Fazia quase uma hora desde que a caçada terminou, com Niko e Evellyn saindo do acampamento. Desde o momento em que entraram na carroça, não trocaram uma palavra sequer, o que deixava a aura do local bem constrangedora para ambos os lados.— Os dois tinham o sentimento de que algo precisava preencher o silêncio da noite, mas nenhum deles tinha coragem de falar algo, pelo menos, até agora.

    — Se você estiver se perguntando se o lufador vai feder ou não, saiba que nesse tempo, e também por conta da carroça estar fechada, é bem provável que ele só comece a feder depois de alguns dias. Então, nem precisa se preocupar, tá bom?

    — Ah, tudo bem. — respondeu Niko à fala inusitada de Evellyn.

    Quando a garota terminou sua fala, automaticamente sentiu uma vergonha intensa perceptível para qualquer um, mesmo com um leve sorriso no rosto. “Que fala desnecessária. Por que eu falei isso? “Que idiota!”, ela pensava.

    Enquanto isso, Niko não estava pensando na possibilidade do cadáver do lufador feder ou que seu cheiro atraísse animais, mas mesmo assim ficou aliviado de que não iria ter que aguentar um cheiro podre pelas próximas doze horas. Na verdade, Niko estava pensando na possibilidade de ser um mercenário, como Evellyn, mas não estava confortável o suficiente para perguntar isso a Evellyn. Mas, graças à fala da garota, ele se sentiu mais confiante pelo fato de terem tecnicamente iniciado uma conversa, sem contar que o ar de constrangimento iria se dissipar se fizesse isso.

    — Evellyn, você acha que eu era um mercenário assim como você?

    — Eu acho que não. Esse é o tipo de trabalho que todo mundo que faz parte se conhece e eu nunca te vi antes de hoje.

    — Entendi… Você tem alguma ideia do que eu poderia ser antes de perder as minhas memórias?

    — Uhm, você poderia ser alguém que trabalha ajudando pessoas a se transportar ou alguma coisa assim. A sua Alma é bem útil nesses tipos de serviços e, levando em conta que você usa armas, também seria de imaginar que fosse um soldado ou até um cavaleiro. Mas se fosse assim, provavelmente seria famoso ou minimamente conhecido, então eu não tenho a mínima ideia do que você seria, desculpe.

    Mesmo esperando por essa resposta, Niko ainda sim queria perguntar a Evellyn. Se houvesse uma oportunidade dele saber mais sobre seu passado, ele iria a abraçar, mesmo se a chance disso fosse de um em um milhão.

    — Mas eu vou ser sincera agora. Você está muito viciado nessa coisa de saber quem é e ter sua vida antiga de volta. Só relaxa, maninho, vamos conversar sobre outra coisa, você está pensando nisso o dia inteiro. Sem contar que uma hora você vai saber quem é de novo e não é só pensando nisso que isso vai acontecer. Tudo bem?

    Mesmo Niko querendo mais do que tudo saber quem ele realmente era, decidiu confiar em Evellyn e conversar sobre outras coisas, pelo menos, só por essa noite.

    — Então… como é na capital?

    — A capital? Nossa, lá é incrível! Lá é uma cidade bem grande, tem cerca de um milhão de habitantes, as casas são muito bonitas e o castelo imperial é fantástico! Ele é gigante e fica no meio de um rio imenso que divide a cidade em duas partes, o rio Dimise.

    Mesmo com a descrição relativamente vaga de Evellyn, a ansiedade de Niko aumentou. Ele queria conhecer logo Velikdorf, aquele lugar parecia ser incrível, além de que seria a primeira vez que iria a uma cidade e não só isso, mas uma cidade grande e, então isso fazia sua expectativa dobrar de tamanho.

    — A comida lá é boa?

    Quando Niko falou de comida, se arrependeu instantaneamente. Havia se passado praticamente um terço do dia desde que comeu pela última vez e, ainda por cima, ele só havia comido uma fruta, então estava faminto e a palavra “comida” só fez aumentar sua fome.

    — Muito! Inclusive, eu tenho alguns devaneios na minha mochila, é um doce bem comum lá em Velikdorf. Eu não sabia quanto tempo iria ficar caçando o lufador, então trouxe umas comidinhas. Quer um?

    — Claro. — disse o ser sem hesitar, com a fome maior que seus chifres.

    Evellyn pegou de sua mochila em seus pés uma esfera. Ele tem um formato quase que circular, maior que a mão do garoto, uma cor de creme, um recheio vermelho claro puxado para rosa em volta de todo o corpo, com um pouco de açúcar de confeiteiro em cima. Ao ver o alimento, os olhos de Niko se dilataram mais do que o normal, ele estava encantado por esse belo doce que parecia delicioso.

