… se esse é o desafio dele, então quero ajudá-lo. Nem que seja preciso arriscar parte do meu tempo, ou da minha chama.

    Kurori ficou satisfeita com a resposta, diferente de Masaru, que preocupado com o estado da filha, respirou fundo e perguntou: — Hiromi, consegue se levantar? — O semblante pragmático quase caiu.

    — Consigo — Miya afastou o lençol, e movendo-se devagar para não acordar Akemi, ergueu-se da cama e manteve a postura embora o incômodo no estalar da coluna.

    A doutora saiu da cama e caminhou até a garota. — E então? Como se sente?

    Passando uma mão na franja, Miya analisava o próprio corpo. — Fisicamente bem… mas… — repentinamente, sua boca calou-se. Seus dedos no cabelo desceram até o centro do peito, sobre o kimono branco que vestia. — Há algo estranho aqui… um vazio…

    A médica estreitou as retinas e viu que, dentro do peito de Miya, uma chama pequena tremulava em torno do coração… fraca, mas viva. — Seu núcleo áurico segue fragilizado. Parece que durante a luta, sua manifestação áurica sofreu uma alteração inesperada. Isso drenou mais energia do que seu corpo podia suportar. Em resumo, queimaram seu combustível em poucos segundos. A recuperação pode demorar.

    A informação não assustou.

    — Obrigada pelo diagnóstico, mas não há problema. Consigo recuperar minha energia com facilidade.

    Kurori riu baixo, cruzando os braços. — Huhuuu… típica resposta de um Miyazaki.

    Masaru notou que o comentário o servia e virou o rosto, evitando os olhares da mulher, mas longe de abalá-la ou aquietá-la.

    — Pois diga-me, garotinha, por que se interessa tanto naquele ali? — Os olhos insinuavam Akemi — parece que vocês passam bastante tempo juntos.

    — O que tá insinuando!?

    — Nada demais, só uma curiosidade inofensiva. A maneira como você o defende… chega a me soar sentimental.

    Miya fechou o rosto; o que causaria rubores nas bochechas, na realidade, trouxe a mesma frieza herdada do pai. — Guarde suas insinuações. Akemi é uma pessoa única, apenas saiba disso.

    A firmeza das palavras fizeram com que a médica fingisse espanto. — Hmmm… única, diz ela. Cada vez fico mais interessada em saber o que realmente aquele garoto tem.

    — Chega disso — Masaru rompeu a conversa e olhou para a filha — já está tarde, Hiromi, deve ir ao seu dormitório. Amanhã começa um novo mês… e uma nova era dentro desta academia.

    — Nova era?

    — Teremos melhores respostas pela manhã.

    “Ele só pode estar falando do posto de Jin. Parece que certos segredos da academia não podem ser sustentados por mais tempo.” — Certo… — A garota voltou os olhos para Akemi — deveria acordá-lo?

    — Negativo, deixe-o descansar aqui — solicitou Kurori — pretendo observá-lo durante o repouso. Quero entender como o corpo dele reage à estabilização áurica após tanto desgaste. 

    Miya a espiou de soslaio, defensiva e curiosa.

    — Cientificamente falando, claro. Áuricos necessitam de padrões consistentes, e Akemi é um belo exemplo de irregularidade.

    “Essa mulher sempre tem um motivo por trás do que fala, né?” Miya adiantou o passo em direção à saída. — Então, ficarei despreocupada. Agradeço a hospitalidade de ambos. Até outra hora.

    A doutora levou as mãos à cintura, autoritária. — Lembre-se de voltar aqui se sua energia áurica seguir baixa, e seja lá o que for fazer para recuperá-la rapidamente, não exagere.

    Masaru assentiu. — Descanse, Hiromi.

    A garota caminhou até a porta de correr, quando deslizou-a, um feixe tênue de luz atravessou o chão de madeira clara da enfermaria. O último olhar dela para Akemi, que seguia com o rosto afundado nos braços, respirando com calma, gerou um meio-sorriso suave antes que a porta se fechasse.

    Kurori aproximou-se de Masaru e encostou-se ao lado. — O que o futuro aguarda para esses dois, hein?

    — …

    — Ainda não superou o risco que ela correu?

    — … Só espero que ele consiga um dia ajudá-la… e evitar o que falhei com a minha amada…

    — Hm… Não sei se esse garoto tem o vigor áurico ou sequer físico para tal papel, mas pelo que percebi, de alma, é o melhor que você encontrou. Com todo o respeito, poucos teriam coragem o bastante para permanecer ao lado de uma garota tão intensa quanto sua filha…

    No centro da sala, Akemi guardava em seu sono a energia que precisaria, não apenas para o dia seguinte, mas para tudo o que lhe esperava dali em diante…

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