Capítulo 7 - Comerciante
Voltando para o canavial, Carlos se deparou com uma mulher usando uma máscara no rosto e um “F” marcado na testa. Era Tassi, que segurava um cajado de madeira com uma gema marrom incrustada na parte superior e, logo acima, uma pequena gema verde.
Lentamente, ela se dirigiu ao meio do canavial e fincou o cajado no chão. Assim que o fez, os pés de cana-de-açúcar começaram a crescer visivelmente, folhas verdes sussurrando ao vento enquanto se erguiam. O aroma adocicado da cana fresca encheu o ar. Carlos pensou, maravilhado: “A magia é mesmo incrível!”. Seu transe foi quebrado pelo estalo seco de um chicote no ar, brandido pelo capataz Jairo.
— Pare de ficar olhando com cara de besta! — rosnou Jairo. — Vá cortar a cana-de-açúcar logo!
Carlos se recompôs e retomou o trabalho, suando sob o sol inclemente até cerca de uma da tarde, quando Jairo finalmente o mandou à casa do senhor do engenho.
Ao chegar, avistou Tia Vera na cozinha. O cheiro reconfortante de feijão cozido e farinha torrada pairou no ar. Ele sorriu, e ela retribuiu com um aceno caloroso antes que ele subisse as escadas em direção à sala do senhor do engenho.
Lá dentro, Jorge estava sentado diante de uma mesa repleta de livros e “artefatos do diabo”. Pedro, ao seu lado, abanava um leque, criando uma brisa suave que mantinha a sala fresca, em contraste com o calor úmido e opressivo do lado de fora.
— Já que você sabe tanto sobre esses artefatos, quero que me fale deles — disse Jorge, sem levantar os olhos. — Nesse fim do mundo, não há muito o que fazer, então coleciono essas coisas, além dos livros do diabo. Me pergunto que tipo de magia usaram para fazê-los. Os desenhos são tão realistas, e as estatuetas têm cores tão vivas… como esta aqui.
Jorge abriu uma gaveta e retirou uma figure de anime de uma garota ruiva e peituda. Os olhos de Carlos se arregalaram; ele conhecia bem aquela personagem. Precisou de toda a força que tinha para conter uma gargalhada.
— Mas nunca entendi sua utilidade — continuou Jorge. — Até ontem, pensei que não tinham função, mas você me surpreendeu com aquele artefato que solta fogo. Fiquei usando-o, mas, depois de um tempo, o fogo parou de acender. Por quê? E esta estatueta, para que serve?
Jorge admirava cada detalhe da figure antes de fixar o olhar em Carlos, à espera de uma resposta. Sem querer explicar o que era uma figure de anime, Carlos bolou uma desculpa:
— Como eu disse ontem, apenas invoco esses materiais. Sei o uso de alguns, mas não de todos. Acredito que essa estatueta seja como nossas imagens de santos — devem ser veneradas da mesma forma.
Jorge não pareceu convencido, mas não questionou.
— E quanto ao isqueiro? Como funciona? — perguntou.
— O fogo vem de um líquido dentro do artefato. Quando o líquido acaba, o isqueiro perde a utilidade.
A resposta agradou a Jorge.
— Entendo. Faz sentido. O fogo precisa de combustível, diferente do fogo de uma gema mágica, que só precisa da mana do adepto.
“Que interessante”, pensou Carlos. “Então usam a magia do próprio corpo para ativar as gemas.”
— E esses livros? — Jorge indicou dois volumes. — Não estão em português como os outros. Consegue entender o idioma?
Carlos examinou as capas: “1001 Inventions That Changed The World”, com uma lâmpada estampada, e “Guns and History”, ilustrado com mosquetes e armas de pederneira. Seus olhos brilharam.
“‘1001 invenções que mudaram o mundo’… Quero muito esse livro, ainda mais porque vou ter que reinventar muitas coisas. O outro é ainda mais importante — até agora, não vi armas de fogo aqui, só armas mágicas. Se eu puder fazer uma, seria muito útil. Não posso depender só desses artefatos.”
“Mas, no momento, ambos são inúteis para mim… Sou apenas um escravo.”
“Se eu fugir, preciso levar toda a coleção desse velho. Ainda bem que sei ler inglês. Mas é melhor fingir ignorância — ele pode descobrir o real uso de uma arma de fogo.”
— Infelizmente, não sei ler a língua desses livros, mas parece ser inglês.
“Não sei se o inglês daqui é o mesmo do meu mundo, mas, se o português é, provavelmente é o mesmo caso.”
Jorge suspirou, desapontado.
— Tudo bem. Já é um milagre um preto saber ler. Estava esperando demais.
Enquanto conversavam, alguém bateu na porta.
— Seu Jorge, o comerciante ambulante chegou. Já amarrei o burrinho dele perto do lago e ele está te esperando.
Carlos reconheceu a voz de Jairo.
“Não aguento mais ouvir esse verme. Está em todo lugar! Esse vai ser outro que vou matar se conseguir uma arma. Não acredito em olho por olho, dente por dente, mas, nesta época e neste mundo, não há muita escolha.”
Jorge ficou animado, sorrindo de orelha a orelha.
— Vamos. Você virá comigo — disse a Carlos. — Quero ver se você realmente entende dos artefatos do diabo. Francisco sempre traz alguns para mim. Se explicar o uso de alguns, talvez eu compre os itens para sua suposta invocação.