    — Toma, pode comer, eu tenho um para mim também. — disse a garota de cabelos grisalhos, que na visão de Niko neste instante era um anjo lhe dando um presente dos deuses.

    Quando Niko encostou seus dedos no devaneio, logo sentiu seu aroma irresistivelmente reconfortante, com notas de baunilha e uma pitada sutil de canela, sem contar o toque de creme de frutas vermelhas que aprimorava o cheiro incrível do doce.

    Niko estava salivando neste momento, nunca imaginou que existiria alguma comida nesse mundo que fosse incrível daquele jeito. “Se o cheiro já era bom, imagina o gosto”, pensou ele enquanto segurava o doce lendário em suas mãos. Ele aproximou o doce em sua boca, pronto para dar uma mordida…

    — É incrível. Esse doce é maravilhoso.

    O devaneio tinha um sabor doce e delicado, com uma textura macia e arejada, o sabor de creme de frutas vermelhas desmanchava em sua boca. Aquilo era simplesmente incrível. Niko queria que aquele momento durasse para sempre.

    — É bom, né? Agora imagina as outras comidas que tem na capital! Não só as doces, mas as salgadas e bebidas também, você vai amar. — falou a elfa com a boca cheia de comida, parecendo que iria engasgar a qualquer momento.

    Os dois estavam se deliciando com aquele doce utópico, comendo em silêncio e apreciando o trabalho impecável do padeiro que o preparou. Depois de um tempo, os dois terminaram de comer o delicioso doce, mas Niko ainda estava com fome.

    — Você tem mais um desses? — disse Niko de forma baixinha e olhando para o nada, com uma postura envergonhada.

    — Tenho sim. Pode pegar, m-

    Evellyn nem havia terminado de falar e Niko já foi atacando em direção ao doce que estava nas mãos da elfa. Ele se viciou naquele doce maravilhoso.

    — -as você vai ficar me devendo quinze cêntimos de Yzakels, a moeda do reino. — completou a garota com um sorriso maligno, se aproveitando da ganância do albocerno.

    Niko não se importou com isso e continuou comendo o doce. Ele não sabia quanto valia quinze cêntimos, mas acreditava ser um valor justo para o sabor celestial que havia em sua boca. Além disso, sabia agora que Yzakel era a moeda do reino. Passados uns minutos, Niko terminou de comer seu segundo devaneio.

    — Tem alguns lugares que eu possa visitar, Evellyn? Como pontos turísticos, históricos ou que sejam só legais mesmo.

    — Eu já te contei sobre o castelo, mas também tem o parque da prosperidade que eu acho que você vai gostar, também tem a Catedral da Ordem Alstra que é linda, o museu de história talvez você ache legal. Ah, o teatro Osteich, você vai amar também… pena que é caro para entrar lá.

    — Parece que tem muita coisa lá.

    — Depois eu faço uma listinha do que a gente pode fazer, tudo bem?

    — Tudo bem.

    Niko estava até um pouco confuso de tantos lugares que Evellyn disse a ele, com um lugar parecendo ser mais incrível que outro à medida que a garota os citava.

    — Quem é o rei atual, Evellyn?

    — O rei atual é o Ludwig Von Aldrich Yzakel . Ele é o décimo terceiro rei de Franell, faz parte da dinastia Yzakel que comanda esse país desde 2500, se eu não me engano. Ele está fazendo um bom governo. A economia cresceu muito desde que ele entrou no poder e a pobreza vem diminuindo, mesmo com as complicações que surgiram nos últimos anos…

    Niko ficou curioso sobre essas tais complicações, mas, ao mesmo tempo, assustado. Já que Evellyn falou desse assunto de um jeito sério, que não condizia muito bem com sua personalidade, o garoto decidiu não perguntar nada sobre aquela questão.

    — Obrigado.

    — Pelo quê?

    — Por ter me salvado do lufador. Você quase morreu para me salvar, então obrigado, de verdade.

    — Na verdade, eu quase morri, não. Sabe quando eu perfurei o lufador com aquelas estacas de gelo? Eu iria perfurar a garganta dele antes de ele me atacar. Mas você apareceu e estragou meu plano. — disse a garota, no mesmo tom debochado de sempre.

    Niko ficou chateado pela fala de Evellyn. Ele se sentiu um intrometido, que ninguém pediu para que fizesse algo, mas por puro orgulho fez mesmo assim. Por conta desse sentimento de vergonha, ele olhou para o lado oposto de Evellyn e vestiu a touca de seu manto, que havia aberturas para passar seu chifre, e apertou os botões das aberturas para a touca se fixar melhor na cabeça. Percebendo o erro que cometeu, Evellyn colocou a mão no ombro de Niko.

