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    A freira que permanecia em oração diante da estátua da Deusa havia desaparecido.

    Diante do púlpito restava apenas o chão vazio. As lâmpadas a gás iluminavam o salão principal, amplo e deserto, bem como as fileiras de bancos. Vanna e os Guardiões vasculharam o recinto, que não era assim tão grande, mas não encontraram sinal daquela estranha ‘freira’.

    Vanna, é claro, sabia que essa freira provavelmente jamais ‘existira’ de fato — seu corpo certamente jazia no santuário subterrâneo havia muitos anos, e a figura que continuava a rezar no salão principal não passava de uma ilusão. Ainda assim, o súbito desaparecimento daquela imagem ilusória despertava um incômodo inquietante em todos.

    “Também não há nada nos corredores e nos quartinhos dos fundos!”

    Os últimos dois sentinelas retornaram ao salão e confirmaram o que temiam: a ‘ilusão’ da freira havia desaparecido por completo daquela igreja.

    Vanna franziu levemente a testa, raciocinando com rapidez.

    A ilusão desapareceu — mas quando, exatamente?

    Foi quando ela retornou pela segunda vez ao santuário subterrâneo? Ou quando viu aquela sequência de números rabiscada pela freira em seus momentos finais? Ou então…

    Foi quando as chamas verde-espectrais surgiram do nada e apagaram os vestígios do chão?

    Se foi a primeira hipótese, então o desaparecimento da ilusão pode ter sido causado por ela própria — a ‘observadora vinda do mundo real’ que desfez parte do cenário ilusório ao descobrir a verdade. Mas se for a segunda hipótese… então significa que o próprio Capitão Fantasma entrou em ação.

    Ao apagar os vestígios no santuário subterrâneo, ele também eliminou a ilusão da freira no salão principal — por motivos que ninguém jamais saberá.

    Permanecer ali já não traria novas descobertas. O mais urgente agora era informar o Bispo Valentine sobre tudo que haviam encontrado, e depois verificar no Arquivo se sua intuição sobre aquele pressentimento estava correta.

    Vanna partiu com seus subordinados, deixando a igreja. Ao cruzarem novamente a porta principal e olharem para trás, o que viram já era a aparência completamente arruinada e abandonada da capela.

    Vanna soltou um leve suspiro — ao menos ela e sua equipe haviam deixado aquele lugar estranho em segurança. Mas então, de repente, algo a fez levantar os olhos, instintivamente.

    No alto da torre pontiaguda da igreja, uma pomba rechonchuda os observava, inclinando a cabeça com um ar inofensivo.

    Por que essa pomba ainda está aqui?

    Vanna sentiu uma pontada de curiosidade, mas logo afastou essa leve dúvida. Após designar os soldados que ficariam de guarda ao redor da capela, ela se virou, entrou na carruagem e partiu rumo à catedral central.

    A pomba bateu as asas e alçou voo, afastando-se rapidamente da igreja.

    Mas a pomba não voou para muito longe — tão logo saiu do campo de visão dos Guardiões que permaneciam nos arredores da igreja, ela mergulhou diretamente em um beco próximo.

    Chamas verde-espectrais espirituais se ergueram com violência no beco deserto, tomando a forma de um portal e de um redemoinho. Duncan atravessou as chamas em passos firmes, e logo franziu levemente as sobrancelhas, lançando um olhar pensativo na direção da igreja.

    Tornar esse caso público havia sido a decisão certa — atrair Vanna e a força ‘oficial’ por trás dela, de fato, trouxe resultados além do esperado. A investigação avançava, e profissionais eram, afinal, profissionais: seu conhecimento estava em outro nível, muito acima de alguém como Shirley ou o Cão, que seguiam métodos mais… improvisados.

    Estando suficientemente próximo, Duncan podia escutar diretamente os arredores de um alvo marcado com seu ‘sinal’, E como esse sinal em Vanna fora reforçado desde sua última visita à loja de antiguidades, ele agora conseguia até mesmo captar certas flutuações emocionais da jovem Inquisidora. Durante toda a operação, ele e Ai pairaram no céu acima da igreja — e por meio desse vínculo, ele ‘assistiu’ à ação da equipe dos Guardiões do começo ao fim.

    Duncan permaneceu imóvel nas sombras do beco, ponderando sobre as informações recém-adquiridas.

    Aquela freira provavelmente lutou contra sua própria ‘projeção do Subespaço’ — não havia invasores externos. O inimigo surgiu da própria fenda em sua alma?

    Os sacerdotes deste mundo… Quando completamente tomados pela corrupção, tornavam-se portais entre o Subespaço e o mundo real?

    Será que isso se restringia aos sacerdotes, ou todos os humanos tinham esse potencial oculto, sendo os santos apenas mais perigosos ao sucumbir?

    Entre todos os dados, essa foi a revelação que mais chamou a atenção de Duncan — a mais surpreendente e a mais difícil de compreender.

    Duncan ainda sabia pouco sobre os deuses verdadeiros deste mundo e as igrejas que os veneravam. Mas ao menos durante esse tempo de observação, ele havia notado que essas igrejas defendiam a ordem e a proteção. Os sacerdotes garantiam a segurança da cidade-estado no campo do sobrenatural — eram, de fato, a linha de frente mais firme contra a contaminação que vinha das profundezas do mundo.

