Índice de Capítulo

    O urro da voz áspera de Cão, estridente como um gongo rachado, ecoou como um trovão dentro da casa precária. E os atacantes envoltos em mantos negros esfarrapados — figuras que lembravam monges penitentes — se espantaram ao perceber que um Demônio Abissal era capaz de falar com tamanha clareza e racionalidade.

    Mas o que aconteceu no instante seguinte os surpreendeu ainda mais.

    Shirley girou a corrente com força e lançou o Cão Abissal preso a ela como uma bola de ferro viva, arremessando-o diretamente contra o ‘Pregador do Fim’ mais próximo.

    Ela, na verdade, não sabia muito sobre esses tais Pregadores do Fim. Sabia apenas, de forma vaga, que se tratavam de cultistas — ainda mais fanáticos e extremos que os demais — e que o ‘senhor’ que veneravam era o próprio Subespaço. Shirley não fazia ideia do porquê uma horda de malucos desses tinha aparecido do nada na cidade-estado de Pland, muito menos do porquê tinham ido atrás dela.

    Mas isso não importava.

    A experiência de vida nas vielas e esgotos ensinara uma lição simples: quando se está em perigo, não perca tempo tentando entender o que não faz sentido. O mais útil é sair quebrando tudo que se mexe!

    O enorme Cão Abissal cortou o ar como um projétil, e no instante seguinte atingiu em cheio um dos ‘Pregadores’. O som abafado do impacto de carne e osso ecoou, e o cultista foi lançado com violência contra uma viga próxima, caindo logo depois no chão com o corpo retorcido em ângulos absurdos.

    Shirley puxou de volta a corrente, trazendo Cão de volta a seu lado, e já girava novamente a arma viva, mirando no próximo inimigo.

    Mas nesse breve intervalo, os demais encapuzados já haviam se recuperado do susto. Eram claramente mais experientes do que os cultistas solares de nível mais baixo que Shirley costumava enfrentar. Mesmo diante de um estilo de combate tão raro e inusitado, eles rapidamente se reorganizaram. Quando o Cão investiu novamente, eles se dispersaram com agilidade.

    Um deles passou raspando pelo crânio do Cão e, num gesto rápido, apontou para Shirley. De dentro do capuz veio uma voz rouca e sombria: “Tu sucumbirás ao cansaço!”

    “Que merdas místicas você tá falando, seu desgraçado1!” Shirley, já em fúria extrema, ficou ainda mais irritada com aquele tom profético. Girou o corpo num movimento ágil, pisou firme e lançou a corrente com violência. O Cão Abissal voou novamente, acertando o cultista no meio do peito e o lançando longe com um estrondo seco.

    Mas foi ao executar esses ataques que Shirley começou a perceber algo estranho em si mesma.

    Sentiu uma fadiga leve — não muito intensa, mas perceptível. E, ao mesmo tempo, sua mente começou a zumbir. A raiva que ardia dentro dela parecia incontrolável, como se quisesse explodir por completo. Um impulso irracional de largar toda defesa e partir direto para o ataque total, mesmo que significasse a própria morte, pulsava dentro dela com violência. A cabeça latejava.

    Um rangido estranho e molhado ecoou de repente. Shirley se virou instintivamente e viu, estarrecida, que o cultista que acabara de ser esmagado contra a parede estava se levantando.

    O corpo do homem estava coberto de sangue, vários ossos certamente haviam sido quebrados — mas ele parecia não sentir nenhuma dor. Levantou-se como se nada tivesse acontecido, mesmo jorrando sangue, e ergueu os dois braços ao alto: “Meus membros não morrerão sob a maldição da carne!”

    Ao som daquela pregação enlouquecida, os outros Pregadores do Fim pareceram tomar coragem e vigor infinitos. No instante seguinte, Shirley viu, horrorizada, seus corpos começarem a se transformar.

    Aqueles corpos esqueléticos começaram a se contorcer e crescer. Ossos se esticavam em espinhos grotescos. Músculos enrijecidos e tendões viravam chicotes orgânicos, transformando-se em verdadeiras armas. Os corpos se rasgavam e se remodelavam em meio a uma dor avassaladora — mas, em vez de gritar, os fanáticos gargalhavam, exaltavam, entoavam cânticos insanos.

    E então, com fúria bestial, avançaram todos de uma vez na direção de Shirley.

    “QUE MERDA É ESSA?!” Shirley não esperou nem por um segundo enquanto os Pregadores do Fim começavam a se deformar. No instante em que viu o primeiro deles entrar no processo de mutação, girou sua corrente com força, fazendo o Cão assobiar no ar antes de atingir em cheio o inimigo mais próximo. O impacto foi brutal — o corpo do cultista teve músculos e ossos dilacerados, a mutação foi interrompida, embora ele não tenha morrido de imediato.

    Porém, só esse movimento bastou para que Shirley sentisse um cansaço ainda mais intenso do que antes. Sua cabeça foi invadida por uma onda de fúria descontrolada, mais afiada e dolorosa que a anterior, como se mil agulhas a trespassassem por dentro.

    Sons que não existiam começaram a invadir seus ouvidos. Cada músculo parecia estar sendo devorado por presas invisíveis. Era uma dor cruel, selvagem, que dava a sensação de que suas fibras musculares estavam prestes a se desprender do corpo.

    “Esses ‘Pregadores’ são lunáticos que abraçaram o Subespaço de forma voluntária! As palavras e formas deles carregam contaminação!” A voz de Cão explodiu na mente de Shirley, mais urgente do que nunca. “Não deixe eles continuarem falando! Qualquer filho da puta que abrir a boca, você mete a porrada! Não encare os olhos deles! Não escute o que gritam!”