Jorge saiu à frente, seguido por Carlos e Pedro. Chegaram ao local onde o comerciante estava — um homem baixinho e gordinho, com cerca de 30 anos, à sombra de uma árvore, com um burro e uma carroça. A esposa de Jorge e Tia Vera já estavam lá, conversando com ele.
Assim que viu Jorge, o comerciante — Francisco — abriu um sorriso largo, que a Carlos pareceu falso, como o de um caixa de supermercado, ele conhecia bem esse tipo de sorriso, afinal já também trabalhou como caixa.
— Bom dia, Seu Jorge! Sua esposa já escolheu várias coisas — café, carne seca, farinha de trigo, queijo… e a novidade: cacau em pó. O governador de Pernambuco adora a bebida que se faz com ele!
Jorge interrompeu:
— Francisco, você me conhece há tempos. Sabe que não ligo para isso. Anote o que minha mulher pegou e eu pago depois. Agora, me diga o que trouxe de bom.
— Claro, meu senhor. Trouxe alguns artefatos do diabo. Escondi num saco de farinha para ninguém perceber.
Enquanto Vera e a esposa de Jorge admiravam o cacau, ele observava Francisco com expectativa. O comerciante retirou um saco da farinha e dele tirou um livro com letras verdes: “Plantas do Brasil”. Em seguida, duas pedras lisas em forma de meia-lua.
Carlos reconheceu-as imediatamente.
— Ímãs! Fazia tempo que não os via.
Francisco e Jorge ficaram chocados.
— Quem te deu permissão para falar? — rosnou Jorge. — Mas já que abriu a boca, me explique o que é esse tal de ímã. Se explicar bem, pode escapar de uma chicotada!
“Putz, eu e minha boca grande”, pensou Carlos. “Mas esta é uma chance de mostrar meu conhecimento.”
— Perdão pelo desrespeito, meu senhor. Apenas acho esses artefatos interessantes. São ímãs: todo ímã tem um polo positivo e outro negativo. Polos opostos se atraem, polos iguais se repelem. Se me permitir pegar, posso demonstrar.
Francisco pareceu surpreso. Não entendeu os polos, mas compreendeu a atração e repulsão.
“Que droga”, pensou o comerciante. “Esperava impressionar o velho e cobrar mais caro. Agora esse escravo estragou tudo.”
Relutante, entregou os ímãs.
— Pode pegar. São itens especiais.
Carlos os manipulou com cuidado.
— Veja, estão grudados. Se eu inverter um, eles se repelem.
Inverteu um ímã e tentou aproximá-los; o campo magnético os repeliu. Jorge ficou embasbacado, pegou os ímãs e repetiu o experimento.
“Existe magia neste mundo, e os ímãs o impressionam?”, pensou Carlos. “Devem ser raros aqui, apesar de que não devem ser tão lisos assim nem terem esse formato, mas existem.”
A esposa do senhor do engenho se aproximou de Jorge, sem mostrar nenhum interesse no novo brinquedo do seu marido.
— Já peguei o que precisávamos. Pague o bom senhor depois.
Jorge mal a ouviu.
— Sim, sim, Alice, meu amor.
Ela revirou os olhos.
— Vera, leve as coisas para dentro. Pedro, ajude-a.
Enquanto os dois obedeciam, Francisco perguntou:
— Então, meu senhor, vai querer os artefatos do diabo?
— Eu quero!
Jorge pagou as moedas, e Francisco as contou rapidamente.
Carlos lembrou-se de algo importante.
“Preciso pedir pelas balas e armas. Pode custar chicotadas, mas não custa tentar.”
— Senhor Jorge, sobre os artefatos de invocação…
Jorge olhou para ele com desdém, mas refletiu.
“Ele entende desses artefatos. Talvez valha a pena dar uma chance.”
— Espere um pouco, Francisco. Gostaria de pedir mais uma coisa. Meu escravo diz que consegue invocar artefatos do diabo, mas precisa de certos materiais. Você poderia trazê-los na próxima visita? Pago três vezes o preço normal.
Francisco olhou para Carlos, cético.
— Que artefatos seriam esses?
— Meu escravo explicará.
“Seria melhor mostrar a arma”, pensou Carlos, “mas com um graveto e um desenho no chão, talvez funcione.”
— É mais fácil mostrar como são.
Pegou um graveto e desenhou uma pistola na terra.
— Primeiro, este artefato. É preto, feito de ferro, e há vários tipos. Quanto mais, melhor.
Desenhou as balas.
— O segundo tipo é este. São pequenos, e cada um combina com um tipo específico do primeiro. Um é inútil sem o outro.
Francisco pareceu reconhecer.
— Acho que já vendi alguns desses no passado, não é, senhor?
Jorge concordou.
— Isso mesmo. Preciso de mais, ou teria que vender meu terreno para comprar gemas mágicas — segundo o método de invocação dele.
— Entendo. Vou ver se consigo. Não garanto nada, mas esteja pronto com um saco de moedas.
— Hahaha! Você nem tenta esconder, né? Tudo bem.
“Isso!”, pensou Carlos, animado. “Pelo menos algo está dando certo. Logo, logo terei uma arma e poderei dizer adeus a esta vida de escravo!”
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