    No entanto, agora ele descobrira que essa suposta ‘linha de frente’ podia, sob certas condições, tornar-se ela mesma um canal de ligação entre o Subespaço e a realidade…

    Por quê?

    E se essa transformação não se limitasse aos sacerdotes? E se todos os humanos, em determinadas circunstâncias, pudessem se tornar portais para o Subespaço… o que isso significava?

    O temido Subespaço, visto por todos como uma ameaça insondável — talvez sua ligação com o mundo real e com os mortais fosse ainda mais intrincada do que Duncan imaginara…

    Além disso, havia a questão da sequência numérica deixada pela freira: ‘1885’.

    Esse era um detalhe que Duncan e Shirley não haviam percebido durante a exploração anterior — e, agora, o surpreendia.

    Se o raciocínio de Vanna estivesse correto, então aquela freira não morreu no incidente do Fragmento do Sol em 1889, e sim em 1885 — e durante todos os anos seguintes, aquela pequena capela esteve envolta por um espaço-tempo distorcido1!

    O que isso significava?

    Duncan permanecia absorto em seus pensamentos enquanto erguia lentamente a mão. Esfregou levemente a ponta dos dedos, e uma pequena chama verde-espectral acendeu diante de seus olhos, queimando em silêncio.

    Ele podia sentir com nitidez — a Chama Espiritual estava se espalhando. Espalhava-se em uma dimensão invisível, percorrendo o ‘outro lado’ da cidade-estado de Pland, transmitindo-lhe sinais fracos, mas contínuos.

    E esse era seu terceiro ponto de inquietação.

    Pouco depois de Vanna encontrar a sequência numérica no santuário subterrâneo, os números desapareceram subitamente. Naquele momento, houve uma breve manifestação da chama espiritual. A jovem Inquisidora certamente pensou que se tratava de uma intervenção do ‘Capitão Duncan’, mas na verdade…

    Duncan estava ainda mais perdido do que ela.

    Não foi ele quem apagou a sequência. Ele sequer sabia por que sua chama, antes lançada, teria reaparecido no santuário subterrâneo — e de forma tão precisa, queimando especificamente os números ‘1885’. A impressão que ele teve era que a chama não se propagou apenas pelo espaço… mas pelo tempo, alcançando diretamente o ano de 1885!

    Duncan ficou paralisado por um instante.

    E se… isso não fosse apenas impressão…?

    Por algum motivo, ele se lembrou da época em que investigava a caixa de madeira que continha Alice, e da visão que tivera da execução da Rainha de Geada meio século antes — e da advertência que escutou naquela ocasião:

    “…Por favor, não contamine a história…”

    Seu semblante endureceu. A expressão se fechou, as sobrancelhas se franziram pouco a pouco, e ele recordou de uma outra frase, ouvida recentemente:

    “Neste mundo, tudo pode ser contaminado — exceto o Subespaço.”


    Vanna retornou às pressas para a catedral. Embora sua intenção inicial fosse ir direto ao Arquivo para confirmar a sensação de estranhamento em sua memória, decidiu primeiro procurar o Bispo Valentine e relatar os resultados da investigação na capela do Sexto Distrito.

    O velho bispo permaneceu em silêncio por muito tempo depois de ouvi-la. Com a testa franzida, refletiu profundamente até murmurar com um tom quase dolorido:

    “Subespaço… é, definitivamente é o tipo mais problemático entre todos os tipos de problema…”

    “Quando estávamos prestes a sair, tanto a sequência que apontava para 1885 quanto a freira que orava no salão haviam desaparecido. Tudo indica que tem relação com os poderes do tal ‘Capitão Duncan’”, acrescentou Vanna. “Mas não insistimos na análise do local — havia risco de contaminação se permanecêssemos mais tempo.”

    “…Uma cautela correta”, respondeu o Bispo Valentine com um leve aceno de cabeça. “Ainda não sabemos exatamente qual é a posição daquele Capitão Fantasma. É verdade que ele nos revelou uma informação valiosa, mas também apagou pistas importantes… Seja como for, ele não é nosso ‘aliado’.”

    Vanna hesitou por um momento e então olhou para o velho à sua frente:

    “A sede da Igreja respondeu? O senhor já informou à Sua Santidade o Papa sobre a situação aqui?”

    Valentine a fitou por um instante, depois assentiu:

    “Já enviei todo o relatório à Catedral da Tempestade. Sua Santidade disse que enviará reforços o quanto antes — mas a nau da Igreja está longe de Pland, e mesmo a embarcação mais veloz levará dias para chegar. Por isso… devemos nos preparar para agir por conta própria.”

    Enquanto falava, o velho bispo suspirou suavemente e se virou para encarar a estátua sagrada da Deusa da Tempestade.

    “Uma catástrofe está se formando. Não sabemos quando ela irá explodir. Se a joia do mar chamada Pland será capaz de dissipar essas sombras… vai depender apenas de nós.”

    1. Só para ficar um pouco mais claro para quem esqueceu, estamos no ano 1900, 1889 foi quando houve o incêndio/vazamento de gás, 11 anos atrás. 1885 foi há 15 anos.[]
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