Capítulo 79 - O anúncio
[ 1 de Maio de 1922, Campo de Treinamento 1, às 5h57 da manhã. ]
Sob o teto de concreto negro, luminárias amarelas pouco iluminavam o breu que dominava o recinto cerimonial: o auditório — uma estrutura triangular, com fileiras de assentos em declive separadas por duas escadarias, todas convergindo para o palco de madeira fechado por cortinas vermelhas.
Pelas paredes pretas, guardas perfilados em descansar sequer piscavam, buscando com sua autoridade a neutralização de qualquer desordem dos alunos assentados.
No bloco de cadeiras à esquerda da grande entrada, que seguia aberta na espera de novas presenças, o grupo da Turma 1F permanecia próximo às escadarias. Nikko, Sho, Aruni, Mayumi e Kyoko, respectivamente lado a lado, deixavam um espaço de duas cadeiras à esquerda vazio, reservado por algum motivo que ninguém questionava, pois o simples roçar de uma perna contra o banco seria um ruído indesejado pelos guardas.
Ansiosa, Nikko balançava as pernas. — Uma reunião logo cedo! O que será que organizaram pra gente!? — questionou ela, exclamando em sussurros baixos o bastante para que não incomodasse os guardas.
— Se fosse anúncio de rotina, Jin já estaria alí embaixo — afirmou Sho, analisando com estranheza o vazio no palco.
Aruni segurava o lenço do uniforme. — Mas por quê há tantos alunos aqui hoje? Não lembro de sermos tantos.
— Né!? He hii! E eles são um pouco mais velhos que a gente! Isso não é muito interessante?
Mayumi esperava o momento em que as cortinas abrissem. — São as turmas acima, chegaram hoje.
Os três à direita da espadachim a encararam na hora, curiosos. Principalmente Nikko, esforçando-se para que segurasse a animação. — Hoje!? De onde eles chegaram!?
— Atividades extracurriculares, estágios e missões — informava Kyoko, de braços cruzados, cabeça baixa e olhos fechados que não escondiam sua impaciência — faremos o mesmo quando chegar a nossa hora, não é preciso tanto escândalo.
— Se eles chegaram agora, essa reunião deve ser extremamente importante — ponderou Sho, perdendo parte da convicção enquanto seus olhos varriam os arredores, procurando algo fora do lugar. — Mudando de assunto, alguma de vocês viu o Akemi? Fizemos os exercícios do Major Yura ontem e ele desapareceu até então.
— A Senhorita Miyazaki também está sumida. Ela não aparece em nenhuma instrução faz dois dias… — comentou Aruni.
— Olha que dividimos o mesmo dormitório e nem eu os vejo. Bom, pra ser justa, sempre apago antes de todo mundo… — Nikko apoiou o dedo no queixo e estreitou os olhos, pensativa. — Hmmm… estranho, né? Quando um desaparece, o outro também some. E quase sempre à noite… — uma mão escondeu o sorriso maroto — He hiii! O que será que eles andam aprontando sozinhos e escondidos?
— Falando de mim?
Num arrepio, o calor da voz na orelha de Nikko arregalou seus olhos e comprimiu sua boca numa linha fina. Passado o susto, ela virou a cabeça devagar, muito devagar, e deparou-se com Hiromi Miyazaki sentada na cadeira ao lado, de braços e pernas cruzados e uma sobrancelha erguida. — A-ah! Miyazinha! Que bom te ver! Eu… eu só estava comentando que vocês estavam quase atrasados pra reunião! Isso!
— Silêncio no auditório! — alertou um guarda aleatório.
Nikko revirou os olhos, agoniada pelo tom baixo que devia respeito; quando os voltou para Miya, notou Akemi sentado na outra cadeira ao lado, com um rosto confuso atrás da expressão antipática da ígnea.
Mas digamos que a espertalhona descobriu uma rota de fuga para aquele julgamento no olhar.
— Oh, e aí, Akemi! Me diz aí, por onde vocês andavam, hein?
— Bom, a ge- — o garoto abriu a boca, mas Miya o cortou.
— Ele passou a noite na enfermaria e não pode ser notificado da reunião, então fui buscá-lo. — A resposta foi direta à Nikko, preocupando-a.
— Enfermaria? — os mesmos olhos arregalaram-se novamente, porém, por motivos completamente diferentes. — Você tá bem, Akemi?
De cabeça baixa, o rapaz respondeu com calma. — Eu… tô. Tô bem. Foi só… cansaço.
O abalo alheio foi percebido por Nikko, então, seus sentidos de ajuda foram ligados: de maneira inesperada e totalmente despreocupada, ela colocou os joelhos sobre a cadeira e passou o torso por cima de Miya para um toque nos ombros de Akemi. Óbvio, não haveria outro resultado a não ser o constrangimento e estranheza a todas as pessoas próximas, exceto uma. — Cara, você foi muito bem ontem! Sério mesmo! Sua resistência física tá melhorando cada vez mais, sabia!?
