Índice de Capítulo

    Camion veio de uma cidade no sudoeste. Ele morava com a esposa e as duas filhas, sendo feliz ao lado delas. Entretanto, sua felicidade era frequentemente interrompida pelos ataques de demônios. Diferente da cidade de Mangolândia, que recorria aos quartéis dos Destemidos, a população local conhecia a localização do quartel mais próximo.

    Ainda assim, evitavam confrontos diretos e tentavam levar suas vidas, protegendo suas terras como podiam. Essa postura mudou com a ascensão do novo líder, que declarou que o medo dos Destemidos não deveria prevalecer. Ele organizou uma força para derrotar um desses seres.

    O líder acreditava que o Destemido daquela região era fraco, já que não havia sinais de florestas devastadas ao redor de seu quartel. Ao contrário dos antigos boatos que circulavam há décadas, afirmando que tais quartéis eram cercados por florestas mortas, e a ausência desses sinais reforçava a crença de que a vitória era possível.

    O líder reuniu cinco mil soldados, entre os quais estava Camion, um dos guerreiros especiais dotados de aura despertada, cuja presença era impossível ignorar. Antes de partir, ele se despediu da família e, prometeu às filhas que retornaria invicto.

    Após duas semanas de marcha, o exército chegou ao quartel-general. Como de costume, a estrutura externa era similar à dos outros quartéis, embora o interior sempre apresentasse peculiaridades. Eles invadiram o local e se depararam com uma imensa porta, com pelo menos cinco metros de altura.

    Sem demonstrar temor, os soldados avançaram e começaram a empurrar. No entanto, o progresso foi interrompido por um som vindo de dentro, semelhante ao passo pesado de uma criatura colossal. Alarmados, começaram a recuar lentamente, mas, assim que a porta se abriu, muitos foram esmagados pela força descomunal que emergiu.

    Os soldados restantes estremeceram ao ver a criatura. A porta parecia pequena diante do ser colossal que surgiu. A figura lembrava a de um humano corpulento, mas gigantesco, com a pele completamente negra e, emanava uma energia negativa que parecia sufocar o ambiente.

    Um dos soldados, tentou romper o medo e, gritou para atacar. Apesar do terror evidente, os demais avançaram. No entanto, com um único movimento de sua perna, o demônio aniquilou dezenas de guerreiros, espalhando desespero entre os sobreviventes.

    O colossal, com um gesto firme, fechou a porta atrás de si e declarou, com uma voz cheia de autoridade:

    — Somente aquele que for digno de me derrotar poderá passar!

    Os soldados persistiram na luta, sendo esmagados sem piedade. Mesmo aqueles com aura despertada não conseguiam causar qualquer dano. Alguns tentaram fugir, mas eram abatidos antes de alcançar a saída.

    Camion, ao perceber a gravidade da situação, gritou por retirada e, desobedeceu às ordens de seu superior. A tropa, tomada pelo medo, não hesitou e começou a correr para fora. Porém, aquele monstro não facilitava, bloqueava e eliminava os que tentavam escapar.

    Camion também foi alvo de ataques, mas conseguiu evitar o pior e fugir. Contudo, acabou caindo ao chão, gravemente ferido, próximo ao portão das muralhas do quartel. Enquanto sua consciência se esvaía, notou algo peculiar: o demônio não ultrapassava os limites do quartel.

    Antes de perder totalmente a consciência, pediu desculpas por não conseguir cumprir a promessa feita à sua família.

    Ao despertar, encontrou-se em um lugar desconhecido, sem saber quanto tempo havia se passado. O ambiente parecia uma enfermaria, repleta de humanos acamados, todos em estado deplorável.

    Ele se levantou e tentou conversar com o homem ao lado, mas recebeu apenas grunhidos em resposta. Persistiu, questionando outros, mas tudo o que ouviu foram sons desconexos e palavras sombrias como “matar”, “comer”, “humanos”, “crianças” e “mulheres”.

    Confuso, ele não compreendia por que ele era o único capaz de falar normalmente. A situação tomou um rumo inesperado quando uma pessoa entrou na enfermaria e, com uma voz clara, disse:

    — Como posso ver, nosso herói acordou.