    — Mas aquilo foi incrível. Eu sinceramente pensei que você iria sair correndo, mas você se mostrou forte, superou minhas expectativas e mostrou que eu estava errada, por isso você foi incrível.

    As palavras de Evellyn fizeram Niko perceber que, mesmo sendo um intrometido, fez com que Evellyn mudasse sua perspectiva com relação à sua pessoa, que ele não era um completo inútil orgulhoso. Logo baixou sua touca e deu um leve sorriso em direção a Evellyn. Após essa troca de palavras entre ambos, Niko lembrou de algo que queria perguntar a Evellyn mais cedo.

    — Evellyn, por que você me deixou caçar o lufador sozinho enquanto só ficou me seguindo de longe? Você podia muito bem só ter me pedido para te ajudar a caçar o animal. E nem vem com essa de “Eu só queria saber se você caçava bem” porque eu sei que não é verdade!

    — Nossa, não precisa ficar assim também, mas eu não menti. Eu queria saber se você daria conta do trabalho e o lufador foi seu teste de entrada.

    — Entrada para quê?

    — Para entrar no meu grupo de mercenários. Caso você não goste da ideia, saiba que você não tem muita escolha, já que você é praticamente um mendigo desempregado e eu sou a única pessoa que pode te ajudar com dinheiro e um teto para morar. — disse a garota com um grande sorriso no rosto.

    — Você tem um grupo, Evellyn?

    — Tenho sim.

    — Por que eles não vieram com você?

    — É porque você é o único integrante dele, claro, sem contar com a Aguro.

    Agora, Niko faz parte do grupo de Evellyn. Ele não estava exatamente incomodado com isso, mas com certeza não gostaria de ser um mercenário. Ele preferiria trabalhar em um comércio, seja sendo o dono de um pequeno estabelecimento ou sendo um trabalhador comum. Para ele, essa seria uma vida tranquila e ideal.

    — Você parece ser bem apegada nessa égua.

    — É, ela é como se fosse de família. Conheço desde que eu era pequena.

    Evellyn olhava o céu com um sorriso sincero, era o sorriso mais sincero que ela havia dado desde o começo do dia.

    — E ela era um espírito quando você a conheceu?

    — Não, é uma longa história, mas acho que é importante contar, tanto porque eu estou entediada dessa viagem, tanto porque faz parte da história e é importante você saber. 

    Evellyn deu um grande suspiro e ficou completamente em silêncio por alguns segundos, parecia que ela estava pensando em como começar a história. Toda essa situação estava deixando Niko ansioso, Evellyn, que era uma pessoa impulsiva e bem-humorada, de repente estava séria e pensante em uma situação que não parecia ser motivo para estar assim, então deveria ser algo realmente sério, tão sério que nem Evellyn conseguia levar na esportiva.

    — Quando eu era criança, eu morava ao norte do país, em Colvenfurt, era uma cidade grande, eu vivia com meu pai e minha mãe. Meu pai era professor e minha mãe, médica. Eu era uma garota normal, eu vivia muito bem e era até um pouco mimada, uma vida normal, não tinha problemas ou preocupações… até aquele dia, até aquele maldito dia. — durante a fala de Evellyn, ela parecia estar feliz, com um sentimento nostálgico, mas quando começou a falar do tal “maldito dia” seu rosto e voz se cobriram de ódio, que logo depois se transformaram em tristeza. — Esquece. Depois eu te dou um livro para você saber melhor do assunto.

    Niko ficou confuso. Ele não entendeu o porquê de Evellyn hesitar em contar a ele a história, que ela parecia determinada a contar. Essa confusão de Niko se tornou curiosidade.

    — Que assunto?

    — …A Guerra Incompleta…

    Niko deduziu que Evellyn possui algum trauma dessa “Guerra Incompleta”, algum parente que morreu, ou que ela estava em lugar onde estava tendo uma batalha ou até mesmo os dois. Mas no final, não importava o que ela estava fazendo na guerra, mas sim que ela tem traumas desse conflito e não seria respeitoso ele, mesmo que curioso, perguntar a ela sobre isso.

    — Eu sinto muito pelo que você tenha passado, Evellyn. — disse Niko, estendendo sua mão no ombro da garota de cabelos brancos, que deu um leve sorriso ao ouvir suas condolências.

    — Obrigada, Niko.

    Então, agora somente os passos da égua e das rodas da carroça estavam sendo escutados pela dupla. Era um momento silencioso, um silêncio que não era desconfortável, que nem mais cedo, era um silêncio calmo e confortável. Ambos os lados estavam satisfeitos com o silêncio que se manteve por horas, que acabou sendo responsável por Evellyn dormir sentada, enquanto Niko se mantinha acordado.

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