Capítulo 79 - Confiança
A porta rangeu quando Brigitte a empurrou, trazendo uma rajada de vento gelado e o brilho das estrelas da noite para dentro da casa de hóspedes. Ela entrou e fechou a porta com o pé, estava com os ombros caídos. Seus passos até o centro da sala estavam pesados e lentos. A luz do lustre e das velas em volta da sala revelou algumas folhas no seu cabelo e um arranhão fino atravessando a bochecha direita.
— Voltei. — disse, forçando um sorriso enquanto largava a bolsa no chão. — A floresta é bem grande, sabiam disso? Eu corri muito hojeeee~~ — terminou ela, soltando um longo bocejo.
Niko e Evelyn estavam sentados à mesa. Os dois olharam para ela em silêncio. O cheiro de sopa morna que fizeram ainda pairava no ar, mas ninguém parecia faminto o suficiente para comer.
— Encontrou alguma coisa? — perguntou Niko.
Brigitte tirou os sapatos e se jogou em uma cadeira, como se estivesse voltando de uma guerra.
— Árvores, pedras, neve, mais árvores, um esquilo que parece que não gostou de mim… nada de útil. — esfregou os olhos com a palma das mãos. — Eu corri cada pedaço daquele bosque, mas não tinha rastro nenhum. Nem pegadas. Nem animais mortos. Nada.
Evelyn, com uma expressão neutra, se levantou e pegou uma tigela de sopa para ela. Colocou sobre a mesa, ao lado de Brigitte.
— Come. Você merece.
— Obrigada. — respondeu, com um sorriso de canto. Pegou a colher e soprou o vapor, mas não levou à boca.
Niko observava de longe. Havia algo estranho naquele comportamento. Ela tentava soar como a Brigitte de sempre, mas seus olhos não seguiam o papel. Estavam fundos, com olheiras escurecidas. A voz falhava nas pausas, e as mãos estavam começando a tremer.
— Você ficou a noite toda acordada? — perguntou Niko.
Ela hesitou antes de responder, mexendo lentamente a sopa sem olhar para ele.
— Ué… alguém precisava fazer o papel de guarda, né?
— Isso não é resposta.
— Tá bom. Fiquei. Mas não é como essa fosse a primeira vez que passei a noite acordada, Nikoooo~~
Evelyn cruzou os braços, se recostando na cadeira.
— Podia ter nos acordado. A gente teria revezado.
— Eu não queria incomodar vocês… — murmurou ela, desviando o olhar.
O silêncio voltou. Dessa vez, mais denso.
Brigitte empurrou a tigela ainda quase cheia para o lado e levantou-se com um suspiro, indo até a sala de estar. Colocou seu caderninho de anotações sobre a mesa de centro, puxou uma coberta da poltrona e uma almofada, abraçando ela.
— Eu vou ficar de guarda de novo hoje. Ainda não tô com sono.
Niko abriu a boca para contestar, mas Evelyn foi mais rápida.
— Você mal tá se aguentando em pé.
— Eu fico bem, sério. Nem tô com sono… Eu só vou dar uma… pensa…
Antes que terminasse a frase, sua cabeça encostou no braço do sofá. O cansaço venceu a vontade. Em menos de um minuto, ela adormeceu ali mesmo, com a coberta enrolada mal e porcamente em volta das pernas. Sua respiração logo ficou lenta e profunda. Ela finalmente adormeceu.
O caderninho de Brigitte, sempre com ela, agora estava sobre a mesa de centro, parcialmente aberto. Havia rabiscos recentes e palavras escritas com pressa.
Niko ficou olhando fixamente para o objeto por longos segundos. Evelyn percebeu a atenção do albocerno, mas decidiu não fazer nada, apenas observar — por enquanto.
Então ele se levantou. Foi um movimento quase inconsciente, sem pressa, sem sons bruscos. Como se apenas fosse até a janela ou esticar as pernas. Mas seus passos se dirigiram para a mesinha de madeira onde o caderno estava, semiaberto, onde poderia descobrir enfim se Brigitte era ou não uma espiã.
Ele se abaixou e estendeu a mão.
— Niko.
Uma voz cortou o ar com a precisão de uma lâmina. Ele congelou, os dedos estavam a milímetros do couro da capa. Virou o rosto. Evelyn estava parada atrás dele, de braços cruzados, apoiada na parede ao lado das escadas, como se já soubesse que isso ia acontecer.
— O que você tá fazendo? — perguntou ela, sem raiva na voz, mas com uma firmeza que não exigia uma resposta evasiva.
— Só queria… ver o que ela tem anotado. — respondeu ele, erguendo o corpo. — Pode ser importante.
— Importante pra quê?
— Pra investigação. Talvez ela tenha visto alguma coisa e não contou. Talvez ela esteja escondendo alguma coisa.
Evelyn franziu as sobrancelhas, aproximando-se devagar do garoto.
— Você realmente acha que ela está escondendo algo da gente?
— Eu não sei o que pensar, Evelyn. É esse o problema.
— Então você invade a privacidade dela? É assim que resolve?
— Isso aqui não é só uma “privacidade qualquer”. — Niko apontou para o caderno. — A gente pode estar lidando com uma espiã. Ela pode ter planejado tudo, até a missão do boi. A gente precisa saber suas verdadeiras intenções. Não é nem mesmo seguro conversar disso aqui. Ela pode estar fingindo dormir pra ganhar informações. — terminou ele, sussurrando a última parte.
— Brigitte é só uma garota. Ela tá exausta, tá se matando pra provar que pertence ao grupo, e tudo o que você pensa é em tratá-la como suspeita?
— Eu não tô dizendo que ela É culpada. Só… — ele coçou a nuca, impaciente. — …só não posso ignorar a possibilidade. Quero manter a gente em segurança.
— E você acha que a melhor forma de fazer isso é vasculhando o que ela escreve quando ninguém tá olhando?
Niko não respondeu. Evelyn caminhou até ele, agora mais próxima, com os olhos fixos nos dele.
— Eu vi você olhando pra ela o dia inteiro. Observando, desconfiando. E quer saber? Eu entendo. A gente já passou por muita coisa ruim, eu também já desconfiei dela. Mas isso aqui… — ela apontou para o caderno. — isso é cruzar uma linha.
— Eu prefiro cruzar uma linha e manter todo mundo vivo do que ser enganado de novo por alguém.
A frase pairou no ar. Evelyn ficou alguns segundos calada, respirando fundo.
— Isso não é sobre manter todos vivos. Isso é sobre você não ter superado o que aconteceu com a Hyandra. Você se recusa a confiar em alguém de novo porque acha que todo mundo vai te enganar como ela enganou. Você tá paranoico.
Niko enrijeceu o maxilar. “Paranoico? Até parece. Eu só quero manter a Evelyn e eu em segurança. Só isso.”, pensou ele.
— Eu não tô falando da Hyandra.
— Tá sim. Você só não admite.
Por um instante, houve silêncio. Brigitte se mexeu no sofá, murmurando algo entre sonhos, depois voltou à mesma posição, exausta. Evelyn suspirou, cansada também. Não discutiria mais.
— Quer saber? Se quiser mesmo ler o que tá aí, vai em frente. — disse ela, se virando para subir as escadas. — Mas saiba que, se fizer isso, vai destruir qualquer chance dela confiar em você algum dia… E eu também vou pensar duas vezes antes de confiar.
Ela subiu sem esperar resposta. Os passos de Evelyn ecoaram brevemente pelo andar de cima, depois cessaram, abafados por uma porta se fechando.
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