Capítulo 36 - “Seja Feliz… Você Merece Isso”
“…Vale o destaque de que sua mãe teve um ato nobre em seus últimos dias de vida. Mesmo estando doente, ela continuava trabalhando, ajudando os doentes e feridos e mal dormia. Quando ela desmaiou de fraqueza e ficou de cama, se recusou a tomar os medicamentos, alegando que “os outros precisam mais do que eu”. Sua mãe foi uma heroína e morreu fazendo o que amava: ajudando as pessoas.
Abaixo está uma transcrição de uma carta que ela enviaria a você na noite anterior à sua morte:
Oi, filha…
Eu não sei se esta carta vai te alcançar. Talvez chegue tarde demais, ou talvez você nunca possa lê-la. Mas eu preciso escrever. Nem que seja só para fingir, por um momento, que ainda estou aqui contigo.
Se você está lendo isso, é porque eu fui embora. Eu queria muito estar aí com você, só para te ver mais uma vez. Só para segurar tua mão e dizer: você não está sozinha, Evelyn. Mas acho que não vai acontecer. E isso me destrói.
Não vou mentir: eu estou cansada. Cansada de um jeito que nem o sono resolve mais. A tosse não passa. Os remédios acabaram, e mesmo que tivessem, tem gente pior do que eu precisando.
Talvez eu tenha sido egoísta por ter escolhido os outros em vez de mim mesma. Por ter ficado nesse hospital, noite após noite, cuidando de feridos que nem sabiam meu nome… enquanto você, minha filha, estava tão longe, enfrentando horrores que eu nunca vou entender.
Eu devia ter pensado em você. Em como seria para você saber que perdeu a mãe também. Mas eu… eu precisava continuar. Talvez porque se eu parasse, tudo perderia o sentido. Talvez porque salvar um desconhecido me fazia fingir que eu ainda podia te proteger, mesmo sem estar ao seu lado.
Eu sei que isso não justifica. Sei que não alivia. Mas foi tudo o que eu consegui ser, Evelyn. Alguém que tentou fazer o que achava certo. Mesmo que errasse feio no caminho.
Eu só espero que você não me odeie por isso. Ou pior: que você tente seguir meu exemplo. Porque eu sei que você faria igual — e é exatamente isso que me assusta. Não quero que você acabe como eu. E, se puder… perdoa a sua mãe por não ter escolhido você.
Enfim, eu sei que dói. Sei que tem dias em que levantar da cama parece um castigo. Que talvez você tenha perdido mais do que conseguiu suportar. E que o mundo parece girar em volta de um vazio que ninguém vê e que só você sente.
Mas, filha… mesmo com tudo isso, eu quero te fazer um último pedido: quero que você viva. Não sobreviva. Viva. E quando eu digo isso, não é um pedido vazio. É um clamor de quem está partindo, de quem te ama mais do que qualquer outra coisa, e que se recusou muito quando teve que aceitar que não podia mais segurar tua mão.
Construa alguma coisa. Mesmo que pequena. Mesmo que frágil. Algo que seja só seu, algo que você se orgulhe de construir, que não seja baseado em ódio, mas sim em amor. Algo que faça valer sair da cama todos os dias e viver.
Eu sei que é difícil. Eu sei que às vezes você sente que morreu por dentro e só esqueceram de enterrar. Mas você ainda está aí. E enquanto você estiver aí, ainda existe uma chance.
Viva e seja feliz por você, não por mim, não por ninguém, mas somente por você. Não apoie sua vida e felicidade nos outros, apoie sua vida e felicidade apenas em si mesma. Somente assim você pode ser feliz de verdade.
O que eu quero dizer para você com essa carta é que: seja feliz, filha. Você merece isso.
Com amor, mesmo no fim,
— Mamãe
***
Uma porta se abriu. A luz da rua cortou a escuridão da casa como uma lâmina pálida. Na porta, surgiu a figura de uma garota de cabelos brancos. Ela não se moveu de imediato. Ficou ali, parada, como se hesitasse em entrar. Como se aquela casa fosse, ao mesmo tempo, bom e mal de estar dentro. Passaram-se alguns segundos e então ela cruzou a entrada.
Cada passo dentro da residência era cuidadoso. Mancava levemente, ainda não estava acostumada à nova realidade, à sua prótese. O corredor estava em silêncio. Ela o percorreu devagar, até alcançar o cômodo principal: a sala de estar, de jantar e a cozinha, tudo conectado.
Passou pela cozinha, depois pela mesa de jantar e então pela sala de estar. Seus olhos percorriam tudo ao redor com um olhar misto de curiosidade e nostalgia.
Ao se sentar no sofá, uma fina nuvem de poeira se ergueu. Ela pegou um livro esquecido sobre a mesa de centro. Ficou olhando para ele por alguns segundos. Passou os dedos sobre a capa como se reencontrasse um velho amigo. Folheou algumas páginas e o devolveu à mesa com paciência.
Se levantou. Retornou ao corredor. Desta vez, virou à direita, onde uma escada levava ao andar de cima. No topo, havia dois caminhos. Primeiro, foi para a esquerda.
No fim do corredor, havia uma porta. Ela a abriu devagar. Era um quarto de casal. A cama estava feita, havia uma poltrona ao canto, quadros nas paredes. Tudo limpo… e intocado. Evelyn não entrou. Ficou à porta. Observou o quarto por alguns segundos. Depois, baixou o olhar e fechou a porta com a maior delicadeza possível, sem fazer ruído.
Se virou e foi para o lado oposto do corredor. A outra porta abriu com um rangido leve. Então entrou. Era seu antigo quarto. Seus olhos passearam pelos objetos familiares — a escrivaninha quase vazia, a cadeira confortável. Passou a mão sobre o móvel, sentindo a textura da madeira, do verniz, como se quisesse confirmar que aquilo ainda era real.
Do outro lado do quarto, a cama estava desarrumada. Com um suspiro, ela ajeitou o lençol. Depois os dois travesseiros. Por fim, dobrou o cobertor com cuidado, deixando-o sobre a ponta da cama em formato retangular, exatamente como fazia antes de tudo.
Ficou ali, imóvel, olhando para a cama por longos segundos.
Então, se deitou com cuidado, sem bagunçar a cama que acabou de arrumar. Entrelaçou os dedos sobre o peito e encarou o teto — onde uma janela mostrava o céu noturno.
As estrelas brilhavam. De tanto olhar para o céu noturno, Evelyn fechou os olhos e adormeceu em silêncio. Estava feliz pelo tempo que ficou com quem amava. E deprimida por esse tempo ter acabado tão rápido.
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