Capítulo 8 - Um Mundo Livre
Carlos voltou para a senzala depois de passar a tarde na casa-grande. No caminho para a senzala viu Tassi com uma máscara que cobria a boca, e uma ferida que formava um F na testa, está foi a marca que o senhor do engenho deixou nela.
Se aproximando dela, começou a falar:
— Você é a Tassi não é. Lembro que você tentou me avisar dos capitães do mato antes de eu ser capturado, mas não te dei ouvidos na hora… Você foi capturada de volta tentando me salvar, foi tudo culpa minha… Se tivesse corrido na hora que você me avisou, talvez você não estivesse nesta situação… Sinto muito por isso.
“Se não tivesse sido tão inútil naquela hora. Tenho que fazer algo por ela. Se conseguir uma arma e matar o velho do engenho, a gente vai ficar livre. Mas isso é um grande ‘E se’”.
— Vou te compensar de algum jeito, prometo.
Tassi não conseguia falar muito bem por conta da máscara de flandres, mas pelo olhar dela dava a entender que queria dizer alguma coisa. Até tentou fazer um sinal com as mãos e murmurar algo mas foi interrompida por um estalo alto seguido por gritos:
— Vocês dois continuem andando se não quiserem levar umas chicotadas bem dadas! Principalmente você vagabunda, não vai instigar mais ninguém a fugir não!
O barulho assustou Carlos que olhou para trás e acabou notando que no cabo do chicote de Jairo havia uma gema cor verde claro e acima uma gema verde escuro, o padre havia comentado sobre uma dessas gemas fazer ferimentos se tornarem piores mais rapidamente, mas não pode observar melhor senão iria acabar levando chicotadas.
“Toda hora esse verme nós incomoda, o trabalho até já acabou e está enchendo meu saco e pior, ele usa duas gemas mágicas! Me pergunto qual das gemas é a da podridão e o que a outra faz.”
Os dois rapidamente entraram na senzala e logo a grande porta de madeira foi fechada atrás deles.
Dentro da senzala dava para ver as pessoas se servindo nas panelas de feijão. Como estava morto de fome, nem perdeu tempo e já foi comer. De manhã não comeu nada porque foi falar com o padre para pegar um remédio para tratar a sua perna machucada em vez de tomar o café da manhã.
“Se continuar assim vou acabar virando apenas pele e osso.”
Como sempre estava com tanta fome que estava devorando a comida e acabou não notando a senhora que se aproximava dele.
— Boa noite!
Quem disse isso foi a Tia Vera. Na pressa de cumprimentá-la, acabou engolindo a comida sem mastigar direito e acabou se engasgando um pouco.
— Calma menino, pode comer em paz, eu sei que você deve estar morto de fome, afinal pulou o café da manhã. Sabe acho que vou ter que esperar você terminar de mastigar para vir falar com você, porque toda hora se engasga quando venho conversar.
Os olhos da Tia Vera foram em direção a algo atrás de Carlos.
— Se apenas um dia sem comer te deixa assim, imagina ficar dias sem comer.
Lentamente olhou para trás para olhar com quem Tia Vera estava falando. Aos poucos em sua visão apareceu um rosto engolido pela escuridão com olhos brilhantes cor de esmeralda e uma boca coberta por uma máscara de ferro, por conta da má iluminação da senzala, o rosto pareceu assustador aos olhos de Carlos.
“Meu Deus! Que máscara assustadora. Antes não tinha visto bem porque a gente estava lá fora, e mal dava para ver o rosto dela. Mas aqui dentro com essa má iluminação fica muito assustadora, ainda mais me seguindo em completo silêncio, afinal o que ela é, uma ninja por acaso!? E esses olhos também, pelos visto não estamos num mundo onde as pessoas tem cabelos coloridos e sim olhos coloridos… Mas a Tia Vera tem razão,não comi nada hoje e to quase morrendo de fome. Imagina ela que não come nada a dias, e ainda tem que ficar vendo outras pessoas comerem.”
Tia Vera notou o susto que tomou e acabou rindo um pouquinho.
— Te entendo Carlos, essa máscara é bem medonha mesmo. Só não entendo como um homem que se diga de Deus pode fazer com que outra pessoa seja forçada a usar algo assim, e ainda deixá-la sem comer. Por isso fiz algo para te ajudar, nem que seja um pouquinho Tassi.
Tia Vera fez sinal para chegar mais perto então foi no ouvido dela e sussurrou baixinho, mas Carlos ainda podia ouvir o que disse.
— Meu netinho conseguiu pegar alguns cajus do cajueiro e eu exprimi alguns cajus pra você, sei que com a máscara você não consegue comer. Mas ainda dá para tomar alguma coisa né. Não é muito, porém vai te dar um pouquinho de energia. Deixei num potinho de argila na sua cama. Mas é melhor tomar antes de dormir, não sabemos quem pode acabar te denunciando para o seu Jorge.
Tassi pegou as mãos da Tia Vera e as apertou enquanto murmurava algo.