Enquanto Miya já havia desistido daquele furacão de emoções em cima dela, Akemi sentia-se agradecido.
— Hehe, acho que sim. Mas ainda tenho muito a melhora-
Nikko repentinamente retornou ao assento e sinalizou silêncio. — Shh! — Os olhos vidrados no palco e os pés saltitantes quase a ejetavam da cadeira. — Olha! Olha! As cortinas estão se mexendo! Vai começar!
“Por quê alguém do tipo dela ficaria tão animada por uma auditoria?”, questionou-se Akemi.
Ao passo que as cortinas vermelhas se distanciavam, todos os alunos das primeiras às últimas fileiras voltavam sua atenção para o palco.
Quando os véus terminaram de se afastar, o palco revelou-se mergulhado na escuridão. Nenhuma figura ou som, apenas o vazio.
Até que um holofote iluminou.
A luz amarela rasgou a escuridão e caiu em um ponto vazio do tablado, para que então, arrastasse para trás, vagarosa, buscando algo que ainda se escondia nas sombras.
Coturnos brancos surgiram primeiro, imaculados e reluzentes sob o clarão. A luz subiu. Calças militares negras, seguidas por uma farda vermelha e preta no corpo robusto de quem a usava em descansar. Medalhas cintilaram no peito, orgulhosas e pesadas. Uma capa negra caía dos ombros largos, balançando ao menor movimento.
O holofote finalmente alcançou o rosto. Barba grossa, cabelo penteado para trás, postura de comando absoluto.
O olhar afiado passou pela plateia, dissecando cada fileira. A boca curvada para baixo, carregava um eterno amargor de uma expressão esculpida à força.
Segundos se passavam, e o homem permanecia parado, observando.
Alguns alunos nas fileiras traseiras trocavam olhares. Os veteranos olhavam com frieza.
Finalmente, uma das mãos do militar saiu de trás da cintura e revelou um microfone de fita. — Uma boa manhã, alunos da Academia Shihai de Asahi — o forçado tom de imponência ecoou pelo auditório e arrastou para uma breve risada irônica. — Rá… já que enfim temos todos reunidos, inclusive os novos recrutas, suponho que eu deva manter a compostura e me apresentar. Quem vos fala é Katsuro Miyazaki, General de Exército do Terceiro Regimento Áurico.
Murmúrios percorreram as fileiras.
— Terceiro? — Alguém sussurrou três cadeiras atrás de Akemi.
— Ele não era do Quinto Regimento?
— Isso é estranho — analisava outro — subir do quinto pro terceiro assim, do nada?
Preocupar-se com os fatos? Longe disso. A memória da conversa entre Katsuro e o oficial — invasões, estratégias sujas, planos encobertos — gravaram-se na mente de Akemi, lembrando-o da “missão anti-conspiração” no qual se envolvera.
“Será que ele sabe?”, indagou-se, de peito apertado. “Jin facilmente avisaria a Katsuro de que estavam sendo observados naquele dia, não custaria nada.” A dúvida o mordia, porém, a visão do poder bruto partido de shihais de alto grau o empurrava à razão oposta. “Hm, sinceramente, devo entender que temê-los só me levará a estaca zero novamente.” Ele tentou buscar coragem no rosto resoluto de Miya, atenta ao palco. “Ao lado dela, terei mais chances de enfrentar esses monstros”, a promessa o fortificou contra o eco do auditório.
Satisfeito com o futuro promissor que imaginava para si, Akemi fechou os olhos e inspirou fundo; o ar puro preencheu seus pulmões e trouxe uma tranquilidade que não sentia a tempos, sua mente equilibrou-se.
Todavia, quando abriu os olhos, percebeu que o foco era outro.
Katsuro, imóvel no centro do palco, banhado pela luz amarela do holofote, cravava seus olhos penetrantes e deliberados diretamente no garoto, atravessando a escuridão do auditório.
A plateia inteira era um mar de sombras e silhuetas de alunos no breu, e ainda assim, o militar havia encontrado o jovem específico num distante bloco à sua direita.
Aquele olhar dizia: “Sei exatamente quem você é!”
O instinto do medo gritava para que se encolhesse, desviasse o rosto, ou sumisse entre os colegas; mas Akemi rebuscou o conforto da cadeira, apertou os dedos até as unhas pressionarem as palmas, ergueu o queixo e devolveu o encaro de Katsuro.
A coragem foi notada pelo militar; sobrancelhas se levantaram juntas do microfone levado ao sorriso breve e vil. — Talvez muitos de vocês esperassem o Marechal Jin Ichikawa neste palco, em meu lugar — a falsa humildade era evidente — porém, como diretor da Academia Shihai de Asahi, ele foi convocado a acompanhar eventos de relatórios governamentais junto ao Imperador pelos próximos meses. Uma responsabilidade anual, como sempre foi feito pelo nosso mestre dos ares.