    Ele sentiu-se mais tranquilo ao perceber que aquela pessoa conseguia falar. Sem hesitar, perguntou o que aconteceu. 

    O homem explicou, com pesar, que os humanos ali presentes provavelmente jamais voltariam a falar devido à energia negativa que seus corpos haviam absorvido, danificando suas mentes. Apesar disso, ainda conseguiam compreender o que era dito, mas suas mentes haviam regredido ao estado de uma criança.

    Ao ouvir aquilo, percebeu que tinha tido sorte por manter a fala e a sanidade. Pouco depois, o homem o conduziu a outro local, onde apresentou outros sobreviventes.

    Curioso, perguntou onde estava. Descobriu que aquele era um esconderijo seguro. Após entender a situação, declarou sua intenção de retornar à sua cidade. O homem, sensibilizado pela determinação, decidiu ajudá-lo, reunindo uma tropa para acompanhá-lo em sua jornada.

    Ao viajar a cavalo, levou apenas alguns dias para retornar à sua cidade. Ao chegar, foi tomado pelo desespero ao ver que o local havia sucumbido aos demônios. Tomado por uma tristeza arrasadora, chorou intensamente enquanto tentava escapar dos ataques que ainda ocorriam.

    De volta ao esconderijo, o homem que o havia ajudado sugeriu que ele se juntasse à brigada. Essa força tinha como objetivo recuperar cidades e vilas tomadas pelos inimigos. Contudo, conquistar sua cidade natal era, no momento, um objetivo inalcançável devido ao tamanho e à complexidade da operação necessária.

    Ao longo dos anos, Camion integrou-se à brigada, ajudando a resgatar humanos e reconquistar diversas vilas. Durante esse período, começou a notar algo peculiar: entre os demônios que matava, alguns eram capazes de dizer frases desconexas, embora sem qualquer sentido claro.

    Certo dia, o homem que liderava a brigada se aproximou dele e lhe disse que, após anos de treinamento e crescimento, estavam finalmente prontos para atacar a cidade natal de Camion. 

    Ele ficou inicialmente feliz, mas uma sensação de hesitação o tomou ao perceber que, entre todos, apenas ele e aquele humano ainda mantinham a capacidade de falar.

    Apesar dessa dúvida, a perspectiva de retomar sua cidade, trouxe-lhe uma sensação de justiça. O líder da brigada orientou que seria a isca, enquanto Camion eliminaria os mais fracos. 

    Ele concordou com o plano, e, ao chegar às muralhas da cidade, derrubou uma delas, iniciou o ataque e matou todos que se encontravam à sua frente.

    Porém, algo estranho ocorreu. Ao derrotar os inimigos, Camion começou a ouvir algumas palavras coerentes saindo de suas bocas. Ele questionava, com crescente angústia, o motivo dos seres que haviam matado sua família chamarem-no, agora, de “demônio”.

    Ao chegar à sua antiga casa, viu três deles com aparência feminina. Envolto pela fúria, atacou sem hesitar, mas, enquanto lutava, uma pergunta o atormentava. Por que aquelas figuras, agora monstruosas, o chamavam de marido e pai?

    Foi então que algo mudou. Camion, finalmente, abriu os olhos e, percebeu que o mundo ao seu redor estava completamente distorto. O que ele acreditava ser uma cidade tomada por demônios não passava de uma ilusão. Na verdade, ele havia invadido sua própria casa, onde sua família estava caída, morta — e suas mãos estavam manchadas de sangue.

    Com as lágrimas escorrendo, ele finalmente compreendeu a verdade. Ele não era o herói da história, nem o guerreiro vitorioso. Ele era apenas mais uma vítima, manipulada por forças que ele não compreendia, arrastado por uma mentira que destruiu sua vida e a de sua família.

    Após enterrar sua família, Camion fez uma promessa silenciosa a si mesmo: aquele homem — não, aquele monstro — iria pagar por tudo. Consumido pela raiva, ele correu em direção ao líder da brigada, mas à medida que avançava, começou a entender algo fundamental. 

    Os seres que ele matou não eram demônios, mas vítimas. Ou aqueles que nunca falavam, que pareciam perdidos, marcados e transformados pela mesma manipulação.