— Não precisa me agradecer menina mas deixando isso de lado, você tinha que ter visto o Carlos hoje, pegou dois artefatos do diabo das mãos do ambulante, eram duas pedras lisas e cinzas, e começou a explicar como funcionava. Não entendi nada da explicação, só entendi a parte de que um lado as pedras se atraiam e de outro se afastavam. Parecia magia mas aconteceu exatamente como falou, de um lado se atraem e de um lado se repelem. Mesmo usando toda a força dele não se aproximavam, é como a igreja disse, devem ser coisas do diabo mesmo! Tomara que o coisa ruim não tenha jogado uma maldição em nós.
Tassi ao ouvir a história ergueu as sobrancelhas e olhou para Carlos.
“Calma lá tia, também não usei toda a minha força. Parece até meu vô falando histórias, exagerando tudo. Mas deixando isso de lado, me incomoda o fato deles falarem que são artefatos do diabo, são apenas coisas comuns, pelo menos sei que não sou uma pessoa do diabo apenas por ter a mesma origem dos artefatos.”
— Não se preocupe tia, sei o que estou fazendo, além disso não acho que sejam do diabo. Afinal tem gemas mágicas que soltam fogo, fazem remédios, fazem plantas crescerem e quem sabe o que mais. Acho que deve ter outros tipos de magias e forças além das gemas mágicas. Por exemplo, as pedras de hoje que peguei, os ímãs são um exemplo desses outros tipos de forças, no caso a força eletromagnética. Além disso, só porque não sabemos a origem desses artefatos ou como funcionam, não quer dizer que sejam ruins.
— Nossa, você é bem culto.
— Obrigado. Mas deixando isso de lado, ontem vi que você não estava por aqui na senzala, você é a única com quem posso falar, então acabei notando sua ausência.
— É que ontem fiquei na casa-grande fazendo uma sobremesa pra senhoria, fiquei até tarde. Eles fecham o portão da senzala mesmo estando lá, mas abrem para mim entrar para dormir. O povo que trabalha no canavial acha que meu trabalho é fácil, mas também sofro, tenho que arrumar tudo, cozinhar tudo, até cuidar da criança e ainda por cima tem dias que fico até depois do sol se pôr. Além de eu ser a primeira a sair para fazer café da manhã pro seu Jorge. Só não reclamo muito porque até gosto de cozinhar, então acabo gostando de uma parte do meu trabalho, o que não é algo que muitos possam dizer por aqui.
“Minha mãe trabalhava como diarista, eu a via sempre cansada, então sei que esse não é um trabalho fácil. É uma pena que não posso fazer nada por ela no momento… Bom, ela disse que gosta de cozinhar…”
— Vi que foi comprado cacau em pó hoje com o comerciante. Conheço uma receita maravilhosa usando cacau.
Carlos explicou detalhadamente uma receita de um bolo que gostava muito, até Tassi demonstrou estar interessada nessa receita e se aproximou para ouvir.
— Menino, não acredito que você saiba uma receita usando um ingrediente caro daqueles, só gente senhorios muito ricos usam aquilo. Mas do jeito que você falou parece delicioso mesmo. A dona gosta muito de doces então vai amar, e o filho dela também.
Antes de continuar a falar, bocejou um pouco.
— Agora tenho que ir dormir porque como falei antes tenho que fazer café da manhã pro seu Jorge. Obrigado pela receita.
“Ela parece mesmo uma mãezona, tenta ajudar todo mundo. Mas notei que pouca gente além de mim fala com ela, porque será?”
Olhando ao redor para as outras pessoas que estavam comendo, notou que as pessoas pareciam desviar do olhar dele, um homem até o encarou.
“Ué, porque aquele cara me olhou assim? E porque estão me evitando? Achei que num ambiente desses as pessoas seriam mais unidas. Já não basta todo mundo que não é escravo olhar com desdém para nós, e ainda nos insultar. Ainda temos que ficar picuinhas uns com os outros? Pelo menos a Tassi parece não me evitar.”
Enquanto estava perdido em pensamentos, Pedro se aproximou dos dois, Carlos notou isso e resolveu sanar suas dúvidas.
— Deixa te fazer uma pergunta. Porque parece que o povo está me evitando? No começo achei que era por conta de ser um novato, mas to achando que tem mais coisa no meio.
Antes responder deu um leve suspiro:
— É bem simples. Primeiro que você é um novato e segundo você começou a trabalhar com o senhor do engenho, eles não gostam de gente que trabalha com ele. Até ouvi falar que em outros engenhos deixam os escravos que trabalham na casa-grande separados do resto pra não ter nenhum conflito. Mas o povo daqui é mais amistoso normalmente, é que você chegou junto com a falha da fuga do engenho, então os ânimos não estão daquele jeito. Todos apenas estão procurando um culpado, e estão cheios de desesperança.
— Mas nem todo mundo é assim, por exemplo a Tassi que está do seu lado, sempre falava com todo mundo.
“E agora não pode falar mais, por conta da máscara, que ganhou por minha culpa.”