O sorriso aumentou, mais satisfeito. — E para suprir sua ausência temporária… Fui deixado no cargo máximo da Academia!
Orgulho.
Esse era o sentimento de Katsuro, como se aquele fosse o anúncio de seu maior sonho.
“Eventos de… relatórios governamentais!?” A frase soou oca para Akemi, que a tratou como uma desculpa esfarrapada construída para que enganasse bobos. “O que eles realmente estão planejando? Um Marechal sai, um General assume, e fingimos que é protocolo? Esses militares devem esconder uma rede de acordos e segredos, e essa troca de poder é apenas um nó a mais. Aliás, vamos mesmo acreditar nisso e levar como se nada?”
Vendo o rosto dos em volta, não se encontrava reações contrárias ao anúncio, nem um sussurro de desconfiança. Todos seguiam inexpressivos.
— Jin é um Marechal, é normal que seja convocado — sussurrou um aluno irreconhecível na multidão, esperando pela resposta de seu grupo.
— Exato, mas é sério que o substituíram por um Miyazaki? — questionou uma garota.
— Relaxe, não há nada de ruim nisso — assegurou outro jovem — seguimos sob comando de um shihai grau S, e é de referência que a ASA precisa.
Akemi concordava com os comentários: “Talvez isso seja realmente normal…”, entretanto…
— Tamo ferrado — resmungou Minoru, sentado uma fileira à frente, conversando com Nihara Miyazaki e Kentaro Ozaki ao seu lado esquerdo. — Vocês lembram quando ele foi diretor no Instituto Taira?
Kentaro cruzou os braços, rindo das lembranças que tinha. — Rá, sim, foram os dois anos mais dolorosos da minha vida. Mas como sobrevivi, virei o que sou hoje por causa daqueles anos. Você, Nihara, o que acha?
Entre eles, o ígneo recostado ignorava as novidades. — Pra mim? Muda nada. Convivo com essas métricas todos os dias.
Novamente, Katsuro levou o microfone à boca. — Como novo comandante, poderia gastar tempo com formalidades, discursos vazios sobre tradição e honra militar. Mas prefiro ser direto — um passo à frente balançou a capa — outras mudanças virão! E elas começam agora!
A atenção da plateia aumentou.
— Todos vocês, seres áuricos, possuem capacidade igual de provar seus valores a qualquer momento, sejam juntos, ou um contra o outro. Isso eu já confirmo quando se trata das turmas superiores, pois passaram por missões, estágios, e desafios que separam os gloriosos e os flagelos — uma pausa destacou o orgulho dos veteranos. — Mas… e as Turmas F? Como posso ter certeza de que os novatos valem o investimento desta instituição?
Kentarou chamou Nihara num encontrão de ombros. — Aí, o que esse cara tá pensando? Isso é um menosprezo pessoal?
— Tsc, cala a boca, apenas escute.
— Por isso! Caros recrutas! Decidi adiantar suas missões de campo e os campeonatos para o próximo mês! Iniciando pela Operação: Floresta Estelar!
Reações de choque percorreram e atingiram alguns novatos no auditório. Murmúrios dominaram fileiras; alunos se viraram uns para os outros, tão incrédulos quanto Nikko. — Próximo mês!?
Minoru gesticulava sua confusão e tensão. — Ele só pode ser maluco, nem fizemos reconhecimento de terreno, como andaremos em um campo infestado de feras áuricas sem saber nem por onde andar?
Katsuro ergueu uma das mãos e retomou o foco do público. — Antes que algum de vocês pense em escapar dessa responsabilidade, saibam que não haverá complacência com aqueles que desejam evitar a operação só por acreditarem que pertencem a outra arma. Comunicações, logística, suporte… esqueçam! Vocês só escolherão suas armas ao final deste ano, apenas se forem capazes de subir de divisão. Portanto, todos, sem exceção! Participarão da operação, pois para um áurico, é crucial estar sempre apto a servir a infantaria; se é incapaz disso… és descartável!
Aruni nem notava o pavor atrapalhando sua respiração: os ambientes hostis e as feras inimagináveis que esperava daquela floresta causavam suores frios e tremores em suas pernas. Entretanto, em meio às preocupações que abalavam seu mental, uma mão pousou sobre sua coxa inquieta.
Ao lado, Mayumi mantinha a serenidade do olhar ao palco; a pressão suave e constante da mão insinuava sua presença e segurança, pronta para acalmar e ajudar sua companheira.
O medo se dissolveu de Aruni, relaxando-a…
Katsuro observava a plateia, seu sorriso vil satisfez-se com o que foi imposto. — Treinem até o limite e esfriem as cabeças. Falaremos dos campeonatos depois, por ora, a Floresta Estelar os aguarda. Dispensados!

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.