Capítulo 52 - O Sonho
A praça da vila estava cheia, quase todos os moradores estavam lá. Tudo isso pelo esperado show de marionetes de Janric, um apresentador de shows ao ar livre. Era final de tarde e a luz do sol se refletia nas bordas das casas e das árvores. Na praça, havia algumas barraquinhas de comida e no centro dela uma carroça colorida cercada de cadeiras ocupadas pelas pessoas. Havia panos pendurados, bandeirolas bordadas à mão e uma cortina vermelha improvisada. Atrás dela, o palco de madeira do “Teatre dels Fantásis”.
Brigitte escolheu um lugar e se sentou entre os pais, suas pernas ficaram balançando no ar, com seus olhos fixos na carroça. Já tinha visto apresentações de marionetes antes, aquelas que contavam histórias de fazendeiros bobos, de gansos que falavam, de pescadores azarados. Por essas histórias não terem chamado muito sua atenção, a garota ficou indiferente sobre a apresentação.
— Dizem que a apresentação vai ser da história da Princesa Âmbar. — cochichou a mãe, enquanto ajeitava o cabelo da filha atrás da orelha. — É uma história antiga. Meu avô conhecia de cor.
Brigitte nunca tinha ouvido falar nessa historia, mas somente pelo nome aquilo deixou ela curiosa, essa curiosidade se transformou em dúvida e a dúvida em palavras.
— Como é a história? — perguntou a criança.
— Se eu contar agora vai perder a graça da apresentação.
— Sim, é só esperar um pouco filha. A apresentação começa daqui a pouco. — completou o pai.
As lamparinas em torno do palco foram acesas quando o sol se abaixou por completo, e a plateia, agora maior, foi se silenciando aos poucos. Um homem de chapéu largo e colete subiu na carroça, com um bastão fino com um sino pendurado na ponta. Blém-blém.
— Boa noite, senhoras e senhores, crianças e adultos de todas as idades! — anunciou ele, com voz forte. — O Teatre dels Fantásis apresenta hoje uma história de coragem, luz e esperança. A história da lenda da Princesa Âmbar!
Realmente sua mãe estava certa sobre a história. Aquilo deixou Brigitte levemente impressionado, fazendo-a cogitar se sua mãe era uma vidente ou algo assim.
Um leve sopro de flauta atravessou a praça. As lamparinas se apagaram e, por um instante, tudo ficou escuro. Brigitte arregalou os olhos, suas mãos pequenas apertaram as bordas da cadeira, e ela se inclinou para frente sem perceber. Ainda não sabia por que estava com tanta curiosidade sobre a apresentação.
Foi então que uma única luz lilás surgiu por trás da cortina. Ela projetava sombras numa lona translúcida estendida ao fundo do palco. Assim, junto de uma música de ação, foi iniciada a história.
“Há muito tempo, o céu apagou-se por sete longos invernos. Nenhuma estrela nasceu. Os bardos se silenciaram e os lobos ouvivam para um céu mudo. Tudo estava perdido… isso porque Umbral, o rei do reino da escuridão, havia enforcado o Sol na árvore de ferro, fazendo a luz sumir deste mundo.”
O som de um trovão soou, feito com uma chapa de metal agitada nos bastidores. As crianças menores taparam os ouvidos e algumas até mesmo fecharam os olhos de medo.
Na sombra da lona, surgiu a silhueta de Umbral. Ele possuia chifres compridos, mãos em forma de galhos e olhos vermelhos. Junto de sua aparição, marionetes penduradas tremiam ao redor, simulando o medo de povo com a chegada do rei da escuridão.
“E foi nesse tempo que nasceu Âmbar. Sem mãe. Sem pai. Apenas uma criança caída do céu numa concha de luz dourada. Nascida com um único objetivo: derrotar Umbral e trazer a luz de volta ao mundo.”
Um boneco desceu do alto, envolta em um pano dourado que brilhava em amarelo. Ela tinha cabelo azul-escuro e uma marca em espiral brilhante no peito.
“Ela estava sozinha, não tinha ninguém para guiar a recém-chegada princesa da luz. Ela não tinha ideia de como concluir seu objetivo. Ali mesmo, pensou em desistir de sua missão…
— Oh, senhorita! — ecoou uma voz distante.”
