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    Aquela casa familiar permanecia em silêncio, de pé no final de uma rua tranquila. Pela janela do primeiro andar, escapava uma luz cálida e acolhedora.

    A noite já havia caído completamente, e os postes de luz ao longo da calçada tornavam o cenário ainda mais sereno. Heidi diminuiu levemente a velocidade do carro e, nos últimos cem metros antes da porta de casa, respirou fundo, com suavidade, tentando ajustar as próprias emoções.

    Ela havia ajudado Vanna a se recompor… mas sabia que, na verdade, seus próprios sentimentos não estavam tão tranquilos quanto aparentavam.

    A cena de despedida com o pai ainda parecia recente, como se tivesse acontecido momentos atrás. Naquele instante, ela não fazia ideia do que ocorreria na cidade-estado — mas seu pai, claramente, já sabia de algo.

    Foi uma despedida tardia, sem consciência de que seria a última.

    O pai mandara que ela buscasse abrigo na catedral. Ele, por sua vez, partira rumo à loja de antiguidades no Distrito Inferior… mas por que justo aquela loja?

    A dúvida surgiu, tênue, no coração de Heidi — mas ela logo a afastou. A luz acesa no vestíbulo da casa indicava que alguém a esperava.

    O carro cinza-escuro entrou suavemente no pátio. Heidi desceu, abriu a porta de casa e deu alguns passos para dentro… até parar subitamente, surpresa.

    Quem a aguardava não era seu pai — que, em teoria, já devia ter voltado —, mas sua mãe.

    A mulher usava um xale de lã listrado em azul-marinho, estava sentada à mesa de jantar numa cadeira de encosto alto e lia atentamente um jornal, com óculos delicados sobre o rosto. Ao lado, a mesa estava coberta por uma pilha de jornais antigos, provavelmente trazidos do escritório do pai.

    Heidi ficou imóvel na entrada da sala de jantar, sem saber como reagir.

    Ela já nem se lembrava há quanto tempo sua mãe não saía do quarto. Era como se, há muitos anos, a mulher só existisse dentro daquela penumbra constante — e o assento vazio ao lado da mesa de jantar permanecia solitário. Seu pai dizia que aquela cadeira era ‘reservada para a mamãe’, mas ninguém jamais a usava.

    Heidi sempre achou aquilo estranho. Mas, com o tempo, acostumou-se à ausência constante da mãe. Até que agora, vendo-a sentada ali, tão natural, a sensação era quase irreal — como se estivesse vendo um fantasma do passado.

    Ela deu dois passos à frente, ainda atônita. O som de seus passos enfim chamou a atenção da mulher à mesa. A mãe levantou os olhos e, ao reconhecer a filha, abriu um sorriso caloroso:

    “Ah, Heidi. Você voltou.”

    “Eu…” Heidi abriu a boca, mas por um instante não soube como falar com a própria mãe. Ela a visitava quase todos os dias no quarto, perguntava como estava… e mesmo assim, agora, sentia como se não a visse há mais de uma década.

    “Fiquei um pouco ocupada na catedral… A senhora está bem?”

    “Estou ótima. Estou bem aqui”, respondeu a mãe, sorrindo, com um brilho no olhar que Heidi não conseguiu decifrar. Ela se levantou devagar, caminhou até a filha, encarou o rosto da jovem com um ar sonhador e passou a mão carinhosamente pelos cabelos dela. “Deixe-me olhar pra você… Faz tanto tempo que não olho você de verdade…”

    “Mas… nós não nos vemos todos os dias?” disse Heidi, quase por reflexo, mas logo olhou para a mãe com preocupação. “A senhora saiu do quarto? Está se sentindo melhor hoje?”

    A mãe sorriu. Parecia falar tanto para si mesma quanto para a filha:

    “Já estou bem… já estou bem… Ah, e o Morris? Por que ainda não voltou?”

    “O pai ainda não voltou?” Heidi se sobressaltou com a pergunta, um traço de preocupação surgindo em seu peito.  “Ele deveria ter chegado antes de mim… O lugar pra onde ele foi é mais perto que a catedral, e ele não se atrasaria tanto quanto eu.”

    “Talvez o carro tenha quebrado no caminho”, respondeu a mãe lentamente. “Ele nunca dirigiu muito bem. Venha, vamos esperar por ele juntas.”

    Heidi hesitou por um momento, mas acabou assentindo. Acompanhou a mãe de volta à mesa de jantar e logo notou a refeição farta sobre a toalha — pratos que não pareciam em nada com aqueles preparados pelas empregadas temporárias que contratavam de tempos em tempos.

    “A senhora que fez tudo isso?” perguntou, surpresa. “Faz tanto tempo que não cozinha…”

    “Sim, há muito tempo mesmo. Já nem lembrava onde guardamos os ingredientes. A moça que nos ajuda precisou me mostrar muita coisa. E nem sei como está o sabor”, disse a mãe, sorrindo com suavidade. “Felizmente, eu ainda lembro do básico.”

    Heidi olhou para a comida, hesitante, e pegou um garfo, como se fosse provar um pouco — mas antes que pudesse levar algo à boca, a voz da mãe soou ao seu lado:

    “Espere seu pai para começarmos.”

    O gesto dela parou no ar.

    Aquela frase… fazia muitos anos que Heidi não a ouvia.

    Foi então que um som suave veio da direção da porta — algo semelhante ao bater de grandes asas, misturado a estalidos leves. Antes que Heidi pudesse identificar a origem, escutou o tilintar de chaves, o girar de uma maçaneta… e a porta da frente se abriu.

    O pai estava de volta.

    Morris ficou parado à entrada, atônito. A tontura causada pela transmissão direta feita por Ai do Banido ainda não havia passado. Seus sentidos ainda estavam embaralhados, girando, e por um longo instante ele achou que tudo não passava de uma alucinação.