    Num instante, um brilho cortante apareceu na visão periférica de Shirley. Por puro instinto, ela tentou se esquivar — mas não foi o bastante. Uma lança óssea perfurou seu braço. Reagindo por reflexo, ela chicoteou a corrente com violência, afastando o inimigo.

    Mas o golpe havia cobrado seu preço: seus braços e pernas agora pareciam duas vezes mais pesados. E pela primeira vez, manchas negras começaram a surgir nos cantos de sua visão.

    Outro Pregador se aproveitou do momento. Abriu os braços em prece e bradou com fervor doentio:
    “Tu sangrarás sem cura…”

    BANG!”

    “VAI PRO INFERNO, SEU MALDITO!” rugiu Shirley, girando o Cão com um impulso completo. O impacto esmagador cravou o mutante — já coberto de espinhos ósseos — contra a parede.

    Mas mal teve tempo de respirar quando uma dor lancinante atravessou suas costas.

    Uma lança óssea, fina e traiçoeira, vinda de um ponto cego, perfurou profundamente sua carne. Se não fosse pelo corpo resistente que ela desenvolveu ao longo dos anos de simbiose com o demônio abissal, aquele ataque teria sido fatal — teria atravessado seu tronco de lado a lado.

    O corpo de Shirley caiu para frente involuntariamente. No mesmo instante, Cão saltou diante do atacante que avançava para finalizá-la, escancarou as mandíbulas e cuspiu uma torrente flamejante de chamas negras misturadas com um ácido corrosivo mortal.

    O atacante foi forçado a recuar por ora, mas o estado de Shirley era péssimo. Ela se apoiou com dificuldade numa parede próxima, tentando manter-se em pé enquanto sentia o sangue escorrendo livremente pelas costas, seus músculos contraindo-se de maneira involuntária e dolorosa.

    A contaminação dos Pregadores do Fim estava surtindo efeito — mesmo com a resistência que a simbiose com o Demônio Abissal lhe proporcionava, ela havia sido pega de surpresa por maldições e enfraquecimentos logo no início do confronto, e agora conseguia sentir, nitidamente, seu corpo começando a… sair de controle.

    O sangue parecia ferver, os ruídos em sua mente aumentavam em intensidade, e seus músculos se contorciam como se estivessem sendo devorados por dentes invisíveis. Quando olhou para o ferimento no braço, Shirley viu fumaça saindo da carne rasgada — mas, ao invés de cicatrizar, o ferimento estava se enchendo de carne viva, horrível e pulsante. O sangue, como se tivesse vontade própria, se agitava ao redor, coagulando e tomando forma de maneira monstruosa.

    A ferida nas costas… provavelmente estava da mesma forma.

    Merda… com esse esforço todo, só derrubei três…”

    Ela cuspiu sangue para o lado e, mesmo com o rosto coberto de ferimentos, riu entre os dentes.

    “Já foi um ótimo trabalho”, rosnou Cão ao seu lado, a voz mais fraca do que o normal — ele, que funcionava como primeira barreira contra a contaminação, havia sofrido ainda mais com os efeitos dos inimigos. “Esses são monges fanáticos em nível de sacerdócio, não um bando de idiotas fazendo reunião no porão pra doação coletiva… Bater neles assim é o mesmo que invadir uma capela da cidade com tudo… valeu a pena.”

    “Porra nenhuma! Um monte de marmanjos gigantes… e eu aqui, uma pobre garotinha inocente sendo espancada… que vergonha pra vocês”, Shirley ergueu o rosto, ensanguentado, encarando os três Pregadores restantes que agora a cercavam. Seu olhar era feroz. “O que eu fiz pra vocês, hein?”

    Os três ainda de pé já haviam se transformado por completo: ossos saltando da carne, músculos torcidos, os mantos negros como mortalhas pendendo de corpos monstruosos e profanados, imponentes sob a luz difusa da rua.

    Eles não responderam — como caçadores, não dialogavam com a presa.

    Shirley tossiu mais sangue, olhando ao redor com dificuldade.

    Apesar do barulho da luta, ninguém aparecera. Nenhum guardião, nenhum vizinho. A rua permanecia envolta em uma névoa indistinta, quieta demais.

    Estava claro: toda a casa havia sido isolada sob alguma espécie de barreira. Os atacantes tinham planejado tudo com extremo cuidado.

    A mobília? Destruída.

    As paredes e colunas? Prestes a ruir.

    Até o único guarda-roupa tinha virado entulho. As roupas e a gaveta com moedas espalhadas no chão, encharcadas de sangue e corroídas por ácido.

    A coisa mais valiosa da casa, a lamparina de óleo, havia sido derrubada, com o vidro quebrado em pedaços.

    “Era só isso que eu tinha… e vocês destruíram tudo…” Shirley já não conseguia se manter em pé — escorregava aos poucos até o chão, mas ainda mantinha a cabeça erguida, olhando diretamente para o inimigo que levantava as lanças ósseas para finalizar o golpe.

    “…Desgraçados… vou cuspir sangue na cara de vocês…”

    As lanças desceram, prontas para perfurar.

    Mas, de repente, desaceleraram.

    Como se o tempo tivesse falhado por um instante, as lanças congelaram no ar, duplicando-se em imagens fantasmas sobrepostas.

    E então — Uma labareda verde-espectral explodiu de forma abrupta no interior da casa, mesmo sob a barreira que deveria isolar o espaço por completo.

    Do fogo, uma colossal ave esquelética surgiu voando em círculos no ar. A voz aguda, estranha e feminina rasgou o silêncio e penetrou nos ouvidos de Shirley:

    “Nossa guerreira está em combate com o inimigo… Transmissão bem-sucedida!”

    1. No original em chinês, basicamente todos os palavrões são censurados com X, então vou improvisar quando eles aparecerem.[]
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