Capítulo 20
— Acorda, Kanoff Maru!
Senti gosto de sangue. Meu rosto gelou. Um medo instintivo — que jamais pensei que fosse sentir — dominou minha mente por completo.
Ele… usou o nome de patriarca?
— Meu pai morreu!? — Minha voz saiu quase como um choro. Meu coração estava acelerado. Faltou-me o ar e quase vomitei. Ao abrir os olhos, a primeira coisa que vi foi aquela imagem asquerosa.
Procurei desesperadamente o rosto da minha mãe e, quase chorando, perguntei:
— Mãe… o pai morreu?
Ela demorou para responder. Fiquei observando seu rosto, e a única coisa perceptível era dor e sofrimento.
— Sim. Foi dado como morto. Você… agora é o líder da casa.
— Peço desculpas, guafu. Achei que tudo já estivesse esclarecido — disse o maldito curandeiro, sem nem sequer olhar para minha mãe. Fez uma longa reverência como forma de pedido de desculpas, mas suas palavras doces não me enganavam.
Meu pai foi dado como morto. Isso explicava muita coisa. Mas e meu tio? Era dever dele proteger nossa casa. Por que ele não ajudou?
— Mãe, o que aconteceu com Chiaro?
— O antigo líder da vila lutou bravamente, mas não conseguiu sobreviver — interveio o curandeiro.
Aquilo explicava tudo. O único que poderia responder pelos servos, pelas terras e pelos recebimentos era eu. Contudo, como eu estava quase morto, isso complicou muito as coisas. Acredito que muitos aproveitaram a oportunidade e simplesmente pararam de pagar os tributos.
Minha família tinha vários negócios na vila portuária, muitos servos e diversas propriedades alugadas. Mas a situação ainda era estranha. Em apenas cinco meses, minha família foi arruinada — e isso me deixou pensativo.
Uma tosse seca e irritante me tirou dos pensamentos. Retribuí com um olhar fixo de desdém.
Ele continuava o mesmo: um homem magro, de face esquelética e olhos negros, fundos. Usava sempre um capuz negro, cobrindo quase todo o rosto, e roupas longas para esconder todo tipo de coisa.
— Você está melhor hoje?
Recebeu apenas um olhar carrancudo como resposta.
— Não importa. Os espíritos lhe deram um novo começo. Você deve sua vida a eles. Porém, ainda precisamos realizar o ritual de agradecimento.
Sem esperar minha autorização, ele começou o ritual.
O quarto já estava impregnado com o cheiro de fumaça velha — acredito que ele já havia preparado o lugar. Ao sentir aquelas mãos repugnantes sobre minha cabeça, fui surpreendido por um grito áspero, e a língua dos espíritos foi pronunciada.
Muitos na aldeia o temiam. Eu, apenas o desprezava. Para mim, aquilo não passava de grunhidos e gemidos. Como não pude impedi-lo, tentei ignorar — mas não por muito tempo.
Fui tirado da minha completa distração por um grito do curandeiro.
— Este garoto não está totalmente curado! Ele deve ir o mais rápido possível ao xamã da floresta. Ainda pode ser salvo.
Achava tudo aquilo uma besteira e não dei atenção, mas minha mãe não podia simplesmente ignorar. Ela era uma mãe atenciosa e, como toda mãe, jamais colocaria a vida do filho em risco.
— Mas como? Onde fica esse xamã? — Era perceptível o desespero na voz dela.
— Eu vou ajudá-la, guafu. Eu o levarei — disse o curandeiro —, mas não será barato. Preciso comprar comida para a viagem, além de pagar pela escolta.
Ele tossiu novamente, como se fosse uma pausa proposital.
— Como a senhora bem sabe, a floresta é um local perigoso. E o xamã… não deseja ser encontrado.
Mal pude me conter. Cerrei os dentes e quase gritei. Aquele era um ladrão descarado! Eu tinha certeza de que me curaria de qualquer forma. Ele só estava interessado em lucrar com a minha desgraça. Maldito curandeiro!
Minha mãe interveio — acredito que tenha percebido minha inquietação.
— Agora que meu filho despertou, o valor não é problema. Alguns de nossos servos o acompanharão. A comida será providenciada, e a escolta é por nossa conta.
Olhei para minha mãe. Suas palavras não condiziam com a postura. Nem ela parecia acreditar no que dizia.
As leis da minha tribo sempre foram cruéis. Elas incentivam a disputa, a ganância e o abuso de poder. Minha mãe sofreu e gastou recursos que levariam décadas para recuperar. Nossos bens estavam quase todos em propriedades e aluguéis. E ouro ou prata… são inúteis quando há fome. Ninguém come ouro, muito menos prata.
E quando ela precisou usar nossos escassos kuaitz, eles não tinham valor algum nas mãos dela. Izi me contou que quase todos os comerciantes estavam superfaturando os preços. Um kuitz, que antes comprava um fardo de arroz, já não comprava nem mesmo um grão.
Isso tudo me pareceu estranho. Um ou outro se aproveitar da situação era esperado — mas todos eles?
— Tudo bem, guafu Ulia, como desejar. Estarei aguardando. Sabe onde me encontrar — disse o curandeiro, encerrando com uma longa reverência antes de deixar o quarto.
Eu já não gostava dele. Agora, começava a odiá-lo. Não havia motivo para lembrar à minha mãe que ela era viúva.
O clima ficou tenso quando tentei convencer minha mãe:
— Eu não preciso atravessar meia floresta atrás de um xamã que ninguém nunca conseguiu encontrar, mãe!
— Gamargiam salvou sua vida, meu filho. Se não fosse por ele, você estaria morto.
— Mas, mãe, preciso resolver as coisas aqui!
Ela me interrompeu:
— Por mim.
Fez uma pausa, respirou fundo, e com os olhos cheios d’água, implorou:
— Faça o que ele pedir, por favor. Eu não posso perder você também.
— Me desculpe, mãe… Eu vou fazer.
Aquela mulher já não lembrava em nada a minha mãe. Era quase uma devota do curandeiro, justo ela, que sempre reclamou das poções caras, do cheiro de vômito e, mais do que tudo, dos deuses dele.
Com a discussão encerrada, tentei levantar da cama, mas ainda não conseguia. Minhas pernas não me obedeciam. Realmente, eu não estava totalmente curado. Todo o lado esquerdo do meu corpo estava lento, quase paralisado. Minha voz saía estranha, profunda e fraca, isso só reforçava o que o curandeiro praguejava.
Todas as manhãs, ele me visitava e me obrigava a tomar um horrível chá marrom. Tinha gosto metálico, mas o cheiro era ainda pior. No início, senti alguma melhora — engordei alguns quilos, já conseguia ficar em pé por alguns minutos. Aos poucos, passei a andar vagarosamente pelo quarto.
Mas tudo mudou.
Comecei a ter desmaios frequentes, febres, tonturas… e lapsos de memória. Nada fazia sentido. Meu corpo parecia melhor, mas algo me dizia que o curandeiro tinha razão. Até mesmo Izi concordava com ele.
Eu seria carregado por dois meses em uma rede — isso não me agradava nem um pouco. Poderiam me levar num Galapo, mas, como meu pai dizia: quanto maior o animal, maior o predador.
Eu não estava melhorando. Estava piorando. Comecei a acreditar: talvez a única forma de me curar fosse aquela maldita viagem até o xamã da aldeia irmã.
Não conseguia mais ficar acordado por muito tempo. E as perguntas que antes me consumiam agora mal me incomodavam. Era como se os problemas pudessem esperar.
Não me lembro de ter me despedido da Izi. Nem sequer de quando saí da aldeia.
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