— Eles também evitam a Tia Vera, vou te falar que ela ficou animada com a sua chegada, porque agora tem mais uma pessoa para conversar. O povo também não gosta muito de mim, até acham que dedurei o plano para o senhor do engenho.
“Ah, agora faz sentido, me perguntava porque só eu falava com uma senhorinha tão gentil, e por isso também devem evitar falar com o Pedro.”
Nessa hora Tassi olhou fixamente para Pedro, Carlos notou isso mas resolveu não comentar.
“Será que é dedo duro mesmo? Parece tão gente boa. Apesar de que Tassi não parece evitá-lo, como todo mundo parece nós evitar. De qualquer forma é melhor me lembrar disso.”
Pedro tossiu e continuou falando:
— De qualquer forma, a Tia Vera sofre mais. As pessoas acham que ela é amiga da patroa. Até porque de vez em quando meu filho que é neto da Tia Vera brinca com o filho da patroa. Só não fala isso perto do senhor do engenho que ele fica maluco com isso. Por falar nele, você tem que tomar muito cuidado, ele é cruel e odeia a gente acima de tudo, de vez em quando pode até te tratar como gente, mas saiba que não te vê como pessoa.
— Eu sei. Qualquer um que te tenha como escravo não te vê como pessoa. Em nenhum momento não senti nada por ele além de ódio. Todo mundo aqui se matando de trabalhar no sol enquanto ele fica lá mexendo em bugigangas ganhando dinheiro às nossas custas. E Aposto que mesmo a patroa que é muito “amiga” da Vera ainda não faz nada para ajudar a sua “amiga”. Apenas a vê trabalhando que nem uma condenada, e não move um dedo para ajudá-la.
“Me lembro das histórias que minha mãe falava de sua patroa que se dizia amiga dela. Minha mãe se matava trabalhando enquanto essa amiga que era apenas dona de casa mas não trabalhava não fazia nada em casa, nem cuidava do seu próprio bebê,, apenas saia para fazer ioga, aulas de dança e claro trair o marido e o marido também traía, típica família de classe média brasileira.”
Essa resposta o deixou surpreso:
— Você é bem radical, mas controle seu ódio, em qualquer lugar desse mundo existem escravos e servos. Aquele que manda e aquele que obedece, isso nunca vai mudar sempre foi assim e sempre será. Por isso às vezes até acho que não adianta a gente lutar, mesmo o quilombo que tem aqui perto vive sofrendo ataques dos portugueses. Um dia será derrubado.
— Talvez você tenha razão, talvez nunca criaremos um mundo sem escravos e senhores. Mas supondo que seja impossível acabar com a escravidão. Quer dizer que devemos ficar parados e quietos deixando eles nós chicotearem? Pra mim mesmo que seja uma luta em vão, ainda vale a pena lutar.
— E talvez nossa liberdade não esteja tão longe quanto vocês acham.
Nessa hora Tassi não pode deixar de olhar fixamente para Carlos, e levantar suas sobrancelhas. Parecia querer dizer algo, mas devido a máscara apenas ficou em silêncio.
— Além disso, olhando agora, realmente parece mesmo que tudo vai continuar sempre assim, com senhores de engenho e escravos. No tempo dos faraós aposto que os escravos também achavam que os faraós sempre existiram, mas os faraós caíram. Roma parecia eterna com seus escravos servindo a seus senhores, mas Roma caiu, os escravos não se tornaram completamente livres, se tornaram servos, mas isso apenas demonstra que nada é eterno. Até mesmo os reis de hoje em dia que parecem intocáveis, protegidos por Deus, um dia também terão seu fim. Assim como os senhores de engenho um dia irão sumir, apenas passarão a ser uma paragrafo sombrio em um livro de história, e com eles sumindo, a escravidão acabará. Porém, isso não quer dizer que seremos totalmente livres, mas será melhor que ser escravo.
Pedro mal sabia quem eram os faraós ou Roma mas entendeu a mensagem geral das suas palavras, o que o fez ficar bem pensativo.
Tassi, que estava apenas ouvindo a conversa, não pode deixar de ficar surpresa, e de concordar, e mesmo com a máscara, murmurou baixinho.
— Você tem razão.
“Nossa ela consegue falar com essa máscara, não sabia. Apesar de que isso está mais como um gemido, só consegui ouvir o que ela disse, porque está muito quieto aqui, a maioria das pessoas foi dormir e nem luz mais tem.”
Notando sua surpresa, Pedro falou:
— Ela pode falar, só é bem difícil, pois tem um ferro que vai na boca. Aliás, falei com o padre sobre sua máscara e ele disse que vai tentar convencer o seu Jorge a tirar sua máscara um pouco mais cedo.
Tassi parecia estar feliz com a notícia. Mas logo se levantou e acenou para eles, então foi dormir, Carlos também foi logo em seguida.
Pedro foi o único que ficou para trás pensando no que tinha escutado.
“Que bom seria, um mundo sem escravidão. Um mundo onde meu filho possa ser livre.”
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