    O humano, vendo Camion que se aproximava e gritava seu nome, percebeu que algo havia mudado. Ele viu nos olhos dele a clareza que antes faltava.

    — Aaron!!!!!!! — gritou com extrema raiva.

    — Como posso ver! Finalmente abriu os olhos! — respondeu Aaron, com uma risada desafiadora.

    Ele jurou matá-lo enquanto gritava de raiva, mas, antes que suas mãos tocassem o Destemido, algo vindo do alto o pisou com força. Ele tentou se levantar, mas suas forças falhavam. 

    Era como se o demônio acima dele estivesse controlando suas energias e, drenava-o a cada segundo. Desesperado, se transformou em sua forma demoníaca e, acreditou que isso o fortaleceria, mas, ao contrário do esperado, isso apenas agravou sua situação.

    — Idiota! Liberar mais energia negativa foi a sua pior escolha!

    Camion começou a sentir uma dor insuportável, como se algo estivesse sendo arrancado de seu corpo. A mulher, ainda sobre ele e com as mãos firmemente, apertou seu pescoço, parecia estar realizando algum tipo de ritual. A dor parecia não ter fim, mas, após o sofrimento interminável, algo o aliviou. A mulher então se levantou de cima dele.

    Exausto e sem forças, mal conseguia levantar a cabeça, mas tentou observar quem era aquela figura. No entanto, só podia ouvir a mulher.

    — Pronto, o fragmento de touro está completamente restaurado.

    — Como posso ver, estamos mais próximos — disse Aaron, sua expressão séria.

    — Sim.

    Enquanto os dois começavam a se afastar, Aaron perguntou:

    — Não vais finalizar?

    — Não há necessidade. No momento em que o fragmento é retirado do corpo de um humano, ele morre.

    Aaron soltou uma risada baixa e disse:

    — Faz sentido.

    Deitado no chão, ele apenas podia ouvir os demônios que se afastava, mas isso não era tudo. Com sua audição aguçada, ele podia perceber o som da sua própria cidade sendo devastada, o som dos seus antigos amigos sendo ceifados pelos mesmos seres que ele havia chamado de aliados. 

    Sua raiva crescia a cada momento, apesar de sua impotência.

    Dias se passaram, e Camion, finalmente capaz de se mover novamente, sentia que a morte estava próxima, ainda marcada pela citação daquela mulher. No entanto, ao sentir sua força retornando, sua raiva se intensificava.

    Com os demônios presentes na cidade, ele os enfrentou e os matou, consumindo-os inusitadamente. Ele não entendia o motivo de comer aqueles seres, mas o ato o fazia mais forte, como se fosse uma necessidade imposta pela raiva e pela transformação em que se encontrava.

    Foi então que, ao término de sua matança, ele avistou uma criança humana, ainda viva.

    Camion olhou para ela e, por um instante, se lembrou de suas filhas. Porém, uma dor intensa começou a tomar conta de sua cabeça, e, no meio da agonia, ele, sem pensar, matou aquela criança. Assim que a vida dela se extinguiu, a dor dele desapareceu, e finalmente compreendeu algo sombrio: naquele momento, ele já não era mais humano, mas um monstro.

    Ele, sem perceber, apagou as lembranças de sua família e, com um novo propósito, foi em busca de mais destruição. 

    Não importava se eram humanos ou demônios; ele matava indiscriminadamente, principalmente aqueles que ele um dia considerou amigos. Sua formação foi composta por outros, assim como ele, compartilhavam a mesma dor e alimentavam um ódio profundo por Aaron.

    No Leste, ele tomou um quartel-general abandonado e fez dele sua base. Ali, jurou matar Aaron, e, enquanto observava tantos como ele, Camion finalmente entendeu algo novamente: o ciclo de dor e vingança parecia nunca ter fim.

    Os transformados vivem pela raiva e pela destruição. Para eles, humanos ou demônios, não há muita diferença, especialmente para aqueles que negam sua própria existência.

    No entanto, em seu momento de morte, abandonou a raiva. As memórias esquecidas de sua família começaram a emergir e, circulava por sua mente, mas sem causar mais dor. E, em meio a esses pensamentos, Camion finalmente compreendeu algo mais profundo, algo que ele não havia entendido antes.

    No fim, ainda sou humano.

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