Então uma segunda marionete apareceu ao lado da princesa caída, triste. Aquela era a silhueta de um cavaleiro com uma capa e uma longa espada.
“— O que uma criança como tu fazes neste lugar isolado? — completou o cavaleiro”
O boneco de Âmbar, a princesa caída do céu, levantou lentamente a cabeça. Os fios que a seguravam se esticaram sutilmente, dando a impressão de hesitação e fraqueza.
“— Estou perdida. Sou uma filha do sol, enviada para trazer de volta a luz a este mundo. Mas não sei como fazer… Eu falhei na minha missão.”
A marionete do cavaleiro, de movimentos firmes e gestos exagerados, deu um passo à frente.
“— Você está se precipitando. Ninguém que carrega luz dentro de si está perdido. Eu sou Vantrel, o cavaleiro errante. Saiba que se teu coração ainda pulsa, então tua missão está viva. E eu, minha princesa, irei contigo até o fim.”
A marionete do cavaleiro curvou-se diante de Âmbar, apoiando um joelho no chão e tocando a cabeça com a ponta da espada.
A plateia reagiu com algumas palmas tímidas. Brigitte, porém, ergueu as sobrancelhas, surpresa com a resposta do cavaleiro. “Por quê?”, ela pensou. “Por que ele jurou isso? Ele nem conhece ela. Por que seguir alguém assim, do nada?”
No palco, a princesa Âmbar abaixou a cabeça, com os fios grudados ao boneco caindo em queda livre.
“— Eu não pedi para nascer com esse fardo. Eu não sei lutar. E mesmo que soubesse… por que eu? O mundo já está mergulhado na sombra. Talvez não tenha salvação.”
Vantrel não respondeu de imediato. Caminhou até ela, devagar, e tirou a espada das costas. Mas não foi para lutar, ele fincou-a no chão.
“— Porque você é a única que pode salvar nosso povo. Essa é tua missão. Somente você pode trazer a felicidade de volta para o povo e o sorriso para o rosto das crianças.”
A cortina do fundo se abriu lentamente, revelando uma pintura escura e ondulante representando o Reino de Umbrium: torres quebradas, rios pretos e um céu sem lua e sem estrelas.
“Salvar todo mundo? Sozinha? Por quê? Não tem mais ninguém para isso? E se ela errar?”, foi o que Brigitte pensou.
Âmbar, a princesa caída do céu, olhou para a vila destruída. Depois para as próprias mãos, pintadas de dourado, tremendo sob os fios. Ela se levantou e deu um passo à frente. Depois outro. Até que, devagar, ergueu a cabeça.
“— Se eu puder evitar uma única lágrima… então vale a pena.”
Brigitte sentiu um arrepio. Uma parte dela queria dizer: não vale tanto risco. Mas outra parte… mais baixa, mais profunda, como uma semente brotando, começava a entender a personagem.
Vantrel pegou de volta a espada.
“— Então vamos. — disse o cavaleiro com a cabeça erguida. — Até o último passo.”
A luz do palco piscou três vezes. Pequenos sons de tambor ecoaram de trás da carroça. As cortinas se fecharam por um segundo e então se abriram revelando uma nova paisagem: um vale cinzento, árvores secas recortadas em madeira, com teias desenhadas nos galhos.
“E assim começaram os passos da lenda. A princesa da luz e o cavaleiro do povo cruzaram florestas esquecidas, enfrentaram as Bocas de Névoa, o Cão de Ossos, e as Lágrimas de Vidro.”
Pequenos bonecos surgiam a cada desafio: monstros assustadores, sombras com olhos costurados e criaturas que zumbiam e pulavam ao redor dos heróis. Tudo num ritmo encantado e ritmado.
Brigitte assistia com os olhos brilhando. “Ela luta mesmo com medo… pensou. Mas para quê tudo isso? Não seria mais fácil se esconder? Esperar a luz voltar sozinha?”
Âmbar enfrentava cada inimigo com hesitação no começo, como se ainda duvidasse de si. Mas cada vez que libertava uma vila, com lamparinas acesas, crianças dançando, moradores erguendo bandeiras douradas, a princesa sorria e começava a confiar cada vez mais em si.
“E a cada passo, a luz voltava a piscar nas janelas dos esquecidos. Com cada vilarejo salvo, um novo canto era ouvido. “Maldita seja a luz que luta contra minhas forças!”, dizia Umbral, preocupado com o futuro de seu reinado de horror.”
