A dor era indescritível. 

    Encostei na parede, respirando rápido e fundo. O gosto de sangue enchia minha boca enquanto espasmos percorriam meu corpo. Observei quando Sdom tirou o machado da bigorna e o colocou de volta no forno. Agradeci aos Deuses Brancos pelos preciosos minutos de descanso. Quando o aço voltou a ficar vermelho, lancei-me outra vez à tortura. A cada martelada, o ódio aumentava, e a dor, embora ainda presente, parecia diminuir.

    Por fim, já estava trabalhando normalmente, como em todos os outros dias na forja. As marteladas, antes disformes e hesitantes, agora eram firmes e precisas. Senti orgulho quando o machado ficou pronto — e vergonha por ter pensado em desistir.

    — Meu braço estava doendo muito, achei que estava quebrado.


    — Você acha muita coisa. Já está na hora de começar a saber. Vá para casa. Amanhã, quero você cedo aqui.

    Tentei encontrar Izi, mas ela estava fora, entregando frascos de aromas na aldeia portuária.

    Quando cheguei em casa, minha mãe estava furiosa.

    — Onde você estava, Kannof Marru?
    Engoli em seco.

    — Meu braço não estava quebrado, mãe — falei, tentando amenizar a situação.


    — Você mal conseguia segurar um copo, e agora me aparece todo sujo! Você estava trabalhando?


    — Meu braço não está doendo mais, mãe! Ele não estava quebrado.


    — Venha aqui, quero ver!

    Ela apertou meu braço várias vezes. Quando viu que eu não reagia, disse:

    — Vamos ver daqui a uma hora…

    E ela estava certa. Quase não dormi aquela noite. A dor no braço era insuportável. Minha mãe entrou no quarto, furiosa ao ouvir meus gemidos.

    — Eu avisei! — Ela examinou meu braço, mediu minha temperatura com as costas da mão e me deu uma longa bronca.

    — Eu sei, mãe, mas amanhã vou trabalhar — respondi, com firmeza. Seu olhar reafirmou cada palavra do discurso. Eu estava com febre e dores por todo o corpo, mas precisava trabalhar. Era a única forma de ver Izi.

    — Faça como quiser! — ela resmungou, saindo irritada do quarto. “Igualzinho ao seu pai”, murmurou.

    Acordei antes dos gritos dos Tálatos. Não sentia dor, apenas um leve sono. Como sempre, o desjejum estava pronto: ensopado de raiz branca com carne de sol, além dos costumeiros pães. Tivemos uma das refeições mais silenciosas de que me lembro. Após um momento, levantei-me e saí de cabeça baixa, em direção à forja.

    Todo o meu esforço foi recompensado ao encontrar Izi em frente à forja, brincando com seu estranho cão. A criatura não combinava em nada com a dona.  Tinha pelos onde não deveria e faltavam onde precisava. 

    Seus olhos eram tortos, o nariz malformado, e ele passava boa parte do dia dormindo e roncando. E o pior é que o ronco dele era como se fosse morrer a qualquer momento.  Ainda assim, ela o amava. Eu nunca entendi como alguém podia amar uma criatura tão feia.

    — Oi, Kam! 

    Ela sempre dizia a mesma coisa quando nos encontrávamos, um “oi” carregado de gentileza. Mas dessa vez, senti uma preocupação em seu tom de voz. Ainda assim, ela não falou mais nada. Respondi com um sorriso constrangido e completei:

    — Acho que você já sabe, né? Fui expulso no meu primeiro dia na academia — falei com um tom de graça, meio envergonhado.

    — Sim, eu já sei, sua mãe me contou. Mas por que você foi tão cruel? Você não é assim!

    — Eu não sei. Pensei que fosse o jeito das coisas na academia. Mas, na verdade, parecia que ninguém me queria lá.

    — Mas o que você está fazendo aqui? Você não está machucado?

    — Minha mãe exagera, eu estou bem! — Mostrei meu bíceps, não tão pequeno, e ela riu, aliviada.

    — Acho que meu pai tinha razão: a academia era perda de tempo. Você é melhor que todos eles.

    — Seu pai disse isso?! — exclamei, surpreso.

    — Não! — Ela riu calorosamente.

    Eu poderia passar horas conversando com ela, mas meu tempo já tinha acabado. O ferreiro gritava meu nome sem parar.

    — Acho que a fornalha apagou! — Saí correndo, fingindo desespero.

    —  Não exagera! —  disse ela, ainda um pouco preocupada. Quando olhei para trás, ela estava com os dois braços levantados, mostrando o sinal de força. 

    E assim começou meu “amenizado” segundo dia de tortura. As dores não diminuíram em nada, mas a convicção podia ser sentida em cada martelada. O ferreiro estava satisfeito por eu ter entendido que, por mais doloroso que seja, às vezes precisamos suportar a dor. Os dias se repetiam em dor e sofrimento. 

    Minha mãe sempre reclamava da minha irresponsabilidade e dizia que eu deveria ficar em casa, mas sempre fazia o possível para aliviar minha agonia à noite. E assim foi, até que restasse apenas o cansaço normal de um dia de trabalho.

    O motivo da minha pressa em voltar para a forja era que as entregas nas aldeias vizinhas eram de minha responsabilidade. O ferreiro não gostava de fazer o trajeto, sempre reclamando que “mexer com gente é a pior coisa que existe”, e deixava essa tarefa para mim. Meu plano era que, quando o ferreiro percebesse que eu não poderia mais trabalhar, ele me deixasse fazer as entregas acompanhado de Izi. Mas isso não aconteceu.

    Esse era o verdadeiro motivo da minha insistência em voltar à forja, mesmo com dores por todo o corpo. Tentei por vários turnos entregar as mercadorias, mas sempre faltava alguma coisa. Minha relação com Izi era mais próxima quando meus trabalhos na forja não eram tão intensos, mas conseguimos contornar essa situação com as entregas.

    A grande maioria das encomendas era para as vilas internas, e pouquíssimas para a vila portuária. Não entregávamos para as vilas externas, pois o trajeto era perigoso.  A maneira que Izi e eu encontramos para passarmos mais tempo juntos foi fazendo as entregas de suas essências enquanto eu aproveitava para levar as encomendas da forja. E era isso que sempre fazíamos. 

    Estávamos a caminho de fazer uma pequena entrega na última vila central. Como de costume, resolvemos parar em uma clareira feita pelos Tálatos. A baixa grama predominava no local, mas a floresta ao redor era densa e vasta.

    Eros estava majestoso no céu, e Nix, ao seu lado, se preparava para abraçá-lo, mas isso ainda levaria três repousos. Meu animal de montaria estava deitado tranquilamente sob uma grande sombra.

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