    Ele via sua esposa sentada à mesa, esperando por ele para jantar.

    Só então percebeu que aquilo era real.

    O ‘milagre’ que ele havia suplicado ao Subespaço onze anos atrás… finalmente se solidificara deste lado do Véu, após o entrelaçar do fogo e da história. Um desejo que ele sequer ousava cultivar em sonho — agora, diante de seus olhos.

    Como uma estátua emudecida, Morris permaneceu ali por um tempo. Mas então, finalmente, deu um passo à frente… e mais outro… e logo caminhava com pressa crescente.

    Dividir a carne da Prole do Mar Profundo com os companheiros no Banido, escutar ensinamentos de uma sombra do Subespaço, tornar-se membro de uma sociedade secreta… até pouco tempo, tudo isso pesava sobre os ombros de Morris como um fardo sufocante. Mas agora, repentinamente, esse peso parecia ter sumido. E, nesse alívio súbito, ele vislumbrou uma explicação que fazia mais sentido do que qualquer outra:

    Todo milagre exige um preço. E agora, esse preço fora cobrado da forma mais gentil e reconfortante possível.

    Era hora de aceitar.

    Sua esposa levantou-se da mesa, e Morris a abraçou com força.

    “Finalmente… finalmente consegui ver você…” murmurou o velho acadêmico, com a voz embargada. Temia que Heidi ouvisse, mas também temia que a mulher à sua frente não o escutasse. “Eu…”

    “Já basta, a menina está olhando”, disse a esposa com um sorriso tranquilo. “Você vai ter muito tempo pra me explicar tudo depois, não precisa se apressar agora.”

    “Ah… ah, sim, claro… você tem razão.”

    Morris respondeu com certo embaraço e logo a soltou. Quando se virou, viu Heidi observando tudo com um olhar cheio de surpresa.

    Cof, cof. Cheguei tarde… o carro quebrou no caminho, amanhã vou precisar chamar um mecânico pra rebocar”, improvisou ele, visivelmente desconfortável, antes de mudar de assunto às pressas: “Está tudo bem com você? A catedral, deu tudo certo por lá?”

    “Além de um baita susto e muita confusão, saí ilesa — como todo mundo”, respondeu Heidi, fitando o pai de cima a baixo. “Mas… e o senhor? Tá meio estranho. Aconteceu alguma coisa no caminho?”

    “Eu? Que nada!” disse Morris, quase alarmado com a ideia de ter que explicar o que vivera. Para escapar da conversa, seu olhar caiu sobre a mesa posta.

    O rosto do velho erudito se contorceu numa expressão difícil de descrever.

    “Na verdade… eu já comi antes de vir”, confessou com hesitação. “No nav… na casa do Sr. Duncan.”

    Lembrou-se dos peixes — aquelas criaturas grotescas e ameaçadoras que, no Banido, ele engolira a contragosto sob o olhar do Capitão. Depois disso, tudo era um borrão…

    Só se lembrava de que… estava uma delícia.

    Agora, porém, não conseguia imaginar botar mais nada na boca.

    Mas foi então que a voz da esposa o alcançou:

    “Fui eu mesma que preparei tudo isso.”

    “Fazia anos que a mamãe não cozinhava”, acrescentou Heidi. “Ela se sentiu um pouco melhor hoje e…”

    “Então eu como mais um pouco!” declarou Morris antes mesmo da filha terminar. Sentou-se rapidamente à mesa, pegou o prato de sopa e tomou uma boa colherada.

    “E aí, como está o sabor?” perguntou a esposa, com um olhar esperançoso.

    “Está… meio salgada”, disse ele, depois de hesitar um pouco. Mas logo pegou a tigela e tomou mais várias colheradas seguidas, sorrindo enquanto engolia. “Bem salgada… você sempre exagerou no sal…”

    “Se tá ruim, é só parar de comer!”

    “Eu não disse que tá ruim…”

    “Então para de falar e coma em silêncio! Tem que comentar tudo agora, é?”

    Heidi olhou para o pai… depois para a mãe.

    Fazia tantos anos que ela não ouvia esse tipo de conversa — e, mesmo após todo esse tempo, parecia que nada havia mudado.

    Ela sorriu. Abaixou a cabeça e cortou um pedaço da carne grelhada, levando-o à boca.

    Sim… estava um pouco salgada.


    O tio já havia ido dormir — e dormia profundamente.

    Parecia que fazia muito, muito tempo desde a última vez que ele teve um sono tão tranquilo, a ponto de adormecer no meio de uma conversa.

    Vanna caminhava lentamente até seu quarto.

    Usava um vestido caseiro e leve, os cabelos presos em um rabo de cavalo simples. Sem a armadura destruída e a imensa espada, a Inquisidora que retornara do campo de batalha agora se parecia com uma jovem comum, com seus próprios sentimentos e preocupações.

    Em casa, ela nunca escondia o que sentia — e o tio, claro, havia notado seu ar pensativo. Mas, durante a conversa, ele não lhe perguntou nada.

    Nenhum dos dois mencionou o assunto da Bênção do Subespaço.

    O tio claramente não queria sobrecarregá-la ainda mais.

    Mas Vanna sabia… aquele peso dentro de si não vinha apenas da tal bênção. E não tinha a ver com vida ou morte.

    Ao chegar ao quarto, fechou a porta, foi até a penteadeira e abriu uma das gavetas. De lá, retirou uma adaga cerimonial ornamentada com belos entalhes.

    Era uma relíquia da Igreja do Mar Profundo — um presente entregue pelo Bispo Valentine quando ela fora batizada.

    Aquela relíquia… marcava o início de sua fé na Deusa da Tempestade, Gormona.

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