Brigitte viu os bonecos sorrindo, as vilas celebrando, as mãos se unindo e ela entendeu. “Eles estão tão felizes… isso por causa dela…”
Um novo cenário se ergueu no palco: a Árvore de Ferro, seca e com raízes contorcidas. E abaixo dela, a sombra de Umbral, o rei da escuridão.
“Mas toda luz cria uma sombra… E nas profundezas do fim do mundo, Umbral esperava os herois. O guardião do silêncio, inimigo… da esperança… Assim, a batalha final começou.”
A sombra de Umbral cresceu pelo palco como uma praga viva. Lutando sem dificuldades contra os dois. Vantrel logo caiu e Âmbar estava sozinha. Não havia saída. Não havia esperança.
Brigitte apertou os joelhos com força. Aquilo… não era justo. Ela tentou. Ela fez tudo certo. Salvou as pessoas e mesmo assim aquilo não iria adiantar, ela iria morrer. Por que isso tinha que acontecer?
Mesmo sem esperanças, a princesa olhou para o céu.
“E quando tudo parecia perdido… Âmbar lembrou-se dos sorrisos. Dos rostos salvos. Das mãos dadas.”
Âmbar ergueu o rosto, esticou o braço e disse, com a voz da atriz por trás da carroça: Basta.
A voz da princesa ressoou firme, mesmo no corpo leve da marionete. As cordas que a sustentavam vibraram, como se a própria madeira tivesse ganhado propósito.
“E foi aí que a filha do sol finalmente compreendeu…”
Âmbar abriu os braços. A espiral no peito brilhou com uma luz dourada tão forte que tingiu os panos do palco. Um raio amarelo surgiu, lançado com um estalo abafado por todo o palco.
As crianças da plateia gritaram de surpresa, os mais velhos arregalaram os olhos e Brigitte sentiu os pelos dos braços arrepiarem.
“…que a luz não precisava pedir permissão para existir.”
Faixas douradas surgiram de trás das cortinas, arremessadas para o alto por varas invisíveis. Elas dançaram pelo palco como serpentes celestiais, girando em espiral ao redor de Umbral, que agora se contorcia como se estivesse sendo queimado por dentro.
“— O quê?! Que poder é esse?! — gritou o lorde.”
A sombra se estilhaçou em pedaços que voaram pelo palco. Os olhos vermelhos apagaram, um a um. A Árvore de Ferro, antes retorcida e seca, foi lentamente trocada por uma estrutura coberta por folhas verdes feitas de seda costurada. Frutas douradas apareceram nos galhos, penduradas por fios brilhantes.
O palco, antes escuro, foi tomado por um clarão suave, quente e contínuo. As lamparinas se acenderam todas ao mesmo tempo, como se tivessem esperado aquele momento. A cortina do fundo subiu e revelou uma pintura pintada à mão: um horizonte claro, campos dourados, e ao longe, uma torre de vidro reluzente.
A marionete de Vantrel levantou-se com dificuldade. Ele olhou para Âmbar, ferido, sujo, mas com um sorriso sincero. A princesa estendeu a mão e ele a segurou.
“E assim… nasceu a lenda da princesa caída do céu. A que salvou o mundo da escuridão.”
As lamparinas do palco se acenderam de uma vez. O céu da vila, já escuro, parecia mais azul por um instante. O público explodiu em aplausos.
— Bravo! — gritou alguém.
— Bravíssimo! — respondeu outro.
Janric surgiu na frente do palco, junto dos dubladores dos personagens. Todos se curvaram em agradecimento
Mesmo com toda aquela agitação, Brigitte não aplaudiu. Ela estava olhando para os bonecos abraçados, para o cenário iluminado, para a multidão feliz. E, pela primeira vez, compreendeu. “Mesmo depois de sofrerem tanto, eles estavam sorrindo. Ela que fez isso. Ela deu esperança para eles… Eu quero fazer isso também.”
Um pequeno estalo vibrou na ponta dos dedos. Ela olhou a mão, como se um segredo tivesse acabado de nascer ali.
— Mãe, pai… — disse ela, quase sussurrando. — Eu quero ser que nem ela.
Os dois se viraram para ela. Com um sorriso ela completou:
— Eu quero ser uma